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Mais mar do que terra

A economia azul no novo mundo do coronavírus

"Concretizar as potencialidades do gigantesco mar português não é algo que esteja ali ao virar da esquina. O turismo e pescas respondem por nove em cada dez euros dos lucros das atividades ligadas ao mar no país. A exploração de recursos minerais está longe de ser uma realidade comercial possante. A hipótese mais próxima da exploração de petróleo e gás natural naufragou. E as eólicas offshore estão a dar os primeiros passos."
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Reveja o Fronteiras XXI “Mais mar do que terra”

 

 

Quando a pandemia da COVID-19 se abateu sobre Portugal, os pescadores de polvo do Algarve não deixaram de ir ao mar. O principal impacto do coronavírus no setor foi outro: não havia compradores para o seu valioso produto.

Com os restaurantes fechados no país e nos principais mercados de exportação – como Espanha e Itália –, o preço da venda em lota caiu a pique. Os pescadores tiveram de reduzir a atividade a três dias por semana, até conseguirem finalmente estabilizar o valor em torno dos cinco euros o quilo – uma redução de 40 a 50%.

“O mar é seguro, o que não é seguro é o consumo”, lamenta José Agostinho, presidente da Armalgarve Polvo, uma organização de produtores da região.

O caso do polvo no Algarve é um exemplo de como a pandemia do coronavírus está afetar a chamada “economia azul” em Portugal, numa reação em cadeia envolvendo os seus dois principais pilares. Os setores do turismo e das pescas respondem por nove em cada dez euros dos lucros das atividades ligadas ao mar no país. E se o turismo, o mais importante, vai abaixo como agora está a acontecer, o outro sofre por tabela.

Nos últimos anos, o termo “economia azul” entrou para o discurso político como uma promessa redentora. Envolve a exploração sustentável dos oceanos, não apenas em setores tradicionais, mas também em outros com potencial de crescimento, como as energias renováveis, a aquacultura, a mineração dos fundos marinhos ou a biotecnologia. Tudo isso baseia-se no pressuposto de que ainda há uma fronteira pouco explorada da Terra: a infindável vastidão dos oceanos.

Portugal que o diga. O país tem jurisdição sobre 4,1 milhões de quilómetros quadrados de mar – cerca de 45 vezes a sua superfície terrestre. Desta enorme área, 41% correspondem ao mar territorial e à Zona Económica Exclusiva (ZEE), onde Portugal tem o direito soberano de explorar os recursos da água e dos fundos marinhos. Os 59% restantes estão abrangidos pela proposta de extensão da plataforma continental, que Portugal submeteu às Nações Unidas em 2009 e que ainda está em avaliação. Nesta área adicional, o país tem apenas o direito exclusivo ao leito e ao subsolo marinho.

Mineração dos fundos marinhos: um “mito industrial”

Concretizar as potencialidades deste gigantesco mar português não é algo que esteja ali ao virar da esquina. A exploração de recursos minerais marinhos, por exemplo, está longe de ser uma realidade comercial possante. Do mar, Portugal retira hoje sobretudo areia, cascalho e sal. A hipótese mais próxima da exploração de petróleo e gás natural naufragou com o projeto para um furo de prospeção ao largo da Costa Vicentina, abandonado em 2018 pelo consórcio Eni/Galp, devido à contestação judicial movida por organizações não-governamentais.

As atenções estão agora concentradas noutros recursos que estão no fundo do mar, como as crostas, nódulos e sulfitos polimetálicos contendo manganês, ferro, alumínio, níquel, cobre, cobalto e uma série de outros minerais.

Os estudos da Estrutura de Missão para a Extensão da Plataforma Continental fizeram um primeiro retrato do que há nos mares sob jurisdição portuguesa. Mas o conhecimento ainda não é suficiente. “Falta nomeadamente definir blocos de minério com dimensões, teores e outras características favoráveis, que viabilizem a sua extração com benefícios económicos para o nosso país, incluindo a proteção ambiental”, refere o geólogo Fernando Barriga, da Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa.

Mesmo com estudos mais aprofundados, conseguir explorar esses e outros recursos a grandes profundidades e em zonas remotas será um enorme desafio.  “Transformar o conhecimento em benefícios económicos implica investimento. Não basta lembrar o nosso glorioso passado marítimo”, defende Fernando Barriga.

Num relatório publicado em maio passado, a Deep Sea Mining Campaign – uma associação de organizações não-governamentais e de cidadãos das ilhas do Pacífico, Austrália, Canadá e Estados Unidos – defendeu uma moratória mundial à mineração submarina, até que se conheçam melhor os impactos ambientais da atividade. Fernando Barriga considera que seria útil, mas desde que isto não paralise estudos e investimentos. “Precisamos estar prontos para a mineração submarina, quando esta for necessária”, diz.

O próprio ministro do Mar, Ricardo Serrão Santos, é cauteloso quanto à mineração submarina. “A ideia de que temos recursos minerais em esgotamento e temos de iniciar uma ‘corrida ao ouro’ nos fundos marinhos é um mito industrial”, afirma o governante, que tem larga experiência como investigador em assuntos marinhos na Universidade dos Açores, inclusive sobre o mapeamento do leito do oceano. “Não temos ainda o conhecimento suficiente, nem a necessidade emergente de ir explorar minerais no fundo do mar”, acrescenta.

Áreas marinhas “moderadamente protegidas”

A mineração pode colidir com outros recursos oceânicos, igualmente mal conhecidos mas potencialmente promissores. Muitos depósitos estão associados a fontes hidrotermais – chaminés que expelem água quente e mineralizada, como se fossem micro-vulcões no leito do oceano. À sua volta, florescem organismos únicos, capazes de suportar condições inóspitas de temperatura, pressão e ausência de luz, e que podem vir ser úteis à biotecnologia.

Há pelo menos oito campos de fontes hidrotermais ao largo dos Açores, alguns defendidos por áreas protegidas marinhas criadas nas últimas duas décadas. Quinze destas áreas protegidas compõem agora o Parque Marinho dos Açores, que abrange 246 mil quilómetros quadrados de mar – mais de duas vezes e meia a superfície terrestre de Portugal.

O estatuto de proteção, em si, não é nenhum selo de garantia, e o ministro do Mar é o primeiro a dizê-lo. “Nada pior do que dar um mau nome a um bom instrumento, que são as áreas marinhas protegidas, se não as pomos a funcionar como deve ser”, afirma Ricardo Serrão Santos.

Em 2010, a comunidade internacional adotou uma objetivo de 10% dos oceanos cobertos por áreas protegidas até 2020 – dentro das chamadas metas de Aichi para a proteção da biodiversidade. Portugal assumiu um compromisso mais ambicioso, de 14%. Agora que o prazo está a terminar, o país está com 7%.

Um estudo publicado em 2017 pela organização ambientalista WWF e o Oceanário de Lisboa/Fundação Oceano Azul, envolvendo 71 das 93 áreas protegidas marinhas nas águas sob jurisdição portuguesa, avaliou que a maioria são apenas “moderadamente protegidas”, permitindo-se nelas “atividades com potencial impacto nos ecossistemas”. A maior parte tem estatutos de proteção apenas parcial, muitas não possuem planos de gestão ou regulamentação e algumas ficam em zonas remotas, de difícil fiscalização.

“Está a haver uma corrida para estabelecer áreas no papel, para cumprir a meta”, afirma a investigadora Bárbara Horta e Costa, do Centro de Ciências do Mar da Universidade do Algarve, coordenadora do estudo. “A maior parte das áreas marinhas protegidas são exemplos negativos, porque não têm plano de gestão”, completa. E a terminologia das metas de Aichi, alerta ainda Horta e Costa, é clara: o que se exige são 10% de áreas protegidas “efetivamente geridas”.

Eólicas offshore a crescer

A despeito da dimensão do mar português, é mais junto à costa que repousam as esperanças de desenvolvimento de novas áreas da economia do mar. Uma delas é a instalação de parques eólicos offshore, para a produção renovável de eletricidade. Embora represente apenas 0,1% dos empregos e 0,5% do valor acrescentado bruto da economia azul na Europa, é o setor que mais está a crescer. Há cerca de 5000 turbinas eólicas já instaladas no mar na Europa, a maior parte no Reino Unido e Alemanha. A capacidade instalada pode quintuplicar até 2030, segundo a associação europeia do setor, a Wind Europe.

Em Portugal, a EDP Renováveis tem em curso um projeto de demonstração pré-comercial, o Windfloat Atlantic, em que enormes aerogeradores são suportados por plataformas flutuantes semissubmersíveis. Dessa forma, os parques eólicos podem ser instalados no alto mar, em zonas com mais de 40 metros de profundidade. Três aerogeradores estão já implantados ao largo de Viana do Castelo, produzindo eletricidade suficiente para abastecer 60 mil habitações. É o primeiro parque eólico flutuante do mundo, segundo a empresa, que tem outros projetos de eólicas offshore em marcha na Escócia, Estados Unidos e Coreia do Sul.

Já o aproveitamento da energias das ondas – de que se fala há décadas – não tem tido sucesso. Portugal abrigou um projeto inovador, o Pelamis, em que estruturas flutuantes ligadas entre si, como um comboio, oscilavam ao sabor das ondas, produzindo eletricidade. Três foram instaladas ao largo da Póvoa de Varzim em 2008, mas não suportaram os humores do mar. Tiveram de ser retiradas e a empresa britânica responsável pelo projeto foi à falência.

A pandemia do coronavírus poderá ter efeitos de curto prazo sobre novos projetos de renováveis no mar. A Agência Internacional de Energia acredita que a crise “está a magoar, mas não a estancar” o crescimento das renováveis no mundo, segundo um relatório publicado no passado mês de maio. A agência estima que o ritmo de instalação de nova capacidade renovável – eólica, solar ou outras – deverá cair 13% este ano, mas recuperar os níveis de 2019 em 2021.

Mudanças para o bem e para o mal

A COVID-19 está a ter outro tipos de impactos nos oceanos. Em vários locais, há sinais de que a natureza está a gostar da paragem que a pandemia impôs ao mundo. Há inúmeros relatos de avistamentos de espécies marinhas onde já não se viam ou onde não eram comuns. Por outro lado, mergulhadores têm encontrado, em grande quantidade, um novo integrante da poluição marinha: as luvas e máscaras descartáveis.

A avaliação do que isto de facto representa está a ser comprometida pelas restrições ao trabalho dos investigadores. “Dependemos dos cientistas para observar o que se está a passar, para levantar questões, para recolher dados. Mas, com a COVID-19, eles não podem ir para o seu campo de trabalho”, afirma Christine Ward-Paige, uma bióloga marinha canadiana que lançou um projeto colaborativo para tentar contornar estas limitações. Lançado em abril, o projeto Our Ocean in COVID-19 baseia-se numa aplicação de smartphone onde qualquer um – de pescadores a veraneantes – pode registar seus movimentos e observações relacionadas com o mar. Durante dois anos, estes dados serão organizados e colocados à disposição de investigadores em vários pontos do mundo. “Queremos analisar de que forma as pessoas valorizam os oceanos, ligando isso a observações da natureza”, explica Ward-Paige.

O projeto ainda está no início, com cerca de 650 participantes, mas já há registos interessantes. Alguns são positivos, como a ocorrência de espécies onde não costumavam ser vistas. Outros, porém, são francamente negativos, como o recrudescimento da caça e pesca ilegal, inclusive com técnicas destrutivas, como o uso de cianeto ou bombas. Segundo a bióloga, é o que está a acontecer em países pobres, nos quais as receitas do turismo colapsaram. “É revelador da necessidade de oportunidades económicas diversificadas. Não pode haver comunidades inteiramente dependentes do turismo, por exemplo”, diz Christine Waid-Paige.

Turismo do mar quase parado

O Algarve está a sofrer por esta razão. O turismo, o motor da economia da região, caiu praticamente a zero com a pandemia. Em abril, a ocupação dos hotéis chegou a míseros um por cento, contra 66% no ano passado. Em junho, subiu para 11%, ainda assim longe dos 79% de 2019. As perspetivas são péssimas. “Estávamos a contar com os turistas do Reino Unido, e agora fomos confrontados com esta obrigatoriedade da quarentena”, lamenta Elidérico Viegas, presidente da Associação dos Hotéis e Empreendimentos Turísticos do Algarve, referindo-se à decisão recente do governo britânico de exigir duas semanas de isolamento a quem tenha passado por Portugal.

Os operadores turísticos contam com o eventual regresso dos turistas, mas alguma coisa há de mudar. “É difícil que uma pandemia que fez parar o mundo não tenha implicações. Penso que haverá alterações comportamentais”, diz Elidérico Viegas.

Quanto tempo levará até que o turismo ligado ao mar se recupere em Portugal, é algo que ninguém sabe. Segundo a Organização Mundial de Turismo, foram precisos 11 meses para que o movimento global de turistas retornasse ao normal depois da epidemia de SARS em 2003, 14 meses depois dos atentados de 11 de setembro de 2001 e 19 meses desde o início da última crise económica mundial, em 2008.

O certo é que, sem o turismo, os números da economia azul em Portugal este ano vão sofrer um valente tombo. Em 2017, os setores do turismo, desporto e recreio representavam 71% das empresas, 68% dos trabalhadores e 69% do valor acrescentado bruto da economia do mar no país. A pandemia não só encerrou os hotéis, como veio na contramão do enorme crescimento do desporto náutico, onde o número de praticantes federados triplicara entre 2008 e 2017. E também fechou os portos aos navios de cruzeiro. Em 2018, 924 fizeram escala em Portugal, transportando 1,4 milhões de passageiros, segundo o relatório mais recente sobre a economia azul produzido pela Direção-Geral de Política do Mar.

Pesca sustentável: avanços mas insuficientes

A readaptação da sociedade à pandemia do coronavírus pode inspirar outras alterações na relação dos portugueses com o mar. “A COVID-19 veio trazer um alerta à importância do consumo de proximidade. Espero que seja um daqueles impactos que possa permanecer para além dessa crise”, afirma o ministro do Mar, Ricardo Serrão Santos.

Nas pescas, isto não será tão fácil. Por cada tonelada de peixe pescado em Portugal em 2019, o país importou outras três toneladas. Quase um quarto das importações referem-se ao bacalhau. Além disso, as pescas nacionais estão a ser fortemente afetadas pela quebra no consumo interno, como se observou no polvo – atualmente a espécie comercialmente mais importante no país. Em 2019, representou 18% do valor das capturas, em euros. Este ano, apenas entre janeiro e abril, houve uma quebra de 22% na pesca de moluscos, dos quais o polvo é o item mais importante. A situação é tal que o Governo suspendeu o período de defeso à pesca do polvo no rio Tejo, que desde 2011 tem lugar em julho e agosto.

Para Gonçalo Carvalho, coordenador executivo da Sciaena, uma associação portuguesa dedicada aos oceanos, a pandemia do coronavírus veio salientar a urgência de se pôr em prática a pesca sustentável. A situação tem vindo a melhorar na União Europeia, onde a proporção de stocks de pesca sobreexplorados caiu para a metade entre 2003 e 2018. “É bom, mas não é suficiente”, avalia Gonçalo Carvalho. Há dois anos, 37% dos stocks do Atlântico Nordeste ainda estavam sujeitos a capturas superiores à sua capacidade de manutenção. “O progresso é muito lento e o que temos assistido em Portugal é uma relutância quanto a acabar com a sobrepesca”, acrescenta Carvalho.

Em franco crescimento no mundo, a aquacultura é apontada como uma alternativa. Mas em Portugal, a atividade produz apenas o equivalente a um décimo do que a pesca traz do mar. Dois terços da produção são de moluscos, sobretudo amêijoas, ostras e mexilhões. “A aquacultura pode ser uma vertente importante da economia azul. Mas é não ter a costa do Algarve cheia de jangadas de ostra e mexilhão”, afirma o coordenador da Sciaena.

O tema da sustentabilidade deveria ter sido o carro-chefe da Conferência das Nações Unidas sobre os Oceanos, agendada para junho deste ano em Lisboa, não tivesse a COVID-19 frustrado os planos de qualquer tipo de encontro deste género. O ONU e Portugal ainda esperam realizá-la em 2021, aproveitando o momento criado pela crescente atenção pública aos oceanos nos últimos anos.

Durante muito tempo, o tema manteve-se à margem dos fóruns internacionais de sustentabilidade. A partir de 2015, ganhou força com a sua inclusão pela ONU nos Objetivos do Desenvolvimento Sustentável para 2030. Inexplicavelmente, no mesmo ano, o Acordo de Paris para o combate às alterações climáticas reservou aos oceanos apenas uma pequena nota no seu preâmbulo – apesar da enorme importância e vulnerabilidade dos mares em relação ao clima. E somente em 2019, é que o painel científico das Nações Unidas para as alterações climáticas (IPCC, na sigla em inglês) produziu um relatório de avaliação específico para os oceanos.

Segundo uma estimativa produzida há dois anos pela organização ambientalista WWF, os recursos e serviços dos oceanos geram cerca de 2,5 biliões de euros por ano, o que faria do mar, se fosse um país, a quinta maior economia do mundo. Dois terços deste valor, segundo a WWF, dependem do bom estado dos oceanos.

Em parte é por isso que a União Europeia escolheu a saúde dos oceanos, mares e águas costeiras e interiores como um dos cinco focos do Horizonte Europa, o programa de financiamento científico aos Estados-membros entre 2021 e 2030.

A necessidade de se resolverem os problemas dos oceanos parece ter ganho, enfim, o espaço que muitos julgavam merecer. “Foi preciso os plásticos flutuarem para que isto se tornasse visível”, afirma o ministro Ricardo Serrão Santos. “A década de 2021 a 2030 vai ser a década dos oceanos. Espero que a COVID-19 não venha estragar isso”, completa.

 

O acordo ortográfico utilizado neste artigo foi definido pelo autor

 

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