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Imagem da bandeira da Argentina numa parede parcialmente destruída

«Argentina elegeu o primeiro presidente liberal-libertário da história da humanidade»

Argentina enfrenta «território desconhecido» com a vitória do líder da extrema direita Javier Milei. Como chegou ao poder? Como conseguirá governar? Neste artigo, o politólogo Andrés Malamud diz que é mais provável que o país caia na anarquia do que na tirania.
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A frase do título é uma citação textual do discurso da vitória de Javier Milei. A Argentina entra em território desconhecido pela mão de um presidente sem estrutura partidária, sem ofício político e sem inserção territorial – e foi justamente por tudo isso que ele ganhou. Os argentinos elegeram para os governar alguém cuja virtude era estar nos antípodas dos seus governantes. O que poderia correr mal? Vejamos...

 

Porque ganhou Milei?

Houve três fatores que se conjugaram para produzir este resultado.

Em primeiro lugar, a procura social: entre os 150% de inflação anual e as escandalosas exibições de privilégio por parte dos governantes, a paciência dos eleitores chegou ao limite. O descontentamento não foi percecionado pelos políticos tradicionais nem pelos partidos de esquerda.

Daí o segundo fator, a oferta eleitoral: a oposição tradicional sentiu que a eleição já estava ganha e dedicou-se a alimentar a sangrenta luta interna no país.

O terceiro fator foi Javier Milei. Figura carismática que em 2018 tinha sido o economista mais convidado pelos programas de rádio e TV, que em 2021 foi eleito deputado com notável apoio juvenil e desde então se destacou pela eficaz utilização das redes sociais. Descontentamento, divisões e carisma: foi com estes ingredientes que se preparou o trago amargo que «a casta», o establishment político no discurso de Milei, foi forçada a beber no domingo 19 de novembro.

Javier Milei não é nacionalista, mas libertário. Se Trump diz «Make America Great Again» e Bolsonaro predica, «Brazil acima de todos», o argentino grita «Viva la libertad, carajo!»
Poderá governar?

Milei será inicialmente um presidente hiperminoritário. Isso significa não só que o seu partido carecerá do quorum no congresso, mas que nem sequer atingirá um terço dos lugares em nenhuma das duas câmaras. Esta situação coloca-o à beira do impeachment, não porque possa cometer crimes mas porque, na América Latina, este mecanismo constitucional tem-se flexibilizado de forma a funcionar como uma moção de censura num regime parlamentar.

Os presidentes são avaliados pelo seu desempenho e, se carecerem de escudo legislativo, devem evitar tornar-se impopulares. Aqueles que não conseguem tendem a ser destituídos pelo poder legislativo, que goza da mesma legitimidade democrática que os presidentes.

Fernando Collor de Mello e Dilma Rousseff no Brasil, Abdala Bucaram e Lucio Gutiérrez no Ecuador, Martín Vizcarra e Pedro Castillo no Perú, Fernando Lugo no Paraguai e Carlos Andrés Pérez na Venezuela são só alguns dos 26 presidentes latino-americanos que foram destituídos pelo congresso nos últimos 32 anos. Em nenhum caso se quebrou a democracia e todas as sucessões se processaram constitucionalmente.

Ainda que frequente, o impeachment não é inevitável. Na ausência de escudo legislativo, uma via de escape é manter uma alta popularidade; outra, mais exequível, é construir coligações.

Milei iniciou esta tarefa antes da primeira volta, quando se aproximou de setores sindicais tradicionais, e especialmente depois, quando recebeu o apoio da candidata derrotada Patricia Bullrich e do antigo presidente Mauricio Macri. O grupo parlamentar que ambos lideram, porém, é insuficiente para assegurar a aprovação da agenda legislativa do presidente – nem sequer para atingir o imprescindível terço dos assentos.

Por isso, Milei deverá recorrer a uma de duas estratégias: ou tenta construir acordos pontuais, lei por lei, ou então faz uma abertura para o «peronismo governante», ou seja, para a dezena de governadores que alinhavam com Cristina Kirchner, por necessidade ou temor, mas que partilham a lateralidade ideológica do novo presidente. Estes governadores controlam um bom número de legisladores e oferecê-los-iam alegremente em troca de recursos fiscais.

E o que vai fazer no governo?

A margem de manobra do futuro presidente dependerá de dois fatores: a agenda ideológica da sua base eleitoral e os compromissos assumidos para aumentar o apoio legislativo. Se os setores conservadores da sua coligação, liderados pela vice presidente, impõem as suas batalhas culturais, podem acontecer duas coisas: ou as reformas económicas são preteridas ou, pelo contrário, são «protegidas» por debates acirrados como o do aborto até darem frutos.

Mas se é a agenda liberal do presidente a impor-se, então serão os aliados externos que colocarão limites às suas propostas. Quantos recursos fiscais terão de ser entregues aos governadores para que os seus legisladores apoiem a dolarização, o encerramento do Banco Central ou a privatização das empresas públicas? A quantas nomeações de alto nível requererá Macri para manter o apoio? O próprio Macri declarou que a situação atual é muito pior que a que ele próprio herdou em 2015. E Milei deve desenrascar-se sem a sua experiência prévia de governo local, sem equipas treinadas, sem apoio legislativo e sem governadores do seu partido.

 A imprensa ocidental recebeu a vitória de Milei com preocupação, comparando-o a Donald Trump ou a Jair Bolsonaro. No estrangeiro, os argentinos recebem pêsames, mas a comparação é só parcialmente apropriada. Apesar de ser um feroz anticomunista, Milei não é nacionalista, mas libertário. Se Trump diz «Make America Great Again» e Bolsonaro predica, «Brazil acima de todos», o argentino grita «Viva la libertad, carajo!». É mais provável que ele conduza a Argentina para a anarquia que para a tirania. De facto, ele próprio se define como anarcocapitalista. Ninguém poderá dizer que Milei não avisou.

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