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Pandemia não terá aumentado os casos de cancro, mas reduziu prevenção secundária e instituiu o medo

Pandemia não terá aumentado os casos de cancro, mas reduziu prevenção secundária e instituiu o medo

Num artigo exclusivo para o blog da Fundação, o patologista Manuel Sobrinho Simões fala de uma redução da «prevenção secundária» do cancro e alerta para o medo interiorizado por muitas pessoas.
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Infelizmente, penso que as limitações introduzidas pela pandemia na “luta contra o cancro” são comuns à grande maioria dos países europeus. A pandemia atravessou-se brutalmente na “epidemia” de doenças oncológicas do século XXI, sobretudo nos países mais ricos mediadas pelo esticar da longevidade, aumento da obesidade e da diabetes, intensificação das agressões ambientais e domésticas, modificações microbióticas e crescente prevalência das inflamações crónicas.

Não há evidência de que a infecção vírica em curso tenha interferido directamente na origem ou progressão dos cancros. Entretanto, a situação pandémica tem vindo a reduzir a prevenção secundária devido à diminuição do diagnóstico precoce (afrouxamento dos programas de rastreio e menor acessibilidade a consultas). De um modo semelhante, tem diminuído a terapêutica cirúrgica atempada de numerosos tipos de cancro, contribuindo para um aumento de doenças oncológicas avançadas, de tratamento mais difícil. Pessoalmente, tenho também testemunhado, mais raramente, em consultas de segunda opinião, casos de sobrediagnóstico de tumores malignos que não o justificam.

Várias razões condicionadas pela situação de pandemia confluem no sentido do enfraquecimento da “luta contra o cancro”. Desde logo porque o desempenho excepcional do Serviço Nacional de Saúde implicou algumas limitações logísticas no domínio do diagnóstico e tratamento de doenças não-COVID. Além disso, a diminuição dos recursos humanos, fora da COVID-19, tem contribuído para uma menor eficiência da prática médico-cirúrgica. Neste mesmo sentido, penso que a fragilidade das redes de diagnóstico, tanto na anatomia patológica como em grupos multidisciplinares, poderá contribuir para algum sobrediagnóstico. Finalmente, valerá a pena salientar o papel negativo (issimo) desempenhado pelo medo interiorizado por muitas, mas mesmo muitas pessoas, que têm receio em vir aos Centros de Medicina Geral e Familiar e às consultas em instituições hospitalares com capacidade de diagnóstico na área da oncologia.

Reconhecendo a complexidade dos problemas atrás enunciados, penso que só conseguiremos melhorar a “luta contra o cancro” se compreendermos o valor da educação, da solidariedade e da resposta colectiva em associação com os desenvolvimentos técnico-científicos, a competência profissional e a qualidade das instituições. Neste tempo de pandemia ainda é mais importante valorizar as pessoas e a relação entre os doentes e os profissionais a la relação médico-doente “do” antigamente. Atenção, também, à importância crucial da prevenção e do cuidar, desde a gravidez até ao fim da vida. 

 

O acordo ortográfico utilizado neste artigo foi definido pelo autor.

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