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Jornalismo

De que jornalismo precisamos? A visão do publisher do jornal ECO, António Costa

"Os jornalistas e o jornalismo vivem, em Portugal como no mundo, uma tempestade perfeita, uma expressão um pouco gasta, de tanto ser utilizada sem corresponder à sua verdadeira natureza. Neste caso, é apropriada. Resulta da crise económica, mais presente nuns países do que noutros, de uma mudança tecnológica que atinge em cheio não só jornalismo, mas a sociedade. E da incompetência do próprio jornalismo."
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Reveja o Fronteiras XXI “De que jornalismo precisa a Democracia?”

 

 

“There’s clearly a gulf here between two views of how information behaves, or should behave, in the horizontal twenty-first century – the difference, if you like, between irrigation and spraying. The gatekeepers – the irrigators – were throwbacks from the vertical world; we would sift, evaluate and contextualize for you and let you see only what was, in our view, important. The sprayers believed in splattering the information indiscriminately in to the world and letting citizens decide. That was the new democracy of information”.

 

“BREAKING NEWS:  The remaking of journalism and why it matters now”

Alan Rusbridger, Editor in Chief do “The Guardian” entre 1995-2015

 

De que jornalismo precisa a Democracia? É uma pergunta enorme, tão simples no enunciado como complexa na resposta. Ou nas respostas. Em Portugal? Ou no mundo?

E se perguntarmos a um político de que jornalismo precisa a Democracia, obteremos uma resposta, se fizermos a mesma pergunta a um jornalista, a resposta será seguramente outra (já lá vamos).

Há, em primeiro lugar, uma resposta implícita nesta pergunta, que tem de servir de base à discussão. A Democracia precisa de jornalismo (e de jornalistas). E se aceitarmos este princípio – eu não só aceito como o considero uma condição necessária, mas não suficiente, para haver uma Democracia, porque pode haver jornalismo sem Democracia, mas não haverá nunca Democracia sem jornalismo -, podemos considerar que o fim do jornalismo (e dos jornalistas) não é uma fatalidade. Pode e vai mudar na forma, nas formas, vai evoluir, mas a sua essência mantém-se. A sua missão, também.

Os jornalistas e o jornalismo vivem, em Portugal como no mundo, uma tempestade perfeita, uma expressão um pouco gasta, de tanto ser utilizada sem corresponder à sua verdadeira natureza. Neste caso, é apropriada. Resulta da crise económica, mais presente nuns países do que noutros, de uma mudança tecnológica que atinge em cheio não só jornalismo, mas a sociedade. E da incompetência do próprio jornalismo. E é aqui que surge a primeira constatação – ou mea culpa dos jornalistas.

Percebemos todos, tarde demais, o que estava aí a chegar. Deixámo-nos enredar, desde cedo, pela sedução das redes sociais, pela facilidade de acesso, pela dinâmica das comunidades e dos comentários (quem os quer, agora?) e, sobretudo, contribuímos de forma activa para ajudar a construir uma identidade das redes sociais que não corresponde à sua própria natureza. Pior, deixámos que as redes sociais assumissem o ‘ownership’ (à falta de expressão mais exacta, vai mesmo em inglês) de princípios que são, ou deveriam ser, dos jornalistas e dos jornalismo

Assm, enganamos os nossos leitores, os que já eram e os que poderiam ser, mas não chegaram a ser.

Quando estava a escrever este texto, eis uma notícia que não gostaria de ter lido. Agustina Bessa-Luís morreu. Não morreu, porque os seus textos ficam, e estão agora mais vivos do que nunca. E por causa disso, chegou-me (a responsabilidade é do Pedro Santos Guerreiro) um texto de antologia de Agustina sobre… isso, sobre jornalistas, que não resisto a trazer para aqui, por homenagem a quem (também) foi jornalista – Agustina foi directora do “Primeiro de Janeiro” – e nunca deixou de o ser.

“Em geral, o pequeno jornalista é um profeta da Imprensa do dia no que toca a banalidades, e um imprudente no que se refere a coisas sérias”. Pessimista, irónico, sarcástico, até maldoso, sobre jornalistas. É hoje assim tão diferente? Agustina Bessa-Luís não estava a pensar nas redes sociais, é um escrito de 1991, no “Diário de Notícias”. Mas como se encaixa tão bem no caminho que (não) fizemos.

Em simultâneo, as redes sociais e o seu bem-sucedido modelo de negócio aceleraram uma pressão económica sobre os meios de comunicação social que, genericamente, responderam com sucessivos planos de ajustamento, um eufemismo para cortes e reestruturações das redacções, em número e qualidade. E isso, necessariamente, torna mais difícil um exercício exigente de jornalismo. Mais informado. Tornou-o, ao invés, mais dependente do “pequeno jornalista”, como definia Agustina.

Portanto, aqui, aos jornalistas, somou-se a cegueira da gestão dos meios de comunicação social, entretidos pela cantiga de embalo de uma nova forma de distribuição de notícias (ou de conteúdos) que parecia ser a resposta para todos os problemas. Ou para o maior de todos, a redução da receita. Não foi, não é. Outra vez por responsabilidade própria, dos próprios meios.

Poderíamos tentar encontrar caminhos para os desafios da comunicação social noutras paragens. No poder monopolista de empresas como o Facebook ou a Google. Há, aí, trabalho a fazer pelos poderes públicos, mais pela Democracia do que pelo jornalismo, sim, sem pôr em causa a inovação e a promoção da concorrência. Mas também devemos agradecer àquelas empresas o que têm feito, inadvertidamente, pela recuperação da credibilidade do jornalismo, pela clarificação do que cada um – redes sociais e jornais – tem por missão fazer.

A crescente violação de privacidade por parte das redes sociais, os dados vendidos a empresas terceiras sem a autorização dos utilizadores (não poderemos esquecer o caso Cambridge Analytics), reforçaram o valor social dos jornalistas e do jornalismo.

As redes sociais não são jornais, não obedecem aos princípios e regras que definem a profissão e o seu exercício. São máquinas e algoritmos, com pessoas e histórias dentro. Mas agora os milhões de leitores de redes sociais têm a oportunidade de perceber que, se querem jornalismo, têm de o procurar nos jornais (leia-se em qualquer plataforma que lhes dê a informação de forma tratada, editada, peneirada (sim, atenção ao primeiro spoiler, somos, os jornalistas, gatekepeers). As redes sociais, os “jornalistas-cidadãos”, são outra coisa. São sprayers, sem filtros ou peneiras.

Além disso, centrar as respostas nas redes sociais seria uma opção cínica, e fácil. Procurar noutros o que nós próprios – jornalistas e órgãos de comunicação social – não fizemos. E ainda podemos fazer.

É preferível, mais, é desejável dar atenção e prioridade àquilo que está nas nossas mãos, dos gestores de meios de comunicação social, dos jornalistas. Regressemos, pois, à pergunta inicial: De que jornalismo precisa a Democracia?

De jornalismo, desde logo, que só pode existir se for independente e verdadeiro (aqui está o segundo spoiler, ou o primeiro, porque é o que conta).

Vamos estabilizar conceitos: a Democracia não precisa de jornalismo objectivo e imparcial, dois conceitos que andam regra geral agarrados à definição de jornalismo e que são, na verdade, uma mentira. E quem lhes disser o contrário, está mesmo a mentir, consciente ou, pior, inconscientemente. Provavelmente, é a ideia de que o jornalismo está fundado nestes dois conceitos que mina a sua própria credibilidade, porque frustra os leitores ou, se preferirem uma linguagem económica (há jornalistas que a abominam), os consumidores de informação.  

A Democracia não precisa de jornalismo objectivo e imparcial porque, simplesmente, não existe. Objectividade e imparcialidade são mitos que perduram no tempo, que são ensinados nas faculdades e que não passam, na realidade, do primeiro dia de trabalho de um jornalista-estagiário. Porque cada um, com o seu contexto económico e social, académico, de vida, tem a sua objectividade.

A Democracia precisa, sim, de jornalismo que é mesmo jornalismo (e não outra coisa qualquer), independente e verdadeiro. São três condições essenciais – as mais relevantes – para uma Democracia informada. Madura, com pesos e contra-pesos, com instituições e o ‘rule of law’. Que dá liberdade de escolha aos cidadãos.

Jornalismo que é mesmo jornalismo? Faz sentido a pergunta? Faz, sobretudo quando o entretenimento se sobrepõe à informação. Há hoje uma linha ténue entre as duas realidades, que muitas vezes se misturam. Nas redacções e, pois claro, nos leitores.

N”A civilização do espetáculo”, Mário Vargas Llosa descreve, de forma brilhante, o que enfrentámos: “Claudi Perez, enviado especial do El País a Nova Iorque para informar sobre a crise financeira, escreve na sua crónica de 19 de Setembro de 2008: ‘Os tablóides de Nova Iorque andam como loucos à procura de um broker que se atire ao vazio de cima de um dos imponentes arranha-céus que albergam os grandes bancos de investimento, os ídolos caídos que o furacão financeiro vai convertendo em cinzas’ (…) Não creio que haja uma imagem que resuma melhor a civilização de que fazemos parte”. E o jornalismo de que fazemos parte, poderia ter acrescentado o escritor peruano. Acrescento eu. Porque o jornalismo e o espectáculo não são a mesma coisa, embora tantas vezes pareçam.

O incentivo ao jornalismo-espectáculo-que-não-é-jornalismo explica-se também a si próprio pela corrida pelos números. À falta de outros indicadores, os jornalistas e os meios correm atrás de números de audiência, como se fossem um fim em si mesmo. “Somos líderes de visitas”, lê-se com frequência, com o detalhe de pageviews e sessões nas edições online. Só que estes números são tantas vezes feitos com espectáculo, e não com jornalismo, que põem em causa o próprio jornalismo de que precisa a Democracia.

Venham depois a independência e a verdade.

A independência não é um conceito abstracto. Tem uma tradução que, todos os dias, é posta à prova no trabalho dos jornalistas e do jornalismo, que os credibiliza, ou não. Na escolha da notícia A em detrimento da notícia B.

 A independência dos poderes ou interesses que dominam, a cada momento ou em simultâneo, a sociedade. O político e o económico à cabeça. É disso que a Democracia precisa. De jornalistas e jornalismo que não dependam de nenhum poder em geral, apenas dos leitores em particular. É uma dependência virtuosa (ou o mais perto disso que conhecemos no jornalismo).

É fácil dizê-lo, é difícil fazê-lo. A independência é cara, muito cara. E só existe se os jornalistas e o jornalismo forem independentes económica e financeiramente. É outro mito que tem, mesmo, de desaparecer, aquele que nos diz que o jornalismo não pode dar lucro. Pode e deve. No cumprimento dos princípios e regras éticas e deontológicas da profissão. Já estou a ouvir a pergunta desse lado: “É compatível assegurar as regras jornalísticas e os lucros no final de cada ano?” Só pode ser.

Há outras “independências”, mas a económica e financeira é a mais relevante. Sem ela, dificilmente poderá haver capacidade para o jornalismo desempenhar a missão de que a Democracia precisa. Para escrutinar os poderes instituídos, para ajudar a decidir com mais informação. Os poderes públicos e privados. É por isso que qualquer coisa que corresponda à tentativa de pôr o Estado a salvar os meios de comunicação social só poderá trazer maus resultados, cumplicidades e incapacidade de garantir a dita independência.

Sim, a independência económica e financeira pode ser assegurada sem a existência de lucros, por outros meios, desde logo accionistas que estejam disponíveis para pagar os prejuízos de forma contínua no tempo (isso existe?).

Para garantir uma independência económica e financeira dos interesses, os legítimos e especialmente os ilegítimos, os meios têm de garantir… a dependência dos leitores. De que forma? Os leitores têm de ser convencidos a pagar pela informação a que acedem. Não há outro caminho.

Será necessariamente doloroso, mas as tendências de consumo de conteúdos – leia-se de entretenimento, como o Spotify ou o Netflix – são uma luz ao fundo do túnel. Sobretudo as novas gerações, estão a pagar por serviços online, já pagam por entretenimento, temos de os convencer a pagar por informação. E há um dado tão interessante como relevante: há uma correlação directa entre o aumento do número de subscritores de plataformas como o Netflix e o número de assinantes de meios de comunicação social. Saibamos nós, jornalistas e meios, fazer bem o que temos de fazer.

Os jornalistas e o jornalismo não podem copiar as redes sociais, ou delas depender, mas têm muito a aprender com a inovação que trouxeram à sociedade, com as mudanças de consumo de informação. A tecnologia. Não podemos viver com ela, não podemos viver sem ela. Nem a Democracia, nem o jornalismo.

De que jornalismo precisa a Democracia? De um que chegue de forma democrática a todos os cidadãos, de um jornalismo de proximidade, não apenas nas notícias – as mais importantes são as da nossa rua, ouve-se nas redacções -, mas das plataformas tecnológicas que facilitem a vida dos leitores.

Em Portugal, estamos genericamente atrasados em relação ao que se passa no mundo desenvolvido. Qual é o aparelho central na vida de um cidadão em Democracia (na verdade, também em algumas ditaduras)? Sim, o telemóvel. Mas o jornalismo que se faz continua a ter no centro as plataformas tradicionais, o papel, a televisão e a rádio. Os meios estão no digital, sim, mas o jornalismo que se faz – com excepções – não é pensado para esse novo espaço, onde estão os leitores. E isso torna tudo mais difícil.

Esta realidade demora a mudar por duas ordens de razão: competências e capital. O jornalismo nas novas plataformas permite às empresas uma estrutura de custos mais baixa do que aquela que têm os meios ditos ‘tradicionais’, mas exige um investimento permanente em tecnologia. O que hoje é a última novidade, amanhã estará ultrapassada. E isso exige capital, mas também equipas com conhecimento em áreas técnicas e tecnológicas que têm de entrar nas redacções. O jornalismo de que a Democracia precisa não se faz apenas com jornalistas. Faz-se com developers, com criativos, com gestores de dados.

Depois, a verdade. Troco a objectividade e imparcialidade pela verdade. E isso leva-me a outra condição para o jornalismo de que a Democracia precisa. Os meios de comunicação social são todos muito parecidos, disputam todos os mesmos leitores, e tentam convencê-los de forma mais ou menos idêntica, com as mesmas notícias.

Ora, os meios de comunicação social têm de procurar a diferenciação, uma visão da sociedade, que seduza os leitores. Sempre, sempre, com a verdade, porque é (também) isso que distingue os gatekeepers dos sprayers, é o que distingue o jornalismo das redes sociais. Não se substituem, complementam-se.

A capacidade de cristalizar um posicionamento, uma visão que diferencie um meio de outro, demora tempo e está intimamente ligada à capacidade financeira (ou, se preferir, à independência económica e financeira). Reflictam por um minuto: qual é a vossa fonte de informação diária? E porque é que a escolheram? Qual é a marca que distingue essa fonte de informação de outra qualquer? Os meios de comunicação social têm de criar laços de empatia, de confiança, de credibilidade, mas têm também de ser reconhecidos por alguma coisa característica, desejavelmente única, efectiva ou percepcionada.

Se os meios de comunicação social forem capazes de assumir uma identidade própria, com jornalismo independente e verdadeiro, estarão a contribuir para a existência de cidadãos mais informados. Com outra condição essencial para uma Democracia: uma liberdade de escolha.

Não há soluções milagrosas, e tudo isto parece uma montanha intransponível. De que jornalismo precisa a Democracia? Cada um dos meios terá de encontrar a sua própria resposta. Pessimista? Optimista. Com as oportunidades que existem, com uma geração preparada como nenhuma outra.

Nos últimos cinco anos, surgiram em Portugal dois novos órgãos de comunicação social, o “Observador” e o “ECO”. São meios digitais, que procuram afirmar a sua diferenciação, num sector não apenas competitivo mas, até, distorcido pelo arrastamento de meios que provavelmente já deveriam ter saído do mercado.

Se o valor económico dos meios de comunicação social é hoje muito mais baixo do que no passado, o valor social do jornalismo nunca terá sido tão elevado.

Como fundador e director do “ECO”, tenho a autoridade de partilhar uma experiência que saiu do papel (ou do computador, se preferirem) e que procura seguir esta agenda.

A partir de uma ideia, foi possível assegurar os fundos necessários para a criação de uma nova marca de informação. Assumimos um manifesto editorial claro e sem ambiguidades, com uma visão do país e do mundo, e fizemos a revelação pública da lista de accionistas que ajudaram a fundar o “ECO”. Que é hoje, passados dois anos e meio sobre o seu lançamento, uma marca necessária e alternativa ao que já existia, que tanto tenta responder às necessidades dos leitores como procura “criar” novos leitores para o jornalismo. Para o jornalismo de que precisa a Democracia.

 

 

Nota final: Uma análise sobre jornalismo e Democracia sem escrever uma única vez a expressão “fake news”. Não foi esquecimento, porquê? Porque as mentiras fazem parte da realidade, sempre por cá andaram, e o papel dos jornalistas e do jornalismo também é o mesmo de sempre. A tecnologia está a permitir que as “fake news” se espalhem como um incêndio num palheiro seco, e isso pede um jornalismo mais presente do que nunca, mas igual na sua essência.

 

O acordo ortográfico utilizado neste artigo foi definido pelo autor

 

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