«A tecnologia tem vários benefícios, mas não é a resposta para todos os problemas»
Reveja o Fronteiras XXI “O que ganhamos com o digital?”
Segundo o Parlómetro de 2020, um quarto dos portugueses não usa Internet em casa. Isto significa que quase 2,5 milhões de pessoas estão excluídas da transformação digital. E Bárbara Barbosa Neves, socióloga perita em tecnologia, alerta que “as desigualdades sociais estão a aumentar entre grupos e entre países” devido a esta revolução. “Há uma relação muito forte entre inclusão digital e social”, frisa a professora da Universidade Monash, na Austrália. E a solução para este desafio passa pouco pela tecnologia em si, e mais por políticas públicas que tenham em conta “as diferentes perspectivas e experiências de vários grupos sociais”.
A transição digital está a contribuir para novos meios de interacção social, de trabalho, de organização, mas não actua isoladamente. A tecnologia faz parte da sociedade e de contextos sociais específicos, não é algo exterior que nos afeta sem ligação a qualquer dimensão social, cultural, política, económica. A sociologia da tecnologia, que é a minha área de investigação, critica a ideia de que a tecnologia é o único motor de progresso e de mudança social. Esta relação causal é simplista e redutora, porque são necessários contextos sociais favoráveis à adopção de uma tecnologia para que esta seja usada. E temos vários exemplos de tecnologias digitais que não foram adoptadas conforme o esperado; por exemplo, os Óculos da Google que foram descontinuados em 2015 e depois redesenhados em 2017 para certas profissões e indústrias, ou a rede social Google+ que falhou.
Claro que as novas tecnologias afetam dinâmicas e mudanças sociais, mas em interligação com outros elementos sociais e com a nossa capacidade de acção e agência como indivíduos. Nós, como utilizadores, também influenciamos a forma como a tecnologia é usada e como evolui –contribuímos activamente para a sua transformação, mesmo quando achamos que não. O conteúdo que escolhemos publicar nos sites ou partilhar nas redes sociais torna-nos simultaneamente produtores e consumidores, e as palavras que usamos nas pesquisas online contribuem para os algoritmos dos motores de busca (como o Google).
Os benefícios são vários. Facilitou o acesso a informação, a bens e serviços (como as compras e as transacções bancárias online), a modos mais flexíveis de trabalho, a grupos e comunidades de interesse comum. Permitiu manter relacionamentos sociais independentemente de restrições de tempo e de espaço, o que é muito importante para ajudar a diminuir o isolamento social e a solidão e para conservar as ligações das famílias transnacionais – como no meu caso que vivo no estrangeiro, mas tenho família e amigos espalhados pelo mundo.
Também possibilitou criar e divulgar conteúdos sem a necessidade de um intermediário, contribuindo para uma participação social mais alargada e diversa. Os utilizadores de redes sociais como YouTube ou o TikTok são considerados promotores de conteúdo além de consumidores e produtores.
Sim, o nosso conhecimento do digital tem de estar sempre a ser actualizado para acompanhar a rápida evolução tecnológica. O que é difícil para os grupos de níveis socioeconómicos mais baixos. O ensino a distância mostrou as dificuldades e desigualdades no acesso às tecnologias digitais que muitas crianças experienciam. Há uma relação muito forte entre inclusão digital e social. Mas ter literacia digital já não é suficiente para se fazer uma utilização benéfica das novas tecnologias digitais. Precisamos de literacia digital crítica, que ajude a ter um olhar crítico sobre a forma como usamos as tecnologias e as consequências dessa utilização – como a falta de privacidade.
Sim, as desigualdades sociais estão a aumentar entre grupos e entre países. As pessoas sem acesso estável e ilimitado a tecnologias digitais ou sem capacidade e competências para usá-las não só se vêem privados das vantagens referidas anteriormente como também podem perder o acesso a serviços públicos que cada vez mais migram para o digital e vão deixando de ter pontos físicos. Isto é particularmente importante para as pessoas idosas, mas também para quem vive em zonas rurais. Significa que estes indivíduos estão mais afastados de oportunidades de emprego e de formas de participação pública e política, levando a uma exclusão social.
Além das desigualdades sociais, a investigação científica tem demonstrado que os sistemas de inteligência artificial perpetuam enviesamentos raciais e étnicos, económicos e de género. Desde sistemas de vigilância policial orientados para pessoas negras, a algoritmos de recrutamento profissional que privilegiam currículos de candidatos masculinos. E estes sistemas já são usados por vários países ocidentais.
Outras consequências negativas incluem novas imposições nos horários de trabalho, que afectam a nossa capacidade para ter equilíbrio entre o trabalho e a vida pessoal. Por exemplo, expectativas de que temos de estar sempre ligados à Internet e a responder a e-mails de trabalho, longas jornadas via videoconferência, etc. Aliás, durante o confinamento vimos como não só as expectativas laborais continuaram independente de termos que cuidar de crianças e de familiares dependentes, como, em alguns casos, aumentaram – sobretudo para as mulheres na sua dupla jornada de trabalho.
Primeiro, temos de ser críticos desta ideia de solucionismo tecnológico, de que a tecnologia vai ser a resposta para todos os nossos problemas. Por exemplo, não adianta criar intervenções e respostas baseadas em tecnologias de comunicação para aliviar a solidão e o isolamento social sem antes se abordar o estigma social da solidão e a necessidade de relacionamentos fortes e de qualidade. A solidão é um problema social, não é só um problema pessoal ou individual. Por isso, quaisquer intervenções, respostas ou estratégias digitais para esta questão têm que estar intimamente ligadas com estratégias sociais.
Em segundo lugar, é essencial entender-se que as novas tecnologias digitais trazem benefícios e desvantagens. Isso é importante para o desenvolvimento e implementação de políticas públicas e de mecanismos de regulamentação que regulem a forma como as tecnologias são usadas pelas empresas e instituições.
Em terceiro lugar, é indispensável que essas políticas sejam baseadas em evidência empírica. É importante evitar o que chamamos de “pânico moral” em relação à inovação, o medo de que a tecnologia nos vai destruir – incluindo a nossa capacidade de pensar. Isto acontece sempre que uma tecnologia nova é introduzida. Contudo, é também crucial evitar a chamada utopia tecnológica, a ideia que as tecnologias são sempre positivas e vão democratizar o acesso a tudo.
Igualmente, precisamos de estratégias públicas focadas na promoção de literacia digital crítica e de políticas participativas que incluam as diferentes perspectivas e experiências de vários grupos sociais, como as pessoas idosas.
Por fim, defendo que se incluam grupos de utilizadores e investigadores de várias disciplinas científicas na formulação, refinamento e implementação de tecnologias e estratégias de transição digital.
O acordo ortográfico utilizado neste artigo foi definido pelo autor