Corrupção em Portugal: crime e castigo
Opinião de Daniel Seabra Lopes, co-autor do estudo «O Estado por Dentro» e do livro «Com a Devida Vénia: Diários dos Tribunais», com base na leitura do livro «45 Anos de Combate à Corrupção», de Luís Rosa.
Corrupção, s. m. Em sentido amplo, ato ou efeito de corromper, por meio de favores ou vantagens; o m. q. perversão, venalidade. Em sentido livre, conduta inadequada e encoberta, supostamente comum, da qual se fala sobretudo na terceira pessoa; o m. q. representação, perceção, demonstração da iniquidade do poder. Em sentido jurídico, atribuição ou recebimento indevido de vantagem, prática classificada como crime no ordenamento jurídico português desde o primeiro Código Penal (1852), cuja averiguação requer polícias e procuradores incorruptíveis, abnegados, perseverantes, assim como um conjunto de leis e instituições convenientemente apetrechadas para esse fim; aceção predominante em 45 Anos de Combate à Corrupção, do jornalista Luís Rosa, livro que revê as investigações judiciais de crimes económicos e financeiros empreendidas pelo Ministério Público no período que vai desde a aprovação da Constituição Portuguesa de 1976 até às linhas gerais da Estratégia Nacional de Combate à Corrupção 2020-2024.
Um dos méritos deste retrato reside na preocupação de compreender a perspetiva do Ministério Público, resistindo à tentação de criticar a justiça com base na sua proverbial morosidade ou ineficácia e dando a conhecer os passos percorridos, em termos burocráticos e legislativos, para agilizar os inquéritos e permitir o julgamento e a condenação de políticos, empresários e outras figuras influentes acusadas da prática de crimes económicos. O que não quer dizer, bem entendido, que o Ministério Público tenha alguma vez beneficiado de condições ideais para o fazer: a escassez de recursos humanos aparece-nos aqui como um problema recorrente e que permite conceber o trabalho judicial como um esforço para fazer mais com menos, implicando o sacrifício de inúmeras noites e fins de semana (p. 34).
O livro alterna entre três registos distintos: um registo historiográfico, um registo biográfico e um registo jornalístico. O primeiro faz a crónica da evolução do Ministério Público ao longo das últimas cinco décadas, a partir das leis que ditaram a progressiva autonomização deste órgão constitucional face ao poder executivo e às magistraturas judiciais, dotando-o de estruturas próprias como os Departamentos de Investigação e Ação Penal. O segundo incide nos testemunhos de três procuradoras (Maria José Morgado, Teresa Almeida e Inês Bonina) e dois procuradores (Euclides Dâmaso e João Marques Vidal), combinando memórias de juventude com visões pessoais sobre o que mudou no combate ao crime económico. O terceiro resume uma série de casos mediáticos de corrupção e crime económico-financeiro, revisitando figuras ou instituições como a Dona Branca, Torres Couto e a União Geral de Trabalhadores, Carlos Melancia, a Universidade Moderna, Vale e Azevedo, Jardim Gonçalves e o Banco Comercial Português, Isaltino Morais, José Sócrates ou Duarte Lima. Concentremo-nos, por ora, nesta cronologia de casos.
A exposição do autor permite compreender de que forma os sucessivos inquéritos beneficiaram com as alterações legislativas: por exemplo, a promulgação da lei que autoriza a quebra do sigilo bancário por parte do Ministério Público (Lei nº 5/2002), e que obriga os bancos a identificarem os titulares dos depósitos potenciou investigações como as do Apito Dourado ou Universidade Moderna; reforçada, seis anos depois, com a introdução do conceito de “pessoas politicamente expostas” (Lei nº 25/2008), que determina que as entidades financeiras e não-financeiras tenham de reportar às autoridades qualquer transação suspeita efetuada por titulares de cargos políticos e públicos, viria a propiciar a célebre Operação Marquês — desencadeada, precisamente, por uma comunicação de uma entidade financeira ao Departamento Central de Investigação e Ação Penal.
Luís Rosa tem o cuidado de situar estas alterações institucionais e legislativas de âmbito nacional no quadro mais amplo da União Europeia e da reação, concertada com outros países e organizações internacionais, a eventos de charneira como os ataques terroristas de 11 de Setembro de 2001 ou a crise financeira de 2008, deixando claro que um impulso vindo de fora pode originar mudanças de fundo por dentro. Uma dessas mudanças consiste na rarefação de práticas que marcaram, durante décadas, a relação dos cidadãos com o Estado, e que se consubstanciavam na oferta de pequenas benesses em troca de pequenos favores — uma escritura aligeirada por um notário, uma multa perdoada por um polícia, uma ilegalidade numa obra convenientemente ignorada por um fiscal da câmara (p. 55). Maria José Morgado justifica tais práticas com a ideia de “Portugal ter sido durante muito tempo um país pobre” (Ibid.), falando desse mundo como se ele estivesse definitivamente remetido para o passado, e não apenas por causa da adesão à Comunidade Económica Europeia e pressões adjacentes. O texto oferece pistas interessantes para uma análise aprofundada do tema, como aquela — mencionada en passant por Teresa Almeida (p. 56) — que associa a informatização dos procedimentos burocráticos ao retrocesso das formas populares de corrupção.
Fica igualmente em aberto a questão de saber se as evoluções verificadas contribuem para uma efetiva condenação e desincentivo de práticas económicas ilícitas. O caso Banco Comercial Português é, a este nível, paradigmático: acusados de terem manipulado o preço das ações do banco através de um circuito de empresas off-shore que lhes garantiu o encaixe de 24 milhões de euros em prémios, Jardim Gonçalves e outros administradores foram julgados e condenados, mas a pena de prisão efetiva passou a pena suspensa graças ao pagamento de 1,2 milhões de euros de indemnização (pp. 113-114). Sob este prisma, portanto, o crime ainda compensa. Poder-se-ia mesmo perguntar em que medida aquilo a que nos habituámos a chamar a finança, a economia ou o mercado continua a depender de atividades dúbias, na fronteira entre o lícito e o ilícito, entre o moral e o imoral, entre a inovação e o desvio, entre a geração de riqueza e a depredação. Trata-se de uma interrogação antiga, explorada por Marx, Veblen, Merton e tantos outros, mas que se mantém atual, por obra e graça dos agentes económicos e políticos, cujo engenho não cessa, em boa verdade, de nos fornecer matéria para pensar — das vendas a descoberto ao shadow banking, das Muralhas da China intra-organizacionais às portas giratórias entre instituições supervisionadas e instituições supervisoras, das formas extremas de precarização laboral aos vistos gold.
Daniel Seabra Lopes é antropólogo e co-autor do estudo «O Estado por Dentro» e do livro «Com a Devida Vénia: Diários dos Tribunais».
O acordo ortográfico utilizado neste artigo foi definido pelo autor.