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O primeiro-ministro da Índia Narendra Modi tendo como fundo um conjunto de bandeiras do país. Crédito: Shutterstock

A autonomia estratégica da Índia parece cada vez mais distante

Este é 12º artigo da «Foreign Policy», publicado pela Fundação em parceria editorial com esta revista internacional. Um texto escolhido por Raquel Vaz-Pinto, investigadora no IPRI-NOVA, para perceber «como olha Nova Deli para os desafios internacionais?»

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Nada traduz melhor o empenho com que a Índia se tem esforçado, desde há longa data, por manter a sua autonomia estratégica do que o facto de o país ter agendada a visita dos líderes de três grandes potências globais — a Rússia, a China e, possivelmente, os Estados Unidos — numa rápida sucessão.

O presidente russo, Vladimir Putin, foi recebido na Índia a 4 e 5 de dezembro, na sua primeira visita ao país desde a invasão russa da Ucrânia. A visita do presidente chinês Xi Jinping está prevista para 2026, ano em que a Índia será o país anfitrião da cimeira dos BRICS. A cimeira do Diálogo de Segurança Quadrilateral (Quad) — um fórum estratégico entre os Estados Unidos, o Japão, a Austrália e a Índia —, programada para ter lugar na Índia em novembro de 2025, foi adiada devido à deterioração das relações deste país com os EUA. Caso o encontro seja reagendado para 2026, o presidente dos EUA, Donald Trump, também poderá visitar a Índia.

Esta narrativa tem, no entanto, outra face. A política externa equidistante da Índia é muitas vezes interpretada como sendo distante ou indiferente. Isso mesmo ficou patente quando Trump impôs taxas aduaneiras de 50% sobre as importações da Índia, assim punindo o país pelo seu desequilíbrio comercial e por comprar petróleo russo.

Ao mesmo tempo, vários outros países mantêm relações comerciais com os Estados Unidos bem mais desequilibradas, com um superavit maior do que o da Índia, e/ou dependem significativamente do petróleo russo, mas, graças à sua importância para as cadeias de abastecimento globais (por exemplo, a China) ou ao seu estatuto de aliados dos EUA (por exemplo, o Japão e a Turquia), não foram submetidos ao mesmo nível de pressão. Esta diferença de tratamento reflete o facto de a Índia não ser estrategicamente indispensável no sistema internacional.

A Índia deve retirar as devidas ilações, assumindo a necessidade de desenvolver uma autonomia estratégica mais ativa, em vez da atual passividade.

Para o primeiro-ministro Narendra Modi, 2025 talvez tenha sido o ano mais difícil desde que assumiu o poder, em 2014.

No que diz respeito à política externa, 2025 talvez tenha sido o ano mais difícil para o primeiro-ministro Narendra Modi desde que assumiu o poder, em 2014. Ao ataque terrorista no território de Caxemira dominado pela Índia, em abril, seguiu-se um confronto com o Paquistão em maio, que durou quatro dias. Apesar de breve, o confronto assinalou o período de maior hostilidade entre os dois países nas últimas décadas.

O conflito entre a Índia e o Paquistão tornou-se também motivo de agravamento das relações entre a Índia e os EUA, uma vez que Trump reivindicou para si o crédito pela cessação das hostilidades — uma narrativa refutada por Nova Deli, mas que Islamabad reiterou de bom grado.

Para piorar a situação, as relações entre Islamabad e Washington aprofundaram-se, tendo a Casa Branca recebido o chefe do Estado Maior das Forças Armadas do Paquistão, Asim Munir, em duas ocasiões desde o início do conflito. Modi e Trump conversaram por telefone em junho, altura em que Trump se terá oferecido para receber Modi e Munir na Casa Branca. Modi terá rejeitado a proposta de Trump, em linha com a histórica aversão de Nova Deli à mediação das tensões entre a Índia e o Paquistão por parte de terceiros — sobretudo no que se refere à disputa do território de Caxemira. Seguiu-se um esfriamento das relações entre a Índia e os EUA, como ficou patente no facto de os dois líderes não terem voltado a falar até setembro.

Nesse interregno, deu-se uma rápida deterioração das relações bilaterais, uma vez que os dois países não conseguiram firmar um acordo comercial dentro do prazo estipulado de agosto. Em seguida, Trump impôs a subida das taxas aduaneiras sobre os produtos importados da Índia. Os insultos de Trump, que classificou a Índia como uma economia «morta» que faz muito poucos negócios com os Estados Unidos, a par dos comentários corrosivos de Peter Navarro, conselheiro do presidente para os assuntos comerciais, que se referiu à Índia como uma «lavandaria ao serviço do Kremlin», degradaram ainda mais a confiança nas relações bilaterais.

Mais recentemente, ambos os líderes emitiram declarações conciliatórias, o que sugere que as tensões estão a diminuir e que talvez os dois países acabem por chegar a um acordo comercial. No entanto, o anterior entusiasmo irracional de Nova Deli relativamente às relações entre a Índia e os EUA, evidenciado pelo facto de os indianos serem uma das nações que encararam com maior otimismo o segundo mandato de Trump, desvaneceu-se.

O mesmo aconteceu com a ideia de que Modi e Trump mantinham uma relação especial ou privilegiada. Modi orgulhava-se da sua abordagem personalizada da política externa, cultivando relações estreitas com os principais líderes mundiais. No entanto, nada serviu para aplacar a ira da política externa inconstante e transacional de Trump.

Graças à sua política externa multialinhada e diversificada, a Índia conseguiu não ficar em dívida para com nenhum país.

A um nível estrutural, os recentes desenvolvimentos indiciam que a política externa da Índia enfrenta desafios mais profundos. A aposta da Índia na autonomia estratégica, iniciada há décadas, tem sido quer uma bênção quer um problema para a política externa do país. Por um lado, confere-lhe flexibilidade, conforme ficou demonstrado quando, após os confrontos fronteiriços em 2020, as relações entre a China e a Índia sofreram um revés. Nova Deli reagiu intensificando a cooperação com Washington, o que ficou patente na maior integração da Índia na arquitetura institucional liderada pelos EUA — por exemplo, através do reforço da sua participação no Quad.

Graças à sua política externa multialinhada e diversificada, a Índia conseguiu não ficar em dívida para com nenhum país. Questionado sobre esta questão na Conferência de Segurança de Munique em 2024, o ministro dos Negócios Estrangeiros da Índia, S. Jaishankar, considerou que a Índia deveria ser congratulada pelo facto de manter «múltiplas opções» na sua política externa.

Os acontecimentos do último ano, porém, revelam a arrogância dessa posição. Quando a Índia tem de optar entre grandes potências, é bem mais difícil manter a autonomia estratégica. Foi o que aconteceu quando a administração Trump impôs taxas aduaneiras secundárias à Índia penalizando as suas aquisições de petróleo russo — uma forma de pressionar Moscovo para que chegasse a um acordo de paz com a Ucrânia. À medida que as relações entre a Rússia e os EUA se deterioravam, as relações entre Nova Deli e Moscovo passaram a ser cada vez mais escrutinadas por Washington.

A política de não-alinhamento da índia nem sempre funcionou: Durante a Guerra Fria, e perante cenários de ameaça existencial, o país pediu apoio a superpotências como o EUA ou a União Soviética.

A aposta da Índia na autonomia estratégica tem origem no conceito de não-alinhamento da Guerra Fria. Quando, em 1947, a Índia se juntou à comunidade global de estados-nação independentes, as cicatrizes deixadas pelo regime colonial fizeram com que Jawaharlal Nehru, o primeiro primeiro-ministro, quisesse evitar a todo o custo quaisquer envolvimentos externos que pusessem em causa a autonomia e a independência do país. Na sua essência, o não-alinhamento e a autonomia estratégica consistem em preservar a flexibilidade enquanto se fomentam relações de proximidade com todos os principais polos de influência no sistema internacional.

Na prática, o não-alinhamento nem sempre funcionou. Durante a Guerra Fria, por exemplo, a flexibilidade estratégica da Índia foi posta à prova em cenários de ameaça existencial, que obrigaram o país a pedir apoio a uma das superpotências. Foi o que aconteceu em 1962, quando Nova Deli contemplou a possibilidade de um alinhamento mais próximo com os Estados Unidos no auge da guerra com a China. E foi também o que aconteceu em 1971, quando, perante a ameaça de invasão pelo Paquistão — na qual Islamabad contava com o apoio da China e dos Estados Unidos —, a Índia assinou um tratado de paz com a União Soviética.

No período pós-Guerra Fria, vários imperativos estratégicos obrigaram a Índia a abandonar o princípio do não-alinhamento. Nova Deli compreendeu que tinha de reorientar as suas relações externas, uma vez que o colapso da União Soviética levara à dissolução dos seus principais mercados e à caducidade dos acordos preferenciais de comércio. Assim, Nova Deli reaproximou-se dos Estados Unidos. O empenho da Índia em manter uma política externa omnialinhada ou multialinhada, contudo, manteve-se inalterado. Na verdade, à medida que a dinâmica unipolar do pós-Guerra Fria se desfez e que a competição entre as grandes potências reemergiu, tornou-se cada vez mais relevante.

O arrefecimento da relação com os EUA revela que a Índia precisa de desenvolver uma autonomia estratégica mais ativa

No entanto, o recente arrefecimento da relação com os Estados Unidos revela que a Índia precisa de desenvolver uma autonomia estratégica mais ativa. A participação de Modi na recente cimeira do G-20, realizada na África do Sul, e o estabelecimento de uma parceria trilateral de tecnologia e inovação com a Austrália e o Canadá mostram que Nova Deli ambiciona ganhar protagonismo no Sul Global, tornando-se um dos principais parceiros do Ocidente e servindo de ponto de ligação entre ambos. O governo liderado por Modi descreveu a Índia como sendo «Vishwamitra», ou amigo do mundo. Porém, uma coisa é ser-se amigo do mundo, outra é ajudar o mundo a fazer amigos entre si. Apesar de manter relações estreitas com a Rússia e os Estados Unidos, bem como com o Irão e Israel, Nova Deli tem desempenhado um papel insignificante no que toca a conter os conflitos na Ucrânia e no Médio Oriente (ao contrário de outros países, como o Catar, a Turquia, o Brasil e até a China).

Se, pelo contrário, desempenhasse um papel de relevo, a Índia faria jus à importante função mediadora que outrora cumpriu, numa época em que era, ironicamente, uma potência muito mais fraca. De facto, na década de 1950, a Índia foi uma voz proeminente em vários conflitos globais — desde a Guerra da Coreia até às Crises do Estreito de Taiwan.

Em vez disso, a Índia optou por permanecer distante, o que se tornou evidente aquando da ausência de Modi em duas reuniões importantes, realizadas em outubro de 2025: a Cimeira pela Paz em Gaza, realizada em Sharm el-Sheikh, e a Cimeira da Ásia Oriental, que decorreu em Kuala Lumpur. Apesar de ter sido convidado para ambas, Modi decidiu não comparecer. O facto de ambos os encontros terem ocorrido na «vizinhança alargada» da Ásia Oriental e da Ásia Ocidental, como a Índia chama à região do Médio Oriente, é bem ilustrativa da alienação de Nova Deli no cenário mundial.

O arquirrival da Índia — o Paquistão — tem sabido mostrar como se pode conduzir uma política externa mais ativa: aproximou-se da China, dos Estados Unidos, da Rússia, do Irão e dos Estados Árabes do Golfo.

Curiosamente, o arquirrival da Índia — o Paquistão — tem sabido mostrar como se pode conduzir uma política externa mais ativa. Ao aproximar-se da China, dos Estados Unidos, da Rússia, do Irão e dos Estados Árabes do Golfo, Islamabad tem posto em prática a sua própria forma de autonomia estratégica.

Ao passo que Nova Deli procura manter distância face aos imbróglios geopolíticos mais problemáticos, Islamabad intervém de bom grado. Assim, desempenhou um papel facilitador na aproximação sino-americana do final da década de 1960, aliou-se aos Estados Unidos no combate à invasão soviética do Afeganistão na década de 1980 e na guerra global contra o terrorismo na década de 2000, além de ter contribuído para a arquitetura securitária do Médio Oriente através da recente assinatura do pacto de defesa com a Arábia Saudita.

Resta saber se o Paquistão tem condições para sustentar esta estratégia, dadas as contradições da sua política externa — por exemplo, o país oferece projetos portuários simultaneamente à China e aos Estados Unidos. Perante a instabilidade que se verifica ao nível interno e nos seus territórios de fronteira, como é que Islamabad espera alargar o seu poder dissuasor aos países do Médio Oriente? Mesmo assim, trata-se de uma forma bem mais ativa de pôr em prática a autonomia estratégica do que aquela que tantas vezes se observa em Nova Deli.

Num mundo de crescente incerteza geopolítica, a Índia precisa de redefinir o sentido da sua autonomia estratégica. A deterioração, em 2025, das relações entre a Índia e os EUA mostrou que o lugar da Índia como «aliado natural» dos Estados Unidos não pode ser tomado por garantido. A Índia está cada vez mais sob pressão, e precisa de tomar decisões em relação às quais se tem mostrado relutante.

Se conseguir tornar-se um ator estratégico mais relevante para o sistema internacional, a Índia ficará menos vulnerável aos caprichos dos Estados Unidos — e aos de qualquer outro país. O papel omisso e, por vezes, destabilizador da administração Trump em vários fóruns globais, nomeadamente nas recentes cimeiras COP30 e G20, criou um vazio na liderança mundial. O momento não poderia ser mais oportuno para a Índia dar um passo em frente.

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