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Estatísticas, o abecedário do futuro

Estatísticas, o abecedário do futuro

Artigo da autoria da directora da Pordata, Maria João Valente Rosa. Publicado originalmente em 2013, pelo Conselho Superior da Estatística.
7 min
Ensinar a ler e a contar é a primeira preocupação da escola, o que significa confrontar as crianças desde logo com a necessária convivência com as letras e os números, competências básicas de contacto com duas formas elementares de apreensão da realidade que nos rodeia.

 

No passado, essas eram, aliás, competências que quase bastavam por si; hoje já não é assim. O mundo mudou, sofreu alterações profundas e rápidas nas últimas décadas. A evolução tecnológica reduziu distâncias e a informação transformou-se no bem menos escasso da actualidade. Um artigo da revista The Economist (Fevereiro/Março, 2010) estima para 2012 que a informação total (palavras, números, imagens,…) existente no mundo corresponda a 2 zettabytes, ou seja, o equivalente a cem milhões de vezes a informação da maior biblioteca do mundo: a do Congresso Americano.

O aumento exponencial dos zettabytes disponíveis no mundo exige que cada vez mais possamos utilizar medidas que sintetizem grandes quantidades de informação e permitam a comparação da complexidade das realidades no tempo e entre territórios. Por exemplo, como podemos saber que a Biblioteca do Congresso americano é a maior do mundo? Contando o número dos seus livros e os das outras? Mas as bibliotecas não têm só livros! É então possível, através da digitalização dos mais diversos documentos (livros, fotografias, filmes,…), saber qual a sua dimensão através de um conceito novo, o byte. Assim, pelo recurso a tecnologias avançadas, a conceitos e a técnicas de análise numérica, conseguimos comparar de forma precisa, através de números, grandezas até aqui impossíveis de equiparar. Aliás, lê-se no Le Monde (Janeiro, 2013) que a empresa Google “sabe mais sobre a França” (ou tem hipótese disso) que o INSEE (Instituto Nacional de Estatística e de Estudos Económicos). Como seria possível ter tal conhecimento sem o recurso aos “números”?

Entre os vários tipos de números que povoam o nosso quotidiano, os dados estatísticos ocupam um lugar de relevo.

Estamos a falar de números, mas de números muito especiais em que o conteúdo social está presente; diferentes, portanto, dos que normalmente usamos quando fazemos cálculos matemáticos ou de estatística aplicada nas actividades de investigação em áreas científicas particulares. São números que medem as características das múltiplas variáveis do sistema económico, social ou cultural, desde as exportações de determinados produtos ao número de visitas às salas de cinema, desde o número de filhos que temos à percentagem do PIB investida na Educação. Esses números reflectem pessoas e os seus comportamentos ou decisões, mas também a vida e a dinâmica mais global das sociedades; é a esses que nos passaremos a referir a propósito da capacidade que temos de os apreender, ou seja, da literacia estatística.

Sabemos que mais informação estatística não significa que sejamos necessariamente mais conhecedores do que no passado, quando a informação era escassa e servia apenas para saciar umas poucas elites, pois embora o conhecimento pressuponha informação, o contrário não é necessariamente verdade. De facto, o excesso de informação pode até dificultar o conhecimento da realidade, por a capacidade de distinção entre o acessório e o fundamental se ver diminuída.

Então, sendo a informação estatística sobre a sociedade muito útil, a sua melhor utilização por um cada vez maior número de cidadãos é um objectivo óbvio que ainda está longe de ser plenamente bem-sucedido.

Mas a aversão primária aos números, por parte de muitas pessoas, não é tão real como alguns ainda afirmam. Por exemplo, quem não faz contas às suas despesas e ao dinheiro que tem disponível? Quem não gosta de saber a probabilidade de chuva para o dia seguinte para decidir se leva ou não o guarda-chuva? Quem não se interessa por conhecer os níveis e áreas de emprego e de desemprego do país?

Há quem argumente como motivo para a iliteracia estatística a “má fama” da Matemática, fruto de longos anos de deficiente preparação e de ausência de motivação para a disciplina, ou que a informação estatística está muito ligada a competências na área da matemática. Trata-se de um equívoco. A compreensão dos dados estatísticos não necessita de conhecimentos aprofundados de matemática.

É, ainda, habitual denegrir os “números” estatísticos, atribuindo-lhes diversos malefícios, como a incapacidade de através deles se conseguir apreender a verdadeira profundidade dos nossos objectos de estudo, apenas supostamente acessíveis através de uma abordagem qualitativa, ou ainda a capacidade de os “números mentirem”. Trata-se de outro equívoco, com os mesmos efeitos indesejáveis: desinteresse, de muitos cidadãos, em compreenderem e interpretarem as estatísticas. E desta incapacidade resulta o facto, não de “os números mentirem”, mas de se aceitarem como verdades “mentiras” construídas por outros. Tal como o indivíduo analfabeto precisa que outros leiam por ele, ficando totalmente à mercê de eventuais erros provocados por terceiros, também o iletrado numérico, ou estatístico, depende do modo como outros escolhem os valores que apresentam. Por comodidade ou dificuldade, ele corre o risco de se deixar enganar por uma má utilização, propositada ou não, dos indicadores que devem ilustrar determinado fenómeno ou característica social. Tal dependência afasta-o, por isso, de um contacto com o mundo real e obriga-o a pensar pela cabeça de outros, ou a viver num mundo virtual por outros criado.

Claro está que as estatísticas nem sempre são perfeitas. A realidade que nos rodeia tem uma complexidade crescente e, como tal, a exigência de a captar nas suas múltiplas facetas não é fácil. Contudo, muito se tem avançado nesta área, em especial no que diz respeito às estatísticas oficiais, fruto designadamente da evolução metodológica, científica e tecnológica.

As portas estão abertas. Hoje, as estatísticas têm mais garantias de qualidade e são bastante mais acessíveis do que no passado: por exemplo, a Internet tornou possível uma estreita proximidade entre os dados e os seus utilizadores e muitas das estatísticas oficiais são já hoje gratuitas e exportáveis. No entanto, há ainda um longo caminho a percorrer.

As escolas têm um importante papel, porque é aí que tudo começa. Além do reforço do ensino da Estatística nos níveis básico ou secundário, importa levá-lo até aos níveis mais avançados do superior, em todas as áreas do saber. Já houve tempos em que se operava uma distinção clara, ao nível da formação superior, entre “Letras” e “Ciências”. Hoje, as fronteiras não são tão nítidas, embora persista o tom da separação, muito marcada, talvez, pela disciplina da Matemática. Mas quando falamos de estatísticas não estamos a falar de uma subárea da Matemática ou de um ramo científico. Uma parte muito substancial da literacia estatística não exige conhecimentos de matemática mais do que rudimentares. Avançar no conhecimento, qualquer que seja a área em causa, tendo sempre como princípio que há uma parte dos factos (os dados estatísticos e alguns conceitos básicos associados) que nos escapa é um erro enorme. Nada do que serve de base à criação de conhecimento sobre o mundo deve ser dispensado.

Os produtores de estatísticas oficiais têm também um papel decisivo, o qual passa por reforçar a sua interacção com os utilizadores e promover a correcta utilização dos dados. Compete-lhes, assim, por exemplo, apresentar de modo mais simples o que por vezes é complexo e disciplinarmente “hermético”. Não é tarefa fácil, sabemo-lo. Mas nem sempre a simplicidade (de linguagem, por exemplo) é contrária ao rigor. Este esforço de se colocar a compreensão das estatísticas também do lado dos cidadãos, e não apenas do lado dos produtores ou dos peritos da área, é essencial. E, sabendo que todos os números têm uma história, uma identidade própria (como uma pessoa), importa contá-la com rigor mas também de forma acessível. A metainformação é uma componente-chave para o entendimento dos dados estatísticos, onde está toda a raiz da confiança nos mesmos. Não é uma componente acessória dos factos estatísticos que apenas serve os mais curiosos e, como tal, o reforço da sua utilização alargada é igualmente muito relevante. A par do aperfeiçoamento da comunicação, a promoção de acções de formação sobre a boa utilização de estatísticas, junto das escolas, universidades, empresas, associações, organizações públicas, etc., é outra linha de actividade a aprofundar.

No Portugal de 1970, 26 % da população com 10 e mais anos não sabia ler nem escrever. Hoje, muito mudou, para melhor. Há mais informação, mas ainda são muitos os cidadãos que nunca se sentiram tão perdidos, hesitando entre mundos virtuais e imaginários que lhes são transmitidos, por vezes, quase impostos.

As estatísticas sobre a sociedade são parte integrante desta nova era, são o novo abecedário do mundo moderno. Alargar a melhor utilização da informação estatística de confiança sobre a sociedade é essencial para a compreensão do mundo e para o fortalecimento de uma opinião informada. Desfazer mitos, alargar as competências de compreensão das estatísticas, reforçar a sua comunicação e simplificar a complexidade da informação são, entre outras, pistas a seguir. Tudo em nome da liberdade de escolha e de pensamento.

Artigo publicado originalmente pelo Conselho Superior de Estatística.
Maria João Valente Rosa é directora da Pordata.

 

O acordo ortográfico utilizado neste artigo foi definido pelo autor.

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