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«Pensei muitas vezes: não consigo fazer isto»

«Pensei muitas vezes: não consigo fazer isto»

Excerto do livro ‘Porto, última estação’, de Mariana Correia Pinto.
5 min
Publicamos um excerto (págs. 15-18) do livro ‘Porto, última estação’, onde a autora Mariana Correia Pinto retrata a vida em algumas das ruas e bairros mais problemáticos da freguesia de Campanhã, no Porto.

 

São longas e delicadas as tardes das terças-feiras. [O assistente social] Chalana tem calo de décadas, mas ainda chega exausto ao fim do dia. O Lagarteiro já não é o bairro onde chegou em 1997, explicado numa pichagem que era cartão de visitas: “Bem-vindos ao inferno.” Ele sentia-se nele. Seringas no chão, o tráfico a crescer, a SIDA a matar, assaltos, tiros, prostituição, pobreza. A cada pedido, perdia-se um pouco mais: uma casa nova, um emprego, uma vaga no infantário, dinheiro para pagar o supermercado e medicamentos. A angústia de não poder resolver os problemas era corrosiva. “Pensei muitas vezes: não consigo fazer isto.” Tinha então 30 anos. Estava entre a paixão da luta e a busca do equilíbrio — não tinha ainda decidido que as regras, quando injustas, são para ser quebradas. Os anos trouxeram ao bairro um processo de recomposição social. Hoje, definir o Lagarteiro já não é falar do mesmo tormento. “Eclético” — talvez seja essa a palavra que melhor o adjectiva.

— Tanto tens pessoas em esquemas desviantes de sobrevivência, o tipo que não paga a água nem a luz e vende droga, como, na mesma entrada, aparece a senhora que se levanta cedo para ir trabalhar e cujo marido já é coordenador de uma brigada na EDP.

A vitória da ascensão social produz quase sempre um desvio do bairro. Quem estuda, arranja um emprego e vislumbra uma nova vida ambiciona, na maior parte das vezes, fugir dali. Escapar ao estigma de ser do Lagarteiro. “Dizem-me muito: quem quer ser feliz não fica aqui.” Chalana revolta-se com os rótulos colados a muitos dos seus utentes. Sabe que deles nascem fragilidades e se constrói um afastamento da sociedade, se condicionam comportamentos e hipotecam futuros. Nisso, diz, o Lagarteiro permanece um inferno. A limpeza das fachadas e o arranjo de alguns espaços comuns, prometidos há anos e retomados em 2014, foram importantes — mas o problema está longe de ser resolvido. No interior, muitas casas permanecem em condições inabitáveis. E a imagem dos moradores na sociedade está por compor. A fintar esse estigma, há até quem encubra a morada no centro de emprego quando lhes perguntam onde vivem.

— Moro na Alameda Arquitecto Carlos Ramos...

— Onde é isso?

— Está a ver a Rotunda do Freixo? Sobe uma rampinha e é por ali...

— No Lagarteiro?! Obrigada, a gente depois liga-lhe.

— Mas desculpe, eu ainda não lhe dei o meu número de telefone.

José António Pinto relata incomodado o episódio demasiadas vezes repetido pelos seus utentes. “Isto é doloroso.” Portas assim batidas, estrondosamente, moldam-lhes o carácter. Naquela conversa, uma pessoa terá ficado mais longe de ser um cidadão pleno.

Chalana põe-se a estudar sempre que a “cultura da pobreza” o surpreende. O papel de um assistente social é também ser interlocutor desta gente sem voz, sindicatos, partidos ou movimentos, e traduzir à sociedade as incoerências deles, “muitas e difíceis de compreender”: não pagar o infantário e ter parabólica, tomar o pequeno-almoço no café e viver do RSI, precisar de emprego e faltar quando o arranja, pedir um cabaz extra de comida e ir buscá-lo de táxi. Por que razão têm estas pessoas determinados comportamentos? Na tese de mestrado em sociologia de José António Pinto — “A Desafeição pelo Trabalho” — apresentam-se teorias e propõem-se soluções. Fazer o melhor pelos seus utentes é também ler, perceber, ler mais, perceber mais. “Quanto mais estudo, mais tolerância tenho, mais compreendo as pessoas.”

Por isso, quando alguém lhe aparece de iPhone na mão, sapatilhas de marca e roupa da moda, não estranha. Muito menos julga. Para aquelas pessoas, sem prestígio e visibilidade, os trunfos são quase sempre objectos, justifica: “Não estudaram em Cambridge, não fizeram um doutoramento, não vivem na Foz, não são filhos do senhor doutor. A mãe está presa, o pai é alcoólico, os irmãos andam na droga. Eles afirmam-se pelo telemóvel.” E vivem o momento. Por isso, chega o RSI e gastam tudo: “Pergunto-lhes ‘e amanhã?’. E eles dizem-me ‘sei lá de amanhã, nem sei se chego ao fim do dia de hoje’.”

No bairro de 446 casas, o desvio é frequentemente uma reacção. Ao fracasso na escola, à desinserção profissional, ao descrédito na política e na igreja, à desestruturação da família, à quebra das solidariedades tradicionais, à competitividade ou ao individualismo. Se a industrialização fez do trabalho factor primeiro de integração social, a desindustrialização, a partir dos anos 60 e 70, trouxe um descalabro na identidade. Em Campanhã, os níveis de desemprego dispararam com o fecho das fábricas — e as ruínas, ainda presentes neste território, não foram apenas de pedra e cimento. Em muitos casos, a privação do emprego significou o fim do papel do chefe de família: o homem deixou de levar dinheiro para casa e perdeu poder. Diluiu-se. Ao mesmo tempo, os convívios esboçados nas colectividades foram-se extinguindo com o aparecimento das grandes superfícies comerciais. E as freguesias mais centrais debateram-se com uma preocupante perda de população, primeiro para outros locais da cidade, mais tarde para os municípios vizinhos como Matosinhos, Maia ou Gondomar. Campanhã ficou numa espécie de limbo: entre a lógica urbana não alcançada e o subúrbio clássico no qual não se transformou. Em Azevedo, onde o Lagarteiro surgiu, criou-se um submundo do submundo.

Porto, última estação.
“Porto, última estação”
Portuguese, Portugal