Guerra russa na Ucrânia: ano 2, ou melhor, ano 10
«Em paz, os filhos enterram os pais; em guerra, os pais enterram os filhos»
Resposta de Creso a Ciro, o Grande por Heródoto, «Histórias», Livro I, parágrafo 87.4.
Começo este texto sobre a guerra russa na Ucrânia com um «amigo» da minha vida: Heródoto. Um dos grandes nomes do antigo mundo helénico e da civilização europeia e que muitos, muitos séculos depois continua a ser um poço de sabedoria.
Nesta frase tão simples e tão directa encontramos a essência de como explicar o modo como a guerra nos vira do avesso. É este o ponto de partida para compreendermos o que se passa na Ucrânia desde 2014, pois foi nesse ano que a Rússia anexou a Crimeia e começou a guerra na parte leste do território ucraniano.
Mapa com as fronteiras da Europa em 2014, ano da anexação russa da Crimeia (©️«The Economist»)
Em 2022, o Kremlin decidiu levar a cabo uma «invasão em larga escala». Entramos hoje, dia 24 de Fevereiro de 2024, no terceiro ano dessa invasão ou, segundo a Rússia de Vladimir Putin, da «operação militar especial».
Há duas perguntas que me fazem muitas vezes: quando termina a guerra? E a Ucrânia conseguirá vencer? A resposta mais honesta a estas duas perguntas é simples: não sei.
Do ponto de vista dos ucranianos, dificilmente podemos ter dúvidas da sua vontade de vencer e do modo corajoso, determinado e muito engenhoso na conduta desta guerra. Basta pensarmos no que a Ucrânia tem conseguido fazer no Mar Negro com poucos recursos e a destruição paulatina da Marinha russa. No entanto, o engenho e a imaginação compensam a falta de recursos e de logística militar até certo ponto.
Em bom rigor, a resposta a esta pergunta não passa pela Ucrânia, mas sim por duas rotas diferentes: a dos apoiantes de Kyiv e a dos correligionários de Moscovo.
Neste sentido, há quatro perguntas que nos ajudam a descortinar como vai ser, em 2024, o rumo desta guerra.
Mas, ainda antes de olharmos para estes pontos de análise, há uma certeza em matéria europeia. Se a Rússia prevalecer nesta guerra um resultado óbvio será a fractura da UE e da NATO, ou seja, passaremos a ter duas Europas: a que não olhará a meios para se defender da ameaça russa como a Finlândia, a Lituânia e a Polónia, e a que tentará regressar à vida «normal».
Por outras palavras, os países europeus da NATO e dentro da UE vão rachar-se em dois campos. Para alcançarmos o impacto institucional de uma derrota ucraniana temos de olhar para este mapa da Europa da Guerra Fria.
Mapa com as fronteiras da Europa em 1949-1989 (©️«The Economist»)
Na prática, quanto mais vermelho na Europa, maior a preocupação com a Rússia. As excepções, em termos de antigo território soviético, são a Bielorrússia e, relativamente à Europa da «Cortina de Ferro», a Hungria de hoje e talvez a Eslováquia, pois tenho dúvidas que o líder eslovaco, embora pró-Moscovo, vá enfrentar as instituições de modo tão violento e intenso como o seu congénere húngaro.
Precisamos de mais tempo para perceber se Bratislava está disposta a fazer o mesmo caminho de Budapeste.
Guerra na Europa e da Europa?
Em 2024, olhando para as organizações do mundo transatlântico a conclusão a que chegamos é a de que Vladimir Putin reforçou a missão da UE e da NATO. Pensamos na Suécia e na Finlândia, que deixaram de parte a neutralidade e o não-alinhamento, ou na liderança decisiva da Presidente da Comissão Europeia Úrsula von der Leyen.
Em mais um tiro no pé, Moscovo conseguiu a proeza de tornar todos os estados do Conselho do Ártico em membros da NATO (bem sei que a Suécia ainda não o é, mas está quase, segundo a Hungria), evidentemente, com a sua honrosa excepção.
No entanto, se assistimos ao reforço das instituições também temos tido sinais de «fadiga» e de «cansaço» face à guerra. Há países com preocupações socio-económicas muito prementes, bem como sinais de desarticulação entre Bruxelas e alguns dos seus estados-membros mais importantes.
Basta pensarmos nas próximas eleições europeias e a preocupação crescente com o reforço dos extremos iliberais, bem como dos respectivos financiamentos do Kremlin e campanhas de desinformação. Acresce a passagem para segundo plano, do ponto de vista da atenção, face à guerra do Hamas contra Israel a partir de 7 de Outubro de 2023.
Será a UE capaz de articular uma defesa que consiga, mesmo que em registo de mínimos olímpicos, fazer face aos seus problemas? Tenho sérias dúvidas.
A Europa de hoje, com honrosas excepções, parece viver com a ilusão de que é possível voltar à «normalidade» de 2022. E não é só a decisão estratégica face à relação com a Rússia, pois a China levanta desafios bem mais estruturais. A um nível macro, EUA e China estão a medir forças e, nesta rivalidade, a Europa não vai poder ficar de fora. E, depois, temos aqueles países onde a discussão sobre a defesa, o papel das forças armadas, as indústrias de armamento e as decisões de política externa face a este mundo complexo, pura e simplesmente não existe.
Esta guerra na Europa também é DA Europa.
A consciencialização desta realidade só será plena, quando as elites políticas assumirem um papel pedagógico sobre a necessidade de visão estratégica.
Ao longo de 2024, vamos ver se a operacionalização dos F-16 pelos ucranianos terá lugar. Fará toda a diferença. Mais ainda, as munições e toda a logística militar que a Ucrânia necessita.
Iliberalismos variados e o fim do Partido Republicano?
Mas, quando pensamos na ajuda à Ucrânia há, como em tantas outras dimensões internacionais, a pergunta óbvia: e os EUA? Mais ainda, quando 2024 é ano de eleições e é notória a avalanche do movimento de Donald Trump nas primárias do Partido Republicano. Quem vai vencer as eleições em Novembro? A esta altura do campeonato é difícil de descortinar. E, igualmente importante, quem vence as eleições para a Câmara dos Representantes e para cerca de um terço do Senado? Como temos visto, o controlo do Congresso é muito importante para as questões orçamentais e para o envio de ajuda, neste caso, à Ucrânia.
Será que estamos a assistir à morte em prestações (nada suaves) do Partido de Ronald Reagan ou de George Bush, cujas presidências fecharam o ciclo da Guerra Fria?
Se assim for, mais urgente se torna a necessidade da Europa se preparar e «pensar na vida». Já não estamos habituados, pois temos vivido décadas de uma certa desatenção estratégica (para caracterizar de forma elegante), também verdade seja dita, depois de começarmos duas guerras mundiais.
Há décadas que os EUA chamam a atenção para a necessidade de maior autonomia militar e investimento na defesa dos seus aliados. Nesta matéria, a fotografia dos estados-membros da NATO é bastante elucidativa face ao objectivo acordado em 2014 de gastar 2% do PIB em defesa.
Outro ponto importante é a questão da Hungria. É, por demais, visível que Viktor Orbán está alinhado com Moscovo e com Beijing. Por entre recursos energéticos e investimento, Orbán tem feito a sua escolha. A última decisão foi a de um pacto de segurança entre as polícias húngara e a chinesa.
Em termos de democracia liberal, há muito que a Hungria não cumpre os requisitos da UE, assumido aliás pelo próprio Orbán. Estará na altura de avançar para algo mais drástico? O mesmo em relação à NATO, pois basta olhar para o arrastar da adesão da Suécia, inclusive depois de se ter ultrapassado as reticências da Turquia. Não terá a Hungria atravessado o Rubicão? E, cereja no topo do bolo, a Hungria assume as rédeas europeias no segundo semestre deste ano.
Por entre Washington (quem vence as eleições para Presidente e Congresso), Bruxelas e Budapeste, não é difícil de imaginar que a segunda metade deste ano vá ser muito ruidosa.
Sanções à máquina militar russa: desta vez é que é?
Se há tema ao qual a maior parte das pessoas já não reage é, sem dúvida, aos pacotes de sanções. A UE anunciou, recentemente, o seu 13º pacote. Então, porquê o destaque?
A resposta passa pelo alcance destas sanções, pois na lista estão incluídas empresas que têm ajudado a máquina militar da Rússia incluindo estrangeiras. De acordo com a Comissão Europeia, «quatro empresas registadas na China e uma respectivamente no Cazaquistão, Índia, Sérvia, Tailândia, Sri Lanka e Turquia no sector de componentes electrónicos».
Em termos concretos, um dos objectivos, segundo um tweet da Presidente da Comissão Europeia é o de «cortar o acesso da Rússia aos drones». A inclusão destas empresas é importante, pois a Rússia tem conseguido contornar a falta de acesso a um conjunto de componentes cruciais para o seu desempenho militar.
Do lado dos EUA, as sanções são muito relevantes e, mais ainda, pós-assassínio de Alexei Navalny: «aos seus apoios e à sua máquina de guerra». Aliás, nesta matéria especifica os EUA fizeram um trabalho preparatório muito minucioso liderado por Daleep Singh (muito bem documentado pela «New Yorker»), bem antes do inicio do conflito.
No entanto, há aspectos diplomáticos importantes para o sucesso das sanções, ou seja, Washington e Bruxelas têm de ser capazes de ir além dos «suspeitos do costume» no apoio à Ucrânia. Há alguns países para os quais a «zona cinzenta» tem sido muito benéfica.
Se pensarmos na Índia e na falta de recursos energéticos para a sua economia e população de cerca de 1400 milhões de pessoas é fácil de entender a compra de petróleo russo. Mais ainda, quando a Índia vai a eleições em Abril e Maio deste ano. Tudo indica que Modi irá vencer com maioria, mas em ano eleitoral quaisquer críticas externas serão ainda menos «bem-vindas». Nova Deli tem também uma relação estável e duradoura com Moscovo, embora com Modi a aproximação a Washington e a preocupação com a ameaça de Beijing pesem mais na política externa.
A Índia, juntamente com o Japão, a Austrália e os EUA são peças cruciais da estratégia do «Indo-Pacífico». Vai ser interessante vermos qual vai ser o impacto prático e político destas sanções. Conseguirá a Índia agradar a gregos e a troianos? Ou Washington?
Outro país na berlinda é a Turquia, embora sejam turcos os drones que tanto têm ajudado a Ucrânia. A necessidade de manter os estreitos e o comércio no Mar Negro operacionais é muito importante para a República da Turquia, como é a dimensão energética e as enormes dificuldades da economia deste país, são factores que explicam muito bem a posição «nim» da Turquia.
Esta posição vai ser difícil de manter, pois não nos podemos esquecer que a Turquia é estado-membro da NATO. Mais um caso muito interessante a seguir ao longo de 2024.
Se a Rússia vencer a guerra fica mais forte?
A resposta é dupla. Na perspectiva do reforço das ditaduras e regimes iliberais no mundo, a resposta é afirmativa e países como a China, o Irão e a Coreia do Norte irão partilhar esse entusiasmo. Mais ainda, porque uma vitória russa e a destruição da soberania ucraniana significam um alerta maior dentro da UE e da NATO por países como a Polónia e a Lituânia, que para além da história terrível e memórias cruéis de Moscovo, partilham a fronteira com o exclave russo de Kaliningrado e a vizinhança da Bielorrússia (ver mapa 1). Serão tempos conturbados dentro das duas organizações.
Por outro lado, a resposta é negativa. No final da guerra, dure o tempo que durar, a Rússia estará mais dependente de uma boa relação com a China. A história diz-nos como esta é uma relação muito, muito complexa. Nesta fase e para as televisões ficam os sorrisos e os apertos de mão entre Vladimir Putin e Xi Jinping. Mas, dentro de portas, Putin só pode pensar nas consequências de uma subalternização russa. Um caso concreto a seguir: a Ásia Central.
Esta região é crucial para os dois países. Para a Rússia, pela sua influência dos tempos imperiais e soviéticos e pelo acesso aos recursos energéticos do Turquemenistão, do Cazaquistão e do Uzbequistão.
Para a China, pela necessidade de impedir qualquer apoio aos uigures muçulmanos em Xinjiang, vindo desta região, bem como pelo acesso aos mesmos recursos. De forma serena e paulatina, a China tem vindo a dividir as atenções das elites desta região com a construção de dois pipelines e o protagonismo na sua Nova Rota da Seda.
Para além desta rivalidade, países como o Cazaquistão e, no Cáucaso, a Arménia, que são aliados tradicionais da Rússia, ou pelo menos, muito cuidadosos na sua política externa, têm vindo a afastar-se da posição russa no que toca à guerra na Ucrânia. No caso da Arménia, a falta de ajuda russa face aos ataques do Azerbaijão fez a elite arménia questionar o valor desta relação bilateral.
Mesmo no resto do mundo há relações importantes russas com países como a Africa do Sul do ANC ou o Brasil de Lula da Silva e, no caso da dimensão militar e de serviços de «segurança», com vários países da região do Sahel. No entanto, parece-me que, mais cedo ou mais tarde, essa influência será «engolida» pela China. Por outras palavras, a segunda maior economia do mundo tem feito um percurso inteligente nos países em vias de desenvolvimento.
Em suma, a guerra russa na Ucrânia é crucial para o futuro da UE e da NATO, bem como para a evolução da rivalidade entre os EUA e a China.
Termino este artigo recorrendo a outro grande «amigo» da minha vida e também figura incontornável do antigo mundo helénico: Tucídides.
Na sua «História da Guerra do Peloponeso» encontramos estas palavras sábias do rei espartano Arquidamo (Livro I, Parágrafo 84.4):
«É necessário acreditar que um homem não é muito diferente do outro, mas que é de facto mais forte todo aquele que faz a aprendizagem nas circunstâncias a que não pode escapar.»
Zelensky e os ucranianos sabem bem o alcance desta afirmação. E nós?
*A Autora escreve sem o Acordo Ortográfico