Nota crítica do livro «Praxe e Tradições Académicas»
Henrique Carmona da Mota, filho de uma figura histórica da praxe académica de Coimbra, critica o que alega serem imprecisões no livro «Praxe e Tradições Académicas» de Elísio Estanque.
Foi uma bela iniciativa publicar um livro sobre a praxe académica analisada por um sociólogo ligado ao Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra – “um estudo sociológico… uma leitura ensaística e crítica – mas rigorosa e objetiva”. (1)
O capítulo 3 («Boémia e tradições ritualistas») é crucial para se compreender a praxe estudantil, uma tradição de séculos. O autor propõe, e bem, usar uma «metodologia “arqueológica”: isto é, tentar reconstituir o passado para, ao projectar nele o olhar do presente, retirar daí uma nova luz». Acontece que esta reconstituição tem erros factuais graves. Na página 72 lê-se: «igualmente digno de registo é a popularidade de alguns nomes ligados ao imaginário académico, embora não estudantes, que povoaram a cidade em épocas distintas, e o papel que desempenharam no universo das representações intelectuais e estudantis. Personagens como o Agostinho Antunes, o Pantaleão, o Pad Zé, o Castelão de Almeida, entre outros, fazem parte da história da academia de Coimbra, sendo de certo modo apropriados por essa espécie de "academia paralela" que animava os ambientes boémios e contestatários de Coimbra do passado (Duarte, 2000)». (2)
Acontece que todos os personagens referidos estudaram e formaram-se na UC. Bastaria ter lido um livro (3) que cita na bibliografia: «O curso do Dr. Henrique Pereira Mota (Pantaleão) foi o introdutor do uso das cartolas na Queima das Fitas” e teve a ideia da “Venda da Pasta.» Além disso, todos essas “figuras”, depois de terem sido boémios padrão, tiveram vidas profissionais de mérito. Castelão de Almeida (3,4), como estudante, fundou o jornal O Ponney, indispensável ao estudo da praxe coimbrã dos anos 1925-35 (que o autor não cita). Castelão de Almeida licenciou-se em Direito e exerceu advocacia em Alpiarça, defendendo os pobres e os perseguidos pelo regime. Há uma rua Dr. Castelão de Almeida em Alpiarça (5 - trabalho que cita na bibliografia). Por sua vez, Pad Zé, de nome Alberto António da Silva e Costa, teve o nome numa rua da Alta de Coimbra (deliberação de 1936) e tem-no em outra no Fundão. «Formou-se a 21 de Julho de 1904 e foi para Lisboa. Tal era a sua reputação de invulgar causídico que Alexandre Braga o convidou a trabalhar no seu escritório, na Rua do Ouro. Começou, a partir daí, a sua aproximação aos meios republicanos e a crença na "revolução" que viria um dia. (6)
Sucede que não se trata de caso único – já tinha usado, várias vezes, (7,8) este texto. Agravando o erro, Elísio Estanque tece considerações hipotéticas («supõe-se») sobre factos que se revelam falsos: «Algumas dessas figuras, supõe-se que depois de convenientemente domesticadas, e uma vez garantido o seu lugar subalterno na comunidade, sendo alimentadas e até merecedoras de vestimenta própria (o traje académico), tornaram-se ícones de uma cultura onde a irreverência e o excesso eram condimentados com a atitude paternal em relação a esses (dóceis) animadores da algazarra estudantil. É o caso do Taxeira (cujo verdadeiro nome é Raul dos Reis Carvalheira). [...] Se a figura do "bobo da corte" pode parecer excessiva, é, no entanto, concebível que no ambiente coimbrão de outros tempos este tipo de figuras tenha exercido uma função semelhante.» (pág. 73)
É lamentável que um trabalho desta importância, realizado por um universitário com responsabilidades (refere «fazer parte de um centro de investigação» na pág. 118) coopte informações destas sem as confirmar (e tão fácil seria – suplemento dedicado à Queima das Fitas do Diário de Coimbra de 1999, ano anterior à dissertação de licenciatura (2). Se nenhuma das “figuras” que usou como “amostra” foi o que diz que foram, “figuras” que equipara “ao Taxeira”, toda a ilação decorrente se desmorona numa presunção para-factual. Esta imperdoável falha descredibiliza o autor para o que se segue no livro.
Henrique Carmona da Mota é filho de Pantaleão, referido no livro de Elísio Estanque e na crítica acima.
O livro «Praxe e Tradições Académicas» está disponível na loja online da Fundação.
- https://www.facebook.com/elisio.estanque/posts/10210676535855380
- Duarte, Madalena (2000), A taberna e a boémia coimbrã – Práticas de lazer dos estudantes de Coimbra. Coimbra: FEUC (diss. de licenciatura). Obra impossível de compulsar.
- Lamy, Alberto Sousa – A Academia de Coimbra. 2ª Edição, 1990.
- http://jornalalpiarcense.blogspot.pt/2013/01/os-rendeiros-da-gouxa-e-atela-1941-uma.html
- http://analisesocial.ics.ul.pt/documentos/1223990403T2oCN9gi5Xo15HK9.pdf e http://arepublicano.blogspot.pt/2007/11/alberto-costa-padz-nota-breve-parte-ii.html
- Carminé Nobre. “Coimbra de Capa e Batina”
- Revista Crítica de Ciências Sociais, 2008
- Revista Política & Sociedade 2010. UFSC, Florianópolis.
O acordo ortográfico utilizado neste artigo foi definido pelo autor.