Alguns pressupostos para análise de uma narrativa presente
A história é sempre uma interpretação fundada em pressupostos teóricos e doutrinais, razão por que não se pode falar, a seu respeito, de uma leitura teoricamente neutra da experiência, pois os factos terão sempre de ser integrados em conjuntos mais amplos e em relações densificadas que estruturam esquemas de leitura. Não sendo uma ciência, é, não obstante, um estudo cientificamente conduzido, atento à interindividualidade crescente das conclusões e à tecnicidade possível dos meios de verificação. Nesse sentido, possui um dinamismo intrínseco que possibilita uma reinvenção permanente do passado, mas à luz do rigor metodológico e da disciplina crítica.
Outra coisa bem distinta é erguermos, à partida, uma história-tribunal, pragmática e valorativa, que transforma o passado num prolongamento do presente, com vista à apreensão de patologias sociais coletivas, cuja cura se deseja urgente. A história-tribunal não é exatamente a história-conhecimento, podendo embora depender dela para a escolha dos seus temas prediletos. Entre outras coisas, aquela caracteriza-se pela dependência perante uma tendência estática, marcada pelo anacronismo, quer dizer, impondo o império unitário de um modelo de racionalidade, idêntico não só para todo o sujeito pensante, mas para todas as épocas, sendo que tal modelo visa essencialmente uma intervenção sobre o presente da vida do homem em sociedade, em contexto permeável à ideologia.
Como tantas vezes sucedeu no passado, este esquema alimenta-se de ruturas com épocas e acontecimentos que, à luz de vincado dramatismo, arrastam cargas afetivas de sabor intensamente negativo. Neste caso, ergue-se amiúde uma polaridade antitética de coloração dramática, num contexto em que o passado obriga. Talvez o exemplo mais marcante desta tendência entre nós seja a Dedução Cronológica e Analítica (1767), de pombalina memória, em que o passado, sobretudo o século XVII, foi lido à luz da ofensiva global do geometrismo, que se afirmou como a lógica do Estado Absoluto.
Não podemos esquecer-nos, como sublinhou Hannah Arendt, de que no século XIX o racismo era intensamente cultivado por numerosos intelectuais de relevo. E que no século XVIII, grandes nomes da filosofia das Luzes, que cultivaram com afinco a ideia de Humanidade e de paz universal, veicularam ideias que hoje qualificaríamos como racistas. Leia-se por exemplo Philosophers on Race: critical essays (Oxford, 2002).
Portanto, é sempre importante saber em que plano inscrevemos as nossas considerações sobre o passado de um povo, neste caso o nosso. Se no plano da história-tribunal em que o passado obriga, na medida em que é simplesmente o prolongamento de uma agenda reformadora presente, ou se no plano da história-conhecimento, com as exigências que acima notámos. Ambos são legítimos, mas a fronteira tem que ser clara.
O mesmo se passa com o fenómeno da construção das identidades coletivas, atinentes ao modo como nos interpretamos como povo e comunidade. Dizer-se que somos um povo com estas ou aquelas características não pode ser encarado fora de uma perspetiva diacrónica de autoconstrução de si, vincando o dinamismo das etapas da construção da consciência histórica dos povos e das comunidades, num percurso em que se vão articulando diferenças e se vão percebendo continuidades dinâmicas. E também cumpre não esquecer que nenhuma época se reduz a uma uniformidade, e que, se assim a leem, alguém se engana.
No nosso caso, não nos pensámos sempre da mesma forma ao longo do tempo. Não tivemos sempre a mesma imagem de nós próprios como nação e comunidade. As múltiplas imagens do nosso passado como povo que a história-conhecimento documenta constituem um plano de análise de inusitada riqueza (Cf. Calafate, Portugal, um perfil histórico, FFMS, 2016). E aí se inclui também o modo como essas imagens foram usadas no quadro da história pragmática e valorativa. No nosso caso, a alternância entre ufanismo e decadentismo, quase sempre em contextos de forte dramaticidade, é uma das marcas desse percurso em que se foram formulando as nossas razões históricas de ser.
A presente narrativa sobre o nosso passado ultramarino, vincando interpretações extremadas de desvalia coletiva, é mais uma dessas etapas que pode ser fecunda se convenientemente enquadrada nos contextos que procurei apontar. Creio que vale não tanto pelo conhecimento do passado a que pretende referir-se, mas sobretudo por se tratar de uma imagem sobre o passado traduzida em agenda presente. Um daqueles casos em que, como já dissemos, o passado se transforma num prolongamento do presente. O mesmo sucedeu de algum modo em Espanha, fortemente marcada pela “leyenda negra” sobre os tempos de Cortés e Pizarro, construída em parte considerável graças ao relato de Las Casas sobre a destruição das Índias. Os actos de destruição e violência de Espanha nas Américas estão suficientemente documentados, mas isso não exclui que quem mais na época moderna tenha editado o relato de Las Casas na Europa tenham sido os holandeses, no contexto da luta pelas hegemonias no mundo moderno. Importa, pois, atender a estes dois planos de análise.
É interessante verificar que um livro recente de M. Elvira Barea (Imperiofobia y Leyenda Negra, Madrid, Siruela, 2016), situado no plano de análise destas narrativas, tenha alcançado em 4 anos mais de 100.000 exemplares, mostrando o espaço que há nas sociedades contemporâneas para estes debates, sem que aqui me pronuncie sobre o valor intrínseco deste sucesso editorial no país vizinho.
Alguém, por exemplo, ao falar de Locke como um dos fundadores do liberalismo e da tolerância refere que, ao contrário dos mestres espanhóis e portugueses de Salamanca e de Coimbra, Locke negou aos índios da américa do Norte o direito ao domínio sobre as terras que ocupavam?
Pela minha parte, tendo já superado o número de caracteres atribuído, tenho dedicado os últimos 10 anos do meu trabalho ao resgate dos manuscritos latinos dos professores renascentistas de Coimbra e Évora, onde a tese da unidade do género humano é afirmada como garantia de direitos universais de todos os homens e de todos os povos e onde se afirma a ideia de uma autoridade universal do orbe, fundada no direito (das gentes), entendido como expressão da experiência histórica compartilhada dos povos, a par da negação da escravatura natural, defendida por Aristóteles, e da admissão apenas da escravatura legal, como era prática comum no século XVI, mas exigindo sempre rigoroso inquérito sobre a validade dos respetivos títulos (Cf. P. Calafate, Escola Ibérica da Paz, 3 vols. Coimbra, Almedina, 2015-2020).
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