Ensaios da Fundação
Correndo o risco de descortesia para com a ilustríssima anfitriã que tão generosamente acolhe estas linhas, talvez se deva começar por dizer que é algo redutora a oposição entre «apocalípticos» e «integrados» forjada por Umberto Eco no seu conhecido livro de 1964.
Em certo sentido, aquele dualismo, usado por Eco para descrever os fenómenos da comunicação de massas, acabou por se tornar ele próprio num cliché ou lugar-comum da indústria da cultura, fazendo parte da realidade que, ao cabo e ao resto, visava caracterizar.
O mesmo sucedera já, aliás, com a contraposição entre dionisíaco vs. apolíneo que Nietzsche traçou em A Origem da Tragédia, ou a tantas outras polaridades que servem de ferramenta para alcançar o fugidio e o intangível de que a nossa contemporaneidade é feita. Kultur vs. Bildung ou Némesis vs. Hubris (para não falar da distinção entre o ouriço e a raposa celebrizada por Isaiah Berlin), a hegemonia do pensamento binário emerge em muitos lugares, fazendo parte de uma e de outra das two cultures que C. P. Snow apresentou numa famosa conferência proferida em Cambridge em 1959 – e onde, de novo, emerge a tendência para o dualismo como chave hermenêutica do nosso tempo.
Recorde-se que, no prefácio ao seu livro, Umberto Eco advertia, logo nas primeiras linhas, para o facto de ser «profundamente injusto subsumir atitudes humanas – em toda a sua variedade, em todos os seus cambiantes – sob dois conceitos genéricos e polémicos como os de “apocalíptico” e “integrado”». Dizia depois, com desarmante candura, que utilizou aqueles termos porque «dar título a um livro tem as suas exigências»; exigências que, acrescentava, se inscrevem no âmbito da própria cultura de massas…
Desta sorte, se os Ensaios da Fundação Francisco Manuel dos Santos parecem integrar-se de pleno na cultura de massas dos nossos dias – pela sua produção em larga escala, pelos seus propósitos de vulgarização do conhecimento, até pelo seu preço módico –, eles são também «apocalípticos» ou, pelo menos, procuram configurar-se como tal. Com esta afirmação não se pretende reclamar um estatuto cómodo ou travesso de marginalidade e iconoclastia, mas tão-só reivindicar um espaço singular na cidade dos homens. Espaço que é concedido pelo declínio progressivo da cultura do livro em face da hipertrofia doutros veículos de comunicação; lugar que emerge do crescente domínio da ficção de massas, de consumo fácil, no panorama editorial português e, convém dizê-lo, de todo o mundo dito «civilizado».
A esta luz, e pese a sua aparência «integrada» e – porque não dizê-lo? – «conformista», uma colecção de ensaios vocacionada para o grande público tem mais afinidades com a literatura de cordel de outrora do que poderíamos supor. Ambas comungam do mesmo propósito de levar aos outros – a muitos ou a poucos, isso não importa – o que é raro e escasso. Sem passadismos descabidos nem comparações excessivas, esta colecção pretende situar-se na melhor tradição das obras informativas (e, já agora, opinativas) publicadas em larga escala, como a Cosmos, dirigida por Bento de Jesus Caraça, ou a francesa Que sais-je? A circunstância de esta última se inspirar num dito de Montaigne não representa um acaso. Também a colecção Ensaios da Fundação, como o próprio nome indica, estimula e incentiva um olhar ensaístico, subjectivo, pessoalíssimo. Em certos títulos, esse propósito foi plenamente atingido. Noutros, pela natureza do tema, a componente informativa e didáctica sobrepôs-se à dimensão opinativa ou ensaística. Em qualquer dos casos, porém, a regra é sempre a mesma, uma só: aos autores é concedida inteira liberdade de escrita, tendo a colecção um objectivo preciso – fornecer a uma vasta comunidade de leitores, tão vasta quanto possível, visões distintas e plurais sobre assuntos de interesse relevante para a compreensão de Portugal e do mundo. Se esse objectivo foi alcançado, é algo que só o decurso do tempo o poderá dizer. Fica o esforço, dos autores e da Fundação. O que não é pouco!
António Araújo é director de publicações da Fundação. «Ensaios da Fundação» foi originalmente publicado na «Rua Lrga - Rvista da Reitoria da Universidade de Coimbra», nº 45.
O acordo ortográfico utilizado neste artigo foi definido pelo autor