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Foca monge

“Os portugueses desconhecem muitas histórias sobre o mar”

“Portugal tem uma biodiversidade marinha única a nível mundial, porque abrange desde águas quentes a águas temperadas a águas muito frias. A Madeira está mais a Sul, pelo que acolhe espécies mais tropicais. Nas margens do Continente, temos polvos, chocos, cavalos marinhos. E nos Açores passam todos os grandes migradores. Se pensarmos no oceano Atlântico como uma auto-estrada, os Açores são a única estação de serviço que existe. Estamos a falar de um terço de todas as baleias e golfinhos a nível mundial.”
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Para algumas pessoas, o conhecimento sobre os oceanos começa e acaba nas opções de “peixe” no menu do restaurante. Para outras, poucas, vai até onde as levarem os desportos aquáticos que praticam. Para a maioria, existe um mundo por descobrir nas águas salgadas que banham os arquipélagos e as costas Oeste e Sul do país. “Há uma imensidão de histórias que os portugueses desconhecem sobre o mar português”, diz Nuno Sá. Por isso, o fotógrafo e videógrafo subaquático tornou a sua missão mostrar a “biodiversidade marinha única” que vive na Zona Económica Exclusiva de Portugal, ao participar na produção de séries como a “Blue Planet II” da BBC e “Mar, a Última Fronteira” da RTP. Nuno Sá defende que este património tem de ser protegido “não só pelo valor económico, mas pelo valor ecológico”. “Todos nós temos o direito de um dia conhecer o que é um ecossistema marinho saudável.”

O que o levou a desistir de uma carreira em Direito por uma vida em contacto com o mar?

Eu tive um contacto tardio com o mar: nasci no Canadá e só vim para Portugal com 11 anos. Depois do liceu, como não tinha apetência para as matemáticas, escolhi estudar Direito. Logo no primeiro ano da licenciatura fiz um curso de mergulho em Sesimbra, e foi o suficiente para perceber que o estar debaixo da água a observar os peixes era o que realmente gostava de fazer. Quando concluí a licenciatura, tinha crescido em mim o sonho de um dia me tornar fotógrafo ou cameraman subaquático. Via, obsessivamente, os documentários do Jacques Cousteau.

Como é que conseguiu a sua profissão de sonho?

Para concretizar o meu plano e continuar em Portugal, pensei que o melhor sítio seria os Açores. Então, mudei-me para lá e passados dois meses já tinha iniciado o curso de Biologia Marinha e conseguido trabalhos num centro de mergulho e numa empresa de observação de baleias e de golfinhos. Comecei a fazer fotografia subaquática como hobbie até que foi evoluindo para uma fonte de rendimento.

Um hobbie que lhe trouxe colaborações com canais televisivos estrangeiros como a BBC…

Não foi bem a fotografia subaquática. A dada altura decidi apostar no vídeo subaquático. Comprei uma RED, que é uma das melhores câmaras de cinema, e percorri os Açores durante um mês e meio. Fiz um pequeno filme que mostrava a biodiversidade açoriana, acrescentei uma música bonita, e divulguei-o. Passado uns meses, fui contactado por um dos produtores do “Blue Panet II” da BBC. Começou por adjudicar-me uma história, correu bem, e foi-me pedindo mais trabalhos em Portugal e depois noutros locais do mundo.

É diferente filmar o mar português do que outras regiões do planeta?

Sim, é. Todas as grandes séries sobre os oceanos passam por Portugal, mas normalmente isso não é referido. Portugal tem umas das maiores Zonas Económicas Exclusivas a nível mundial, com uma biodiversidade marinha única – porque abrange desde águas quentes a águas temperadas a águas muito frias. A Madeira está mais a Sul, pelo que acolhe espécies mais tropicais. Nas margens de Portugal Continental, temos polvos, chocos, cavalos marinhos. E nos Açores passam todos os grandes migradores, muito próximo da costa. Se pensarmos no oceano Atlântico como uma auto-estrada, os Açores são a única estação de serviço que existe. Estamos a falar de um terço de todas as baleias e golfinhos a nível mundial.  

Foi esse património que o levou a produzir a série “Mar, a Última Fronteira”, para a RTP?

Há uma imensidão de histórias que os portugueses desconhecem sobre o mar português. A maioria não sabe que o arquipélago dos Açores é o único sítio da Europa onde o tubarão baleia, o maior peixe do mundo, aparece todos os anos. Tal como a baleia azul, o maior animal a habitar o planeta Terra. Igualmente, 90% das pessoas não fazem ideia de que a foca-monge, a mais rara no mundo, vive no arquipélago da Madeira. Nem sabem que a maior população de cavalos marinhos do mundo está na Ria Formosa. A ligação dos portugueses ao mar é maioritariamente gastronómica.

De todas as expedições em que participou, qual o marcou mais?

Foi uma na Noruega. Estava a filmar para a série “Blue Planet”, da BBC, a 300 quilómetros do Círculo Polar Árctico. O sítio é temperatura do ar registava -20º C e a da água 2º C. Mergulhar num sítio destes é incrível, porque vemos centenas de baleias a alimentarem-se de milhões e milhões de arenques. Ultrapassou todas as minhas espectativas. É um dos grandes espectáculos da natureza. Mas no dia seguinte encontrámos uma baleia-de-bossa toda enrolada em artes de pesca. Estivemos uma hora a cortar cabos e a tentar soltá-la. A pegada ecológica humana existe em qualquer sítio do mundo.

Houve mais situações em que se tenha deparado com poluição no mar?

Sim. Em 2019, estive a trabalhar no Parque Natural de Utría, na Colômbia. Para se chegar lá, tem de se apanhar três voos, aterrar numa pista de terra batida e depois apanhar boleia num barco de pesca durante três horas. Não existe uma única estrada de ligação. É uma área onde vivem indígenas. Mas a quantidade de plástico que se encontra é completamente absurda – e não vem da Colômbia. É muito preocupante.

Encontrou esse nível de contaminação nas águas portuguesas?

Na mesma quantidade não. Mas quando estava a filmar para o “Blue Planet” nos Açores, encontrámos uma coisa que não voltei a ver: um rio de plástico. Não sei quantos quilómetros tinha, parecia infinito. Navegámos durante uma hora, ao longo de 40 quilómetros, e não lhe vimos o fim. Tinha três metros de largura e o conteúdo era variado: desde capacetes, escovas de dentes, sacos de plástico, sandálias. Parecia uma cidade flutuante. Encontrámos uma quantidade infindável de peixes, tubarões, tartarugas, a viver no meio deste lixo. É impressionante como consegue sobreviver a tempestades, ventos, correntes e alojar todo um ecossistema.

Reduzir substancialmente o consumo de plástico ajudaria a minimizar ocorrências como essa?

O plástico é só a ponta do icebergue. É um problema secundário comparado com a perda de biodiversidade marinha e a ruptura de stocks de pesca que está a ocorrer no mundo inteiro. Todos os anos, 100 a 200 milhões de tubarões são pescados para a sopa de barbatana de tubarão do Oriente. Pescados, valem 30 cêntimos o quilo. Nos Açores, o mergulho com tubarões azuis gera 5 milhões de euros para o sector de ecoturismo, por ano. Temos de parar com a sobrepesca. Está a destruir tudo.

É mais uma questão política do que de consumo?

Sim, isto é um problema político. Não há limite ao que se pode tirar do oceano. A União Europeia alerta que a sardinha está em ruptura total de stock, mas Portugal continua a pescá-la. Isto acontece com quase todas as espécies marinhas a nível mundial, porque os políticos querem ser reeleitos. Hostilizar pescadores que não se preocupam em deixar para as gerações futuras não ajuda. E criar uma reserva marinha ou recuperar um habitat demora tempo.

Os cientistas dizem que, para conservarmos ecossistemas e espécies, é preciso proteger 30% dos oceanos. Isso é exequível?

É raro um país tomar medidas de recuperação de habitats. Há meia dúzia de pequenas regiões a nível mundial que decidiram acabar com a tendência decadente de os avós dizerem aos netos que no tempo deles havia peixes por todo o lado e agora não há nada. Basta olharmos para o Mediterrâneo, que é um dos mares mais populosos, poluídos, sobre-explorados e menos de 1% é protegido.

Os Açores são um bom exemplo de sustentabilidade, com a criação da reserva marinha?

A exploradora Sylvia Earle esteve nos Açores, no ano passado, e disse que o arquipélago é um dos “locais de esperança” de biodiversidade marinha. Todas as grandes associações e fundações consideram os Açores as Galápagos do Atlântico. Mas nas Galápagos não se pesca nada e só para se entrar paga-se uma eco-taxa de 200 e tal dólares por pessoa. Há muito para aprender com outros arquipélagos oceânicos que conseguiram tornar-se grandes exemplos de conservação. Ainda assim, os Açores têm várias histórias de sucesso.

Tais como?

A ilha do Corvo (a mais pequena dos Açores) é o único sítio em Portugal e um dos poucos a nível europeu onde existe uma reserva marinha voluntária – numa área do tamanho de um campo de futebol. Foram os próprios pescadores que disseram “agora aqui não se pesca”. Isto permitiu a um habitante do Corvo criar um centro de mergulho. Outro exemplo é a reserva marinha no canal Pico-Faial.

Que tipo de actividades económicas são compatíveis com os esforços de conservação?

O ecoturismo, por exemplo. É muito mais rentável do que as actividades que substituiu. A começar pela indústria de observação de baleias e golfinhos que substituiu a caça destas espécies e que gera 50 milhões de euros, por ano. Depois temos o mergulho, que tem crescido muito – sobretudo, na Ilha de Santa Maria, por causa dos tubarões baleia. A ilha passou de não ter quase turismo para ter listas de espera para fazer mergulho.

O ser um meio pequeno ajudou a criar uma mentalidade mais ecológica?

Acredito que sim. Num meio grande é muito mais difícil conseguir-se mostrar a toda a gente que beneficiamos em proteger o ambiente. Em Portugal Continental, a maioria das pessoas não quer saber da manutenção dos ecossistemas marinhos porque não estão tão ligadas ao mar. Santa Maria tem 5 mil habitantes e todos os negócios foram favorecidos pelo aumento do ecoturismo. Mas temos de recuperar a vida marinha das nossas costas, não só pelo valor económico, mas pelo valor ecológico. Todos nós temos o direito de um dia conhecer o que é um ecossistema marinho saudável.

 

O acordo ortográfico utilizado neste artigo foi definido pelo autor

 

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