Gratidão e Culpa: Recuperar de um distúrbio alimentar

Os últimos dados registados sobre anorexia nervosa em Portugal datam de 2001, de acordo com um programa da SIC, e é preocupante a escassa sensibilização do público para o problema. Se a informação sobre a anorexia é tão escassa, o que se passará com os dados relativamente aos outros distúrbios alimentares, igualmente comuns, que não se encontram no spotlight?

Além desta doença, muitas das vezes totalmente romantizada e retratada com recurso a estereótipos, encontramos os típicos mitos que criam as nossas representações sociais. Representações estas irreais e inquietantes? Talvez. Representações alimentadas pela população em geral e pelas diversas indústrias, que desejam afirmar-se numa perspetiva global? Talvez. Representações de que dificilmente nos livramos? Talvez.

Os distúrbios alimentares são doenças. Partindo deste princípio, acredita-se que possuem um início e um fim, com um vacuum preenchido por um período apelidado de «recuperação». Pensando empiricamente neste conceito, «ajuda médica», da nutricional à psicológica, será aquilo que a maioria de nós pensará ser a chave.

Todavia, nem sempre é exequível obter este apoio fundamental, seja por questões financeiras ou, pior, por descrédito.  Portanto, partindo de pura experiência (e não de formação médica), com um período relativamente longo sobrevivido numa amálgama de anorexia, bulimia e ortorexia, o meu objetivo é perspetivar os três R’s que, pessoalmente, me retiraram do inferno em que me afundava progressivamente.

•  Reconhecer – Recordo-me, aos 13 anos, de reconhecer que tinha bulimia. Fi-lo perante a minha professora de Português, após ela ter denotado alguns red flags, com os quais ela própria estava demasiado familiarizada. Disse-me: «Sabe que deu o primeiro e mais difícil passo – reconheceu que tem um problema». Ainda que não tenha sido capaz de pôr um fim ao problema na altura, o seu conselho foi fundamental, alguns anos mais tarde, quando a anorexia me assolou. Aí, já aos 16, olhei-me um dia ao espelho e reconheci, mais uma vez, que tinha uma tarefa árdua pela frente: recuperar o meu eu interior perdido.

O reconhecer não é uma etapa; é um processo, que não termina quando o peso é restituído (se necessário) ou quando, por um determinado período, os pensamentos intrusivos decidem não se sobrepor à racionalidade. A dificuldade surge pelo enquadramento do distúrbio, uma vez que, e aludindo novamente a Hume, the mind has become accustomed to making these judgements (Hume, 2004, 28). Os hábitos, enterrados na rotina do conforto e do controlo, dão a sensação de normalidade. A programação quase automática dos movimentos, das refeições (quando existem) e dos pensamentos surge com alguma naturalidade, tornando muito difícil reconhecer um problema quando a rotina conhecida é somente aquela.

Outro ponto essencial relativamente ao reconhecer é entender que ele não é uma tarefa unitária, na qual a família e os outros grupos sociais dos quais se faz parte possuem um papel fundamental. Tal como há uma panóplia de «apoiantes», em igual medida poderá haver negação por parte daqueles que nos são mais próximos. Mesmo assim, é possível – é exequível reconhecer.

•  Recomeçar – Se o reconhecer se reflete mais no plano racional, surge a necessidade prática, a posteriori, de pôr em uso o trabalho mental. Quando for necessário restituir o peso, o primeiro passo terá de ser necessariamente este, ainda que seja extremamente difícil acomodar este pensamento numa mente cuja res extensa simplesmente não quer ocupar espaço. Falando por experiência própria, nutrir o corpo de forma gentil ajuda à  consciencialização do problema, ainda que, por alguns anos, tivesse empregado um estado de quasi recovery, no qual hábitos disfuncionais permaneciam demasiado presentes. Revejo-me nas recaídas, quando a culpa era um autêntico paradoxo: culpada porque tive uma recaída, mas igualmente culpada por estar a recuperar. E voltava sempre ao início.

Recomeçar não significa apenas iniciar a construção de uma boa relação com a comida e/ou com o desporto. Significa retomar aos hobbies perdidos, sair com os amigos, aprender a pedir ajuda se possível e, mais do que tudo, sonhar. Sonhar não com o que se perdeu, mas com aquilo que se poderá alcançar no contexto de uma vida saudável. Vida saudável não se refere aos típicos hábitos defendidos nas redes sociais, mas sim àquilo que é o acertado para cada um. É, sem dúvida, uma tarefa desconfortável, tanto de um ponto de vista físico como moral, mas essencial.

• Recuperar – Recuperar, no contexto dos distúrbios alimentares, é um conceito controverso. Há quem afirme que é possível estar totalmente curado. Considero, porém, que o recuperar é uma extensão do reconhecer. Já recuperei o peso, já almocei num restaurante com os meus amigos há pouco tempo, e, mais do que isso, já recomecei a sonhar. Mesmo assim, mentiria se afirmasse que estou completamente livre. Os pensamentos, em determinadas circunstâncias, são mais fortes do que eu. Todavia, sendo também isto que a minha nutricionista me tinha aconselhado, o primordial é saber reconhecer esta dualidade e distinguir entre a minha verdadeira voz e aquela que é impostora. Não obstante esta situação sensível, posso afirmar com toda a certeza que já percorri um longo caminho. A recuperação em si é diferente para cada um, implicando diversas medidas, moldadas no formato da situação e do contexto pessoais, pelo que o objetivo deste artigo não é propriamente apresentar um guia, passo-a-passo, de como o fazer. 

Referi-me a recuperação em relação aos distúrbios alimentares. A verdade, contudo, é a de que, em diversos casos, estes são acompanhados por outras doenças mentais. Por vezes, as suas raízes, igualmente tóxicas, estão tão intrinsecamente interligadas ao(s) distúrbio(s), que a absolvição de um significa o desvanecimento do outro. Por outras, são necessárias futuras intervenções, médicas ou não.

Com o avanço médico atual e com uma literatura cada vez mais ampla na problemática dos distúrbios alimentares na sua generalidade (ainda que não seja o suficiente), o tratamento apresenta-se como uma realidade palpável. Relembro um artigo do Observador sobre o tratamento da anorexia através de choques elétricos, já utilizados no tratamento da esquizofrenia e da perda de memória anteriormente. É claro que estas intervenções, para quem tem acesso, são fenomenais, para além do acompanhamento médico e psicológico. Contudo, tenderia a acreditar que a mudança parte de dentro, de nós mesmos. O compromisso em seguir os três R’s, de ser autêntica perante mim mesma e de retomar ao meu telos são produtos de decisões pessoais, pensadas e refletidas em períodos de desespero e escuridão.

Durante demasiado tempo senti-me culpada e envergonhada; hoje, estou grata. É claro que se tivesse aprendido e crescido da mesma forma, mas sem a implicação de anos de sofrimento, tê-lo-ia preferido. No entanto, como afirma Marco Aurélio, «O que se segue está sempre intimamente interligado com aquilo que passou» (Aurélio, 2021, 48). Assim, não posso simplesmente apagar o passado, estando este na base daquilo que sou hoje. Posso apenas demonstrar gratidão – seja porque vi o abismo e de lá saí, seja porque estou hoje a partilhar isto.