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O capitalismo põe em causa a sustentabilidade do sistema económico global a médio e longo prazo

O capitalismo põe em causa a sustentabilidade do sistema económico global a médio e longo prazo

Excerto do livro «Alterações Globais», de Filipe Duarte Santos, publicado pela Fundação.
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Uma grande parte da população humana considera não haver limite para o crescimento económico e que este será sempre a garantia de uma melhoria continuada da qualidade de vida, de um crescente acesso ao consumo de bens e serviços cada vez mais diversificados e sofisticados e de uma mobilidade igualmente crescente. Há uma razão essencial para este tipo de convicção. A espécie biológica Homo sapiens tem características de comportamento que resultaram do longo processo de evolução dos hominídeos durante milhões de anos. Damos grande importância ao curto prazo, horas, dias, semanas, um e dois anos e muito pouca importância ao longo prazo, desde vários anos até às dezenas e centenas de anos, porque no passado os intervalos de tempo em que se decidia a sobrevivência correspondiam aos ciclos do dia e das estações do ano. Intervalos de tempo mais longos adquiriram progressivamente maior relevância ao longo da história das civilizações, mas estão muito longe de ter um valor comparável ao ciclo diurno e anual. Um exemplo desta nossa miopia ancestral encontra -se na dificuldade em compreender na prática o que significa realmente o crescimento exponencial, ou seja, o crescimento com o tempo de uma função em que o acréscimo é proporcional ao valor dessa função.

[…] Consideremos um exemplo concreto. Os países mais industrializados têm frequentemente como objectivo assegurar um crescimento anual da economia de pelo menos 3 %. As economias emergentes ambicionam manter crescimentos anuais superiores, como é o caso da China, que nos últimos trinta anos teve um crescimento médio anual de cerca de 10 %. Imaginemos, porém, que se elege como objectivo um crescimento anual da economia mundial de 3 %, o que, tendo em conta as tendências e expectativas recentes, é bastante modesto. Se fosse possível manter este crescimento exponencial indefi nidamente, a produção económica duplicaria todos os 24 anos. No ano de 2084, a produção económica global seria oito vezes maior do que em 2011. Será isto credível? O crescimento exponencial da oferta e do consumo material não é indefinidamente sustentável. Poderá satisfazer as nossas expectativas imediatas, mas conduz necessariamente a uma situação de ruptura e crise num futuro mais ou menos próximo.

[…] O sistema económico global tem evoluído no sentido de optimizar a satisfação do nosso desejo de usufruir um consumo crescente de bens e serviços no curto prazo. Neste aspecto, o capitalismo tem tido um enorme êxito. Este êxito, porém, põe em causa a sustentabilidade do sistema económico global a médio e longo prazo. No actual sistema, os preços das mercadorias e dos produtos são baseados na procura e oferta de curto prazo e o seu cálculo não inclui nem a avaliação das reservas dos recursos naturais e dos custos de uma eventual escassez futura, nem os custos das externalidades ambientais negativas decorrentes da sua utilização. Os prejuízos e os custos que as gerações futuras terão de suportar em virtude da escassez de recursos e dos impactos gravosos das alterações globais do ambiente não têm um valor material no presente devido à inexistência no sistema capitalista de uma metodologia própria para os contabilizar e incorporar nas transacções actuais.

[…] O sistema tende a extremar as diferenças económicas porque privilegia aqueles que têm maior capacidade e oportunidade de gerar riqueza, de investir e de consumir, ou seja, aqueles cujo comportamento constitui o seu paradigma. Se a economia não cresce, o desemprego aumenta, a produção diminui, a capacidade de suportar a dívida diminui, o acesso ao crédito é cortado, entra-se em recessão, diminui a qualidade de vida, aumenta a instabilidade social e a insegurança das pessoas e bens. Actualmente, o crescimento económico contínuo é o único mecanismo que permite evitar o declínio ou o colapso.

O mais provável é um decrescimento generalizado do poder de compra e da qualidade de vida na maioria dos actuais países mais industrializados.
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Qual a solução para este dilema aparentemente insolúvel? Ainda não temos nem a teoria nem a experiência de um sistema alternativo de uma economia em estado estacionário que satisfaça expectativas de prosperidade das populações. Todavia, começam a desenvolver-se estudos e iniciativas nesse sentido. O objectivo é criar um modelo económico e financeiro que assegure estruturalmente a equidade social à escala global e nacional, e que incorpore a dependência de médio e longo prazo da economia nas variáveis ecológicas, ou seja, que assegure uma interferência mínima, controlável e sustentável no sistema terrestre e nos seus subsistemas. Na actualidade, este objectivo afigura-se à primeira vista impossível de atingir, mas a realidade incontornável é que caminharemos para crises sucessivas de natureza social, financeira, económica, política e ambiental se não encontrarmos um caminho para a sustentabilidade global do desenvolvimento. Tal implica novos modelos de economias que tendam para um estado estacionário ou que oscilem em torno de um estado aproximadamente estacionário. No processo de construção desses novos modelos haverá provavelmente crises inevitáveis que farão parte do processo de ajustamento e resposta às insustentabilidades do actual sistema financeiro e económico. Não se trata aqui das crises recorrentes do sistema capitalista cujos ciclos e causas são bem conhecidos, mas de crises resultantes da enorme dificuldade ou incapacidade de o próprio sistema se adaptar a uma escassez crescente de recursos naturais e a alterações globais progressivamente mais gravosas.

[…] A grande maioria da população dos países mais desenvolvidos não tem plena consciência e conhecimento da grandeza e da complexidade das transformações globais em curso a nível financeiro, económico e ambiental e dos impactos que irão ter sobre a sua qualidade de vida. Os cidadãos têm tendência a manter as mesmas expectativas de crescente segurança social, crescente consumo de bens e acesso a serviços, crescente uso de recursos naturais e crescente mobilidade a que foram habituados durante a Grande Aceleração do desenvolvimento iniciada depois da Segunda Guerra Mundial. Contudo, o mais provável é um decrescimento generalizado do poder de compra e da qualidade de vida na maioria dos actuais países mais industrializados. A continuidade do actual paradigma de desenvolvimento económico global implicará que as desigualdades de riqueza continuem a acentuar -se e que permaneça uma pequeníssima fracção do tecido social cuja qualidade de vida continuará a aumentar, em termos dos padrões convencionais contemporâneos. A percepção desta realidade numa situação de crescente desemprego e recessão para a esmagadora maioria da população tem mobilizado a contestação sobretudo de jovens em muitos países.

Filipe Duarte Santos é o autor de Alterações Globais, um livro publicado pela FFMS, de onde este excerto foi retirado.

Imagem de capa: fotografia de Patrick Hendry tirada nos Estados Unidos e publicada no Unsplash.

 

O acordo ortográfico utilizado neste artigo foi definido pelo autor.

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