Águas mil… ou não
Reduzir o consumo de água é, com certeza, o primeiro objectivo a adoptar para manter em aberto opções futuras num contexto de incertezas.
Talvez valha a pena olhar para o que fizemos no passado para tentar perceber que recursos e instrumentos temos para lidar com este objectivo.
O clima mediterrânico caracteriza-se pela coincidência da estação quente e da estação seca.
Para nós, que aqui vivemos, é tão natural associar calor a falta de chuva que nem reparamos, muitas vezes, como isso é tão raro no mundo inteiro.
Esta característica é acentuada por uma grande variabilidade da precipitação, e consequentemente de disponibilidade de água, de ano para ano.
E porque sempre assim foi, o problema da gestão da água sempre foi um dos grandes assuntos com que as sociedades mediterrânicas se confrontaram.
A produtividade primária, isto é, a velocidade a que crescem as plantas, é tanto maior quanto maior for a temperatura, na condição de não haver restrição na disponibilidade de água. Por isso os produtores sempre procuraram assegurar disponibilidade de água para as suas culturas, na tal estação quente que é, ao mesmo tempo, a estação seca.
A primeira opção do produtor é escolher os terrenos menos secos para as culturas mais nobres e que podem alimentar mais gente.
Por exemplo, a introdução do milho foi uma revolução tremenda na paisagem e na produção de riqueza, sempre que a disponibilidade de água para a sua produção existe: é um cereal muito produtivo e que, característica muito importante para este efeito, tem um ciclo de produção muito curto que lhe permite não estar na terra quando o Inverno encharca os solos e condiciona o crescimento ou mata as plantas por asfixia das raízes.
Até à introdução do milho na sequência das Descobertas, os cereais dominantes eram o trigo e o centeio, que se semeiam no Outono e no Inverno para colher no Verão, o que os obriga a estar na terra na Primavera de águas mil. Se o ano vinha muito chuvoso, as produções ressentiam-se do excesso de água do no solo, mas se o ano vinha muito seco, ressentiam-se da falta de água em alturas cruciais do seu desenvolvimento.
Se é verdade que a oscilação das produções era muito grande, e o risco elevado, era também verdade que, sendo de sequeiro, estes cereais podiam ser produzidos mais ou menos em qualquer sítio que tivesse um bocadinho mais de fertilidade.
Onde havia água em abundância suficiente e a altitude e o frio não impediam a cultura do milho, toda a paisagem foi organizada para permitir a sua produção e a capacidade de alimentar gente, nessas zonas, aumentou várias vezes.
Nas restantes regiões, onde a água permite, fazem-se hortas ou, se tal não é possível, fazem-se prados.
Esta necessidade absoluta de aproveitar todos os bocadinhos que tinham mais humidade levou à ocupação de todas as terras do fundo dos vales, ou mesmo das encostas, quando a abundância de água no Inverno permitia a instalação de prados de lima, nuns casos, ou socalcos, noutros.
Esta necessidade de dar de beber a quem tinha sede fez com que as tecnologias de aproveitamento de água fossem muito variadas em todo o país, adaptando-se magistralmente às condições locais: engenhos de elevação movidos pela corrente nos rios em que isso é possível, como nalguns troços do Mondego; engenhos de elevação de água movidos a vento, quando a água está relativamente perto da superfície e há vento, como em grande parte do litoral Oeste; engenhos de elevação de água movidos por animais, quando a água está perto da superfície e o vento não abunda, como em parte do Ribatejo ou do Algarve. A tecnologia de aproveitamento da água que corre nos ribeiros, com complexos sistemas de açudes e levadas que desviam a água do fundo dos ribeiros para as encostas, de modo a levar a água a ficar por cima dos terrenos, mais à frente, para que possam ser regados, tirando partido da gravidade.
Não tem conta a variedade de soluções encontradas para responder ao desafio com que os produtores estavam confrontados: produzir mais, para alimentar mais gente, num clima em que a água da chuva não existe quando faz mais falta, isto é, na estação mais quente.
Não ter uma confiança cega na tecnologia, em especial em tecnologias que ainda não passaram o teste do tempo, para resolver os novos problemas que possam surgir das alterações climáticas é da mais elementar prudência.
Desvalorizar a longa história de gestão da água e desenvolvimento tecnológico que permitiu alimentar milhões de pessoas, desconsiderando o contributo da tecnologia aplicada à resolução de novos problemas concretos trazidos por alterações climáticas que possam ocorrer, é uma atitude semelhante à de quem rejeita os benefícios da vacinação e nega a sua importância no aumento da esperança de vida de que todos beneficiamos.
Sensato será notar que o que une todas estas tecnologias não são as soluções encontradas mas a resolução de problemas concretos, adaptando as soluções a cada passo e variações de circunstâncias.
Não há uma bala de prata, não há soluções únicas para problemas complexos e globais, o que há são formas de pensar e de olhar sem preconceitos para as realidades que temos pela frente, procurando mais e mais informação.
Não nos resta senão estudar, fazer, avaliar, produzir mais informação, rever o que sabemos, refazer um bocadinho melhor e continuar assim indefinidamente.
O acordo ortográfico utilizado neste artigo foi definido pelo autor