As novas relações que abalam a monogamia
Reveja o Fronteiras XXI «Como se vive a sexualidade, hoje?»
Em quase nenhuma espécie, ao contrário do que se pensava, há monogamia genética. É essa a conclusão da investigação feita pelo biólogo e antropólogo português Rui Diogo, da Universidade de Medicina de Howard, nos EUA que está a escrever um livro sobre o tema. Um bom exemplo, diz, são os gibões, que nos últimos tempos tinham sido usados como um caso de primatas que podiam ser um modelo de monogamia. “Estudos genéticos vieram revelar que afinal não o são”, diz o investigador, explicando que esses trabalhos verificaram que na comunidade dos gibões os “filhos não são todos dos mesmos pais, como se pensava”. Praticam, isso sim, uma monogamia social, diz: “Gostam de estar em casal naturalmente”.
Já os humanos, defende o investigador, não são pura e simplesmente monogâmicos. Pelo menos, diz, de forma natural. E essa realidade, garante Rui Diogo, está visível nos dados sobre infidelidade, divórcios, mas também na história, na biologia e na genética.
A monogamia natural é sem dúvida uma das questões que mais se debate hoje em dia quando se fala da sexualidade no século XXI. Com uns a refutarem esse ideal e outros a validarem a mais convencional configuração de relação no mundo Ocidental. O popular colunista e escritor norte-americano Dan Savage, por exemplo, já defendeu várias vezes que “a monogamia funciona em alguns casais mas, para uma maioria expressiva, pode ser uma obsessão e mesmo uma prática desonesta”. E muitos investigadores, como Christopher Ryan, autor do famoso livro ‘Sexo ao Amanhecer’ e de outros sobre as origens pré-históricas da sexualidade humana, defendem que a monogamia não é um impulso biológico natural, mas sim uma construção social.
No entanto, há estudos, como o que foi publicado no ano passado na Revista PNAS, da Academia Nacional de Ciências dos EUA, em que os cientistas da Universidade do Texas em Austin, EUA, afirmam ter concluído que a origem da monogamia está associada aos genes. Ou seja, segundo os investigadores, que analisaram cinco espécies, há genes que estão ligados à monogamia e outros à poligamia. No entanto, a investigadora principal admitiu que “não é possível garantir que nos humanos a definição do comportamento monogâmico ou poligâmico tenha influência do ADN”
Seja como for, o assunto está a gerar debate há algum tempo, confirma a psicóloga Catarina Lucas, que explica as questões que hoje se analisam cada vez mais: “Faz sentido continuar a falar de monogamia? Faz sentido termos relações abertas? Somos feitos para a exclusividade nas relações?”.
A psicóloga e terapeuta de casal – que está a concluir uma tese de doutoramento sobre o desejo sexual em relações longas – admite que não tem resposta definitiva para tudo, mas considera ser necessário pensar-se no assunto para se encontrarem soluções. Até porque há hoje uma maior “dificuldade em manter relacionamentos longos”. Ana Alexandra Carvalheira, professora e investigadora do ISPA-Instituto Universitário tem a mesma opinião e não duvida de que actualmente as relações “estão mais curtas” o que corresponde também a uma maior “troca de parceiros” ao longo da vida.
Talvez seja essa dificuldade em manter relações, acredita a psicóloga Catarina Lucas, que está a levar “cada vez mais pessoas a falar sobre o tema da exclusividade e a questionar a possibilidade de terem relações abertas” – onde há uma união base e cada um pode, depois, ter outros parceiros sexuais.
Às suas consultas chegam actualmente muitos casais que debatem essa ideia. “Mas nem sempre é fácil pô-la em prática”, diz, sublinhando que envolve outros factores que podem sabotar esse modelo relacional, como o ciúme. Por isso, em muitos casos a relação não resiste. “Há ainda o peso da nossa cultura na monogamia”, acrescenta a psicóloga, lembrando que a mudança do papel da mulher na sociedade também teve grande impacto nas alterações que se registam.
O termo relações abertas tornou-se popular, dizem vários autores, nos anos 70, em especial com livros e conceitos de dois casais norte-americanos que chamaram a atenção do mundo inteiro para o tema. Eram eles Nena e George O’Neill, que lançaram o livro Open Marriage (Casamento Aberto – as novas relações conjungais) em que falam de um tipo de relacionamento diferente do tradicional casamento monogâmico. Foi também o caso do sexólogo e biólogo Robert Francoeur, e da sua mulher, que introduziram a ideia de monogamia flexível. Segundo argumentavam, um casamento longo com casos extraconjugais é mais estável do que vários casamentos curtos monogâmicos.
Entretanto, e apesar de inicialmente a ideia se destinar a casamentos entre heterossexuais, com o tempo começou a ser associada aos homossexuais.
Um estudo nacional publicado este ano na revista da Sociedade Portuguesa de Psicologia da Saúde dá conta dessas duas realidades, nomeadamente em Portugal: se, por um lado, mostra que o ideal de exclusividade pode estar, de facto, a mudar, por outro revela que a questão ainda é muito ligada a pessoas com determinadas orientações sexuais. “A maioria das culturas ocidentais assume o padrão relacional monogâmico como o ideal nas relações de compromisso, ainda que este padrão seja hoje menos frequente e particularmente entre minorias sexuais”, dizem os autores do trabalho, Pedro Alexandre Costa e José Alberto Ribeiro Gonçalves, do ISPA – Instituto Universitário. Os investigadores analisaram o que se chama não monogamias consensuais. Ou seja, relações em que entre as duas pessoas há consentimento mútuo para se ter mais parceiros – ao contrário das que são monogâmicas, em que isso significa uma traição.
O estudo contou com a participação de 1725 voluntários, entre os 18 e os 73 anos e que estavam num compromisso – alguns de apenas um ano e até 52, tendo várias orientações sexuais. Os resultados mostraram que 19% dos participantes mantinha “um acordo relacional não monogâmico” e 8% partilhava “um relacionamento afectivo-sexual com mais de uma pessoa” . No entanto, explicam os investigadores, “os participantes heterossexuais revelaram atitudes e desejo de envolvimento em relações sexuais mais restritivas e atitudes menos abertas a relações não monogâmicas do que os participantes homossexuais e plurissexuais”.
Verificou-se também que “os plurissexuais tinham ainda “maior abertura a relações não monogâmicas do que os homossexuais”. Já quanto ao género, as mulheres mostram mais vontade de terem uniões mais conservadoras e assumem-se mais adeptas da monogamia do que os homens.
Apesar disso, assiste-se entre o sexo feminino a um aumento da infidelidade. “Hoje não se pode dizer que os homens traem muito mais do que as mulheres”, avisa a psicóloga Catarina Lucas, explicando que, nos últimos anos, as taxas de infidelidade entre homens e mulheres foram-se aproximando. Foi esse o cenário descrito por um estudo divulgado na revista científica Psychological Bulletin, segundo o qual 42% dos homens e 38% das mulheres traem os companheiros.
O investigador português em Howard, Rui Diogo, aproveita uma investigação recente nos EUA para demonstrar essa realidade. “Num inquérito feito às norte-americanas, entre as que têm hoje 80 anos, só 6% assumiu ter sido infiel. Enquanto que nas que têm 30 anos, 12% confessou já ter traído. E estas só em três décadas de vida”. Em relação os homens, entre os que têm agora 80 anos 26% assumiram ter traído, já nos jovens de 30 só 11% dizem fazer o mesmo. “Ou seja, entre os inquiridos de 30 anos, a mulher é mais infiel”.
Sendo dada como uma das causas de muitos divórcios, a infidelidade chega, no entanto, a ser menos mal vista se envolver amor e não apenas sexo, defende nos seus trabalhos de investigação a norte-americana Jes L. Matsick, professora de Psicologia, que tem publicado dezenas de estudos sobre sexualidade.
É exactamente a capacidade de multiplicar esse amor ao mesmo tempo, por várias pessoas, que está na base de uma outra forma de não monogamia consensual de que se fala muito hoje em dia – o poliamor.
“Passa por manter relações íntimas, sexuais e amorosas com várias pessoas ao mesmo tempo. É o modelo em que se amam várias pessoas ao mesmo tempo”, começa por explicar o investigador e professor universitário Daniel Cardoso. “Tanto as relações abertas como o poliamor são ‘não monogamias consensuais’. Mas há mais, como o swing (troca de casais)”, acrescenta.
O investigador – que desde este ano começou também a colaborar com o Departamento de Sociologia, da Universidade Metropolitana de Manchester, no Reino Unido – esclarece as diferenças: nas relações abertas, há uma relação base em que depois pode cada um separadamente ter sexo esporádico com outras pessoas; já no poliamor, à partida, as relações têm todas a mesma hierarquia. O professor universitário, que se assume como não monogâmico, tem dedicado grande parte do seu tempo a estudar este tema. “Em Portugal existem relações não monogâmicas desde há muito tempo. Mas agora há mais visibilidade, o que permite que as pessoas se organizem socialmente e não se mantenham isoladas”. E, segundo Daniel Cardoso, o poliamor tornou-se “famoso” nas últimas duas décadas. “O vocábulo entrou em dicionários de Português de Portugal, num número crescente de publicações académicas e foi até integrado em projectos de investigação com financiamento público de vulto”, diz.
Aliás, neste momento, Daniel Cardoso está a realizar um projecto com apoios da União Europeia em que pretende descrever os movimentos sociais das ‘monogamias não consensuais’ em Portugal nos últimos dez anos, nomeadamente a forma como a comunicação social os relata. Os dados preliminares dão conta da popularidade do poliamor, sendo este o modelo mais falado, entre as relações não monogâmicas.
A facilidade em apaixonar-se era desde sempre um sinal, mas a veterinária Ana Ferreira só quis lidar assumidamente com esse facto quando se divorciou. “Só no início de 2019 reflecti verdadeiramente e questionei a monogamia”, conta. Na época estava a terminar o relacionamento com o pai dos seus filhos: “Eu tinha necessidade de abrir a relação e ele não aceitou essa realidade”. Nessa altura, e depois de fazer algumas pesquisas, descobriu o conceito de poliamor. “Percebi que seria essa a minha escolha dali para a frente”, diz, garantindo: “Nunca fui feliz muito tempo em relações tradicionais, mas nunca tinha reflectido sobre alternativas éticas à monogamia”.
Foi também no final de uma relação longa, que começou aos 16 anos e terminou quando tinha 22, que Gabriela Marramaque decidiu reavaliar “um monte de coisas”.
Hoje, três anos mais tarde, assume ser “poliamorosa” e uma pessoa “transgénero: “Não sou nem homem nem mulher”.
Já teve vários parceiros ao mesmo tempo, que no dia a dia geria, explica, como um “jogo de Google calendar xD”. Actualmente, tem apenas uma relação. “Mas não é uma relação monogâmica, ambos podemos estabelecer outras relações de vários tipos com outras pessoas”.
Também Mariana Guerra, gestora de equipa de uma consultadoria académica, de 27 anos, decidiu neste momento interromper as suas relações poliamorosas para viver uma relação monogâmica. “Foi uma situação bem negociada que pode mudar a qualquer momento”, diz, contando que dura há um ano e foi o resultado de uma relação que começou com uma simples amizade.
Mariana, que neste momento vive e trabalha no Reino Unido, passou a sua adolescência e início de juventude em relações tradicionais mas depois de, em 2014, ter acabado um relacionamento de vários anos, conheceu alguém que a aproximou de pessoas que praticavam o poliamor, e passado algum tempo, mantinha três relacionamentos ao mesmo tempo, de forma assumida.
“Não havia hierarquia nas relações. Nenhuma delas era prioritária”. Tinha uma vida com cada um deles (o Miguel, o Guilherme e a Sofia). Chegaram a estar os três no mesmo jantar a festejar os seus anos. Mariana é hoje também uma das pessoas que dá a cara pelo PoliPortugal – um colectivo informal que divulga e promove o debate sobre este modelo de relacionamento, alertando para os principais problemas. “A sociedade está montada para a monogamia”, refere Mariana Guerra, lembrando que as leis que existem – como as das uniões civis e outras – servem todas para proteger o modelo mais tradicional.
Estas leis são, no entanto, um dos argumentos que o biólogo Rui Diogo usa para “demonstrar” que “a monogamia não é natural: “Se os homens fossem naturalmente monogâmicos não eram precisas leis. Tal como não é preciso lei para bebermos água”. Para o investigador e autor de dezenas de artigos publicados em várias revistas internacionais, o que é natural é a poligamia. E, para o atestar, usa a história, a biologia e a fisiologia que explicam a relação entre géneros. Por um lado conta, não há fundamentos biológicos para a monogamia. “Até as fêmeas chimpanzés, muito semelhantes aos homens, têm a cada 40 dias (período da menstruação), sete a oito parceiros”. Por outro lado, recordando que ainda hoje as tribos da Amazónia são poligâmicas, o também professor de Medicina frisa que o dirmofismo (diferenças físicas entre homens e mulheres) é “prova” de que sempre foi assim. Isto através dos ossos, que, revela, permitem ver que tipo de relação existia. “Quando o tamanho dos ossos é idêntico entre homens e mulheres significa que havia monogamia social. Quando os do homem são maiores – e portanto faz com que sejam mais altos – é sinal de que estes tinham de se impor, lutar com os outros machos” e que eram polígamos.
E aí entra a História, conta Rui Diogo, para demonstrar que a monogamia foi criada pelos homens e imposta inicialmente às mulheres, quando começou a agricultura. “A agricultura trouxe a ideia de propriedade privada e esta criou o conceito de herança. Nessa altura o homem quer garantir que a sua herança ficava para o seu filho e não para o de outro homem e aí impôs a monogamia à mulher”, indica, explicando que a aliança de casamento começou por ser um anel que se colocava com força e não saía do dedo da mulher para simbolizar que era já propriedade de alguém.
Mas se o investigador considera que a monogamia não é natural, também tem a mesma opinião em relação ao modelo do poliamor. “Também não há nenhuma espécie que ame 10 pessoas ao mesmo tempo. No fundo, essa poliamoria é uma validação de que ter sexo sem amor é mau e por isso dizem que amam toda a gente”, argumenta, concluindo: “Fisiologicamente não há relação entre amor e sexo, pode-se amar alguém e desejar outra pessoa e isso, pelo menos isso, aplica-se ao homem e à mulher”.
Para além do abanão que está a ser dado no ideal de monogamia, há outras tendências que estão a marcar o século XXI. Uma delas é a aceitação da diversidade de géneros. “Estão descritos pelo menos 23, segundo a Sociedade Americana de Sexologia”, refere a psicóloga Ana Tapadinhas. Estas identidades, afirma, sempre existiram, mas agora “deram-lhes nomes”. Entre eles estão o fluído, o não binário, o andrógino e muitos outros. “Há mais aceitação da diversidade e cada vez os conceitos são mais inclusivos dessa diversidade”, refere Ana Carvalheira, que aponta outra novidade trazida pelo novo século: “O foco no prazer”. O que está relacionado com a mudança do papel da mulher ao longo dos anos. “Há mais igualdade de género”. E isso acabou por mudar a abordagem, deixando de se focar apenas na “falta de desejo da mulher e na perfomance do homem”.
Por outro lado, chegou também uma revolução trazida pelas novas tecnologias e pelas redes sociais. Por um lado, nota Ana Carvalheira, ajudou as minorias sexuais a perceberem que há outras pessoas como elas. Por outro, defende Ana Tapadinhas, está a criar uma nova geração com alguns riscos no que toca aos relacionamentos. “Escondem-se atrás de uma realidade virtual e muitos hoje em dia nem querem depois intimidade, sendo complicado terem proximidade e assumirem compromissos”, nota a psicóloga,
Apesar de não ter resposta certa para a pergunta sobre se a exclusividade estará em risco, tem uma certeza: “Os jovens têm dificuldade em assentar”. Já Rui Diogo está disposto a arriscar. ““Se se colocasse, à nascença, 30 miúdos numa ilha deserta sem as regras da sociedade e ali crescessem, eu apostava tudo, e acredito que os outros biólogos, em como não teriam um modelo monogâmico.”
O acordo ortográfico utilizado neste artigo foi definido pelo autor