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Quão democrática será a família portuguesa?

Hoje podemos escolher que tipo de família queremos ter. Se casamos ou não. Se damos o nó com uma pessoa do mesmo sexo. Se temos filhos ou não. Se nos divorciamos e voltamos a juntar os trapos. Nesta entrevista, Karin Wall, socióloga, investigadora coordenadora e diretora do Instituto de Ciências Sociais (ICS) da Universidade de Lisboa, explica as mudanças nas famílias portuguesesas e deixa alertas.
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Antes da instauração da democracia em Portugal, existia um só modelo de família e aqueles que não o adoptavam eram marginalizados pela sociedade. O leque de opções aumentou sobretudo com a entrada no novo milénio, mas foi a Revolução de 1974 que deu o mote.

Karin Wall, socióloga e directora do Instituto de Ciências Sociais (ICS) da Universidade de Lisboa, avisa que não devemos dar como adquirida a evolução positiva na família: “Os contextos sociais e políticos têm impacto e podem influenciar os comportamentos e os valores, como a opção de escolha e a pluralidade de formas de viver em família”.

A investigadora coordenadora do ICS lembra que “é na família que se aprende sobre a democracia e a igualdade, e se pratica a divisão e a partilha das tarefas domésticas, a negociação, a resolução de conflitos e tensões, o cuidar dos outros”.

 

A noção que hoje temos de família mudou?

Sim. Hoje há muitas pessoas que pensam na família como um misto de pessoas ligadas entre si não só por laços de sangue ou de aliança, mas também por laços de amizade ou vizinhança. A noção de família alargou-se. Há pessoas que excluem parentes da sua família porque não têm uma relação positiva com eles, mas incluem pessoas que elegem, ou mesmo os seus animais domésticos, como têm revelado estudos recentes. É aquilo a que chamamos a família electiva. 

 

E o papel da família na sociedade portuguesa, mantém-se igual?

Algumas funções da família são parecidas, outras mudaram. Por exemplo, hoje, é muito importante para os portugueses haver igualdade e democracia na família. E valoriza-se mais a estabilidade emocional, a realização pessoal e a gratificação afectiva. Por outro lado, continua a ser importante a função de solidariedade, particularmente na partilha de alojamento e de recursos económicos, e de protecção, com destaque para as crianças, que têm uma grande centralidade na vida familiar. Embora a família moderna queira a sua independência, com a crise económica que o país atravessou algumas pessoas voltaram a viver com os pais ou com a família alargada. Uma realidade que ainda se verifica em zonas onde os custos com a habitação não são acessíveis.

 

Porque é que a família é importante?

É importante sobretudo do ponto de vista da socialização e da educação das crianças e dos jovens. Porque é na família que se aprende sobre a democracia e a igualdade, e se pratica a divisão e a partilha das tarefas domésticas, a negociação, a resolução de conflitos e tensões, o cuidar dos outros. Além dos afectos, do convívio, da amizade, do apoio, também há um aspecto de aprendizagem mútua e recíproca entre gerações.

 

Que factores contribuíram para a evolução da família, em Portugal?

Foi sobretudo com a entrada na democracia, a partir dos anos 70, que o país começou a ver mudanças na família. Um dos primeiros sinais foi rápido: logo a seguir ao 25 de Abril de 1974, houve um pico de divórcios. Mas demorou duas décadas até chegarmos a uma taxa de divórcio equivalente à que existe noutros países europeus. Por outro lado, deixou de se diferenciar na lei os filhos nascidos dentro e fora do casamento e o casamento religioso foi perdendo importância com a laicização da sociedade portuguesa. Hoje em dia, os filhos nascidos fora do casamento já superam os nascidos dentro do casamento.

 

A introdução da pílula e a entrada da mulher no mercado de trabalho contribuíram para as alterações?

Absolutamente. A pílula permitiu separar a sexualidade da reprodução, tornando-se um instrumento fundamental do controlo dos nascimentos dentro e fora da vida conjugal. A defesa do trabalho feminino pago e da igualdade de género foram essenciais para o desenvolvimento da família democrática, baseada no companheirismo, na autonomia económica e na partilha de papéis e responsabilidades dentro e fora de casa. Embora as mudanças tenham sido primeiramente protagonizadas pelas mulheres, os homens também têm vindo a contribuir através da sua entrada na vida doméstica, prestando cuidados aos filhos e partilhando as tarefas da casa.

 

Entretanto, as mulheres deixaram de ter tantos filhos como nos anos 60. E agora fala-se muito em medidas para aumentar a natalidade.

É muito difícil aumentar a natalidade. Em Portugal, as famílias frequentemente querem ter mais filhos, mas a incerteza e a precariedade não o permitem. Há vários domínios em que a vida das famílias continua a ser muito difícil. A habitação é um deles. O mercado de trabalho e a conciliação entre a vida familiar e profissional é outro. As famílias sentem falta de tempo, de recursos e de apoio.

 

As políticas públicas de habitação, de conciliação entre o trabalho e a família e de igualdade de género não estão a dar resposta às necessidades?

É importante reforçar todos esses instrumentos. E mesmo assim não é certo que se consiga um aumento da natalidade. A verdade é que estas políticas se têm desenvolvido ao longo das últimas décadas, nomeadamente ao nível do abono de família. Também se registou progresso nos serviços de apoio, como a creche e o pré-escolar, e nos serviços de apoio domiciliário. E houve uma importante evolução no que toca às licenças de parentalidade. No entanto, durante os anos de crise e de austeridade, essas políticas tornaram-se mais restritivas e menos generosas, o que se reflectiu no bem-estar de muitas famílias. Por isso, não podemos focar só a questão da natalidade. Por exemplo, as famílias estão vulneráveis na prestação de cuidados aos seus idosos.

 

O progressivo aumento da idade da reforma não ajuda. Portugal equacionaria diminuir a carga laboral para as pessoas conseguirem cuidar da família?

Já oiço falar nisso há muitos anos, mas não vejo nem Portugal nem outros países europeus a implementarem essa medida. O mais próximo que temos disso é a jornada contínua e também o trabalho a tempo parcial, que não é a mesma coisa e apresenta problemas como desigualdades salariais, na progressão profissional e nas próprias carreiras contributivas. Sobretudo para as mulheres, porque são sobretudo elas que trabalham nesses regimes.

 

Se fosse instituída uma licença de paternidade equivalente à de maternidade, isso ajudaria a evitar situações de discriminação no mercado de trabalho?

Sim, porque deixaria de recair sobre as mulheres o ónus das responsabilidades familiares, que é o que tem legitimado a sua discriminação no mercado de trabalho. A última directiva europeia que saiu relativamente a esta questão estipula apenas que o pai tem direito a duas semanas de licença (deste ponto de vista, a situação em Portugal é melhor). Estamos muito longe de uma igualdade de género no âmbito das licenças. Até digo mais: nalguns países os partidos políticos de direita e de extrema direita contestam estas políticas, bem como o direito ao planeamento familiar, o direito ao aborto e a promoção das carreiras femininas. Ressurgiram movimentos associativos de defesa da mãe doméstica.

 

Acredita que Portugal recuaria no tempo no que toca a estes valores, se a maioria dos países europeus adoptasse uma postura mais conservadora?

O contexto ideológico e político actual, e este enfoque na natalidade, estão a dificultar a valorização de políticas básicas de conciliação entre a família e o trabalho e de igualdade de género. Precisamos de desenvolver os serviços e de perceber como é que as famílias vão cuidar dos idosos. Isso só se faz revendo os horários de trabalho e as desigualdades que continuam a existir dentro e fora da família. Mas, na prática, só se estão a criar dúvidas sobre o que a família poderá ser num futuro próximo.

 

Neste momento, as pessoas podem escolher o tipo de família que querem ter. Não vai continuar a ser assim?

Os contextos políticos e sociais têm impacto e podem influenciar os valores, como a opção de escolha e a pluralidade de formas de viver em família. Embora sejam conquistas dadas como adquiridas no contexto europeu, estão em curso algumas mudanças, mesmo em Portugal, que poderão dificultar a concretização da igualdade de género num futuro próximo. Agora, isso só acontecerá se o Estado não conseguir proteger e fortalecer as conquistas adquiridas.

 

Como é que o Estado deve gerir este cenário?

Definindo objectivos e medidas que defendam esses valores, partilhando com a família as responsabilidades dos cuidados e apoios, sobretudo no que toca às crianças e aos idosos, e protegendo as famílias mais vulneráveis. Ainda assim, pode não ser economicamente sustentável para o Estado reforçar todos os serviços necessários. Nessas circunstâncias, havendo ainda desigualdade no cuidar das famílias, as mulheres estarão na linha da frente.

 

Então, não basta só a intervenção do Estado para se evitar um retrocesso?

A verdade é que as pessoas deveriam poder contar com múltiplas opções de cuidados. Só que isso exige mais colaboração entre as famílias, as redes informais [os amigos e vizinhos], o Estado e o terceiro sector [iniciativas da sociedade civil com utilidade pública]. É importante encontrar solidariedades alternativas e diversificadas. É preciso mobilizar todos estes actores. Não vale a pena culpar os filhos, porque podem não existir, podem viver geograficamente afastados dentro do país ou estar espalhados pelo mundo porque não encontram emprego em Portugal.

Reveja o Fronteiras XXI «Famílias como as nossas»

O acordo ortográfico utilizado neste artigo foi definido pelo autor

Portuguese, Portugal