O debate sobre a dívida em 20 perguntas
No Fronteiras XXI sobre a dívida, o ex-ministro das Finanças Miguel Cadilhe e os professores de Economia Ricardo Paes Mamede e Fernando Alexandre debateram causas e soluções. Aqui fica o debate em 20 perguntas e respostas.
1. Em Portugal, as dívidas do Estado, das empresas e das famílias atingem em conjunto mais de 350% do PIB. Chegamos a este ponto porquê?
Para Miguel Cadilhe, “a crise financeira internacional teve severas consequências em Portugal” e “trouxe uma profunda mudança de circunstâncias, a tal ponto que os contratos que vinham de trás podem justa e legalmente ser revistos face à nova realidade”, alertou o ex-ministro das Finanças de Cavaco Silva. Por outro lado, “devemos perguntar-nos se os bancos, o Estado e as instituições de vigilância da República actuaram devidamente e prepararam o país para um choque na economia como aquele que se verificou em 2007/2008”.
2. Não estávamos preparados…
“Portugal não estava preparado”, diz. O ex-governante lembra que as famílias recorreram a crédito fácil, os bancos procuraram impulsionar a concessão de crédito com taxas de juro demasiado baixas e o Estado entrou pela dívida pública sem quaisquer avisos nem prudências. “Em poucos anos, passámos de um rácio da dívida pública de 50% do PIB para 130% do PIB, o que a União Europeia (UE) considera um grave sinal de alerta na zona euro”.
3. A dívida nacional é composta sobretudo pela dívida das empresas não financeiras (40%) e do Estado (36%), enquanto as famílias representam apenas 24%…
A dívida das famílias é aquela com menor peso e tem vindo a ser reduzida, explica Fernando Alexandre. Lembrando que 81% do valor da dívida é crédito à habitação, o professor de Economia da Universidade do Minho adianta que as famílias têm feito um grande esforço para cumprir os seus pagamentos, com “milhares de portugueses a emigrarem para poder continuar a pagar a casa”. O crédito das famílias deverá, aliás, continuar a cair de forma substancial, defendeu, com as estimativas a apontarem para uma quebra de 25% no crédito à habitação a cada 5 anos.
4. E como está a situação das empresas?
“Nas empresas, o problema é mais sério pois 55% do crédito vencido está no imobiliário”, continua Fernando Alexandre. “A crise portuguesa é muito diferente da que afectou a Grécia ou a Espanha, pois começou em 2001 quando a economia deixou de crescer. E o sector da habitação tem estado a cair desde aí”. E se se compreende a opção do Estado de tentar reanimar um sector que estava a perder emprego e cujos trabalhadores são difíceis de requalificar, mais difícil é perceber como é que os bancos colocaram tanto dinheiro no imobiliário, argumenta. “Estamos hoje a pagar os problemas da banca, que só existem porque o dinheiro foi canalizado para um sector em queda”.
5. Vivemos acima das nossas possibilidades?
Ricardo Paes Mamede defende que é fundamental abandonar certos mitos: “Há cinco ou seis anos só se falava da dívida do Estado, mas hoje vemos aqui que a dívida das empresas é mais importante do que a dívida pública” e que “o grosso do endividamento do Estado só acontece quando a economia privada está a entrar em crise”. O professor do Instituto Universitário de Lisboa (ISCTE) acredita que o “endividamento do Estado não se deve ao investimento público”. Deve-se sim, diz, “ao facto de o Estado não conseguir angariar receitas para a despesas que tem, pois a economia está a ter um mau desempenho”.
6. Porque é que a economia nacional não cresce há 16 anos?
“Em Portugal houve uma liberalização financeira com uma extensão e profundidade sem igual na Europa: em pouquíssimos anos todo o sector bancário foi privatizado e desregulamentado”, começa por explicar Ricardo Paes Mamede. Por outro lado, “em 2000 o Estado não está muito endividado mas os privados estão”. A economia é sujeita a uma série de choques competitivos, conta, a economia privada começa a derrapar e o Estado começa a absorver estes choques. “Quando chega a crise internacional, Portugal já estava muito vulnerável”. Contrariamente, para Miguel Cadilhe “Portugal entrou em crise de finanças públicas em 2011 por causa do Estado e não da economia privada”. O ex-ministro recorda que a despesa pública continuou a crescer sempre:
7. E no sector bancário o que devia ter sido diferente?
“A banca foi causa e efeito ao mesmo tempo, numa espécie de auto-alimentação do problema”, defende Cadilhe. “Mas a banca só por si não gera este problema de dívida pública: “O Estado é que foi mal conduzido e aumentou a despesa pública de forma inaceitável”, argumenta. “A grande reforma do Estado, a grande consolidação estrutural da despesa pública não está feita”.
8. Mas é possível dissociar a dívida pública da dívida dos privados: banca, empresas ou famílias?
A dívida do Estado “está intrinsecamente ligada” à dos privados, diz Paes Mamede. “A montante da culpa dos bancos temos de pensar que foram os governos que decidiram conduzir a uma privatização tão acelerada [do sector financeiro]”, recorda. Para Fernando Alexandre a forma como o Estado cresceu também arrastou as famílias e as empresas. “Grande parte do endividamento na construção está nas parcerias público- privadas e o Estado teve culpa nisso”, afirma. Já em relação à dívida pública, lembra que temos um Estado de primeiro mundo, com infra-estruturas, um sistema de saúde e de educação muito bons, mas uma economia que parou de crescer no novo milénio. “A economia não acompanhou a materialização dos direitos dados aos portugueses”. Por isso, para o professor de economia, “o resgate da Troika é a maior falha da democracia portuguesa: quando o Estado falha os seus pagamentos, põe em causa os direitos da Constituição”.
9. Foi essa política de estímulo orçamental à economia que levou o Estado a perder o Norte?
“Foi o passo para o abismo”, reconhece Fernando Alexandre. Mas o problema começou antes. “O ano de 2002 foi muito importante, porque foi quando as despesas com prestações sociais ultrapassaram as despesas com salários no Orçamento do Estado”, explica, considerando que a dificuldade não está nos salários, mas sim no controlo da despesa com prestações sociais.
10. A despesa com prestações sociais não vai melhorar…
“As despesas com prestações sociais representam 400 ou 500 milhões de euros adicionais todos os anos”, diz o professor da Universidade do Minho, considerando que esse é o grande desafio. “Enquanto país ninguém nos obrigou a gastar. Em 2009 e 2010 tivemos um défice superior a 10%. Ninguém teve um tipo de política de resposta à crise com a intensidade que nós tivemos, não era preciso tanto”. Fernando Alexandre lembra ainda que paralelamente “havia empresas que faziam endividamento fora do Estado”. É o caso da Parque Escolar ou da Estamo, “empresa pública que se endividava na banca para comprar edifícios públicos”, recorda.
11. O problema foi o investimento público?
Para Paes Mamede “as medidas extraordinárias de investimento público não tiveram um impacto muito decisivo no orçamento a partir de 2008”. O professor do ISEG explica que grande parte do investimento público foi co-financiado em 85% pela União Europeia e até garantiu dinheiro ao Estado. “Em muitos destes investimentos, por cada 100 euros de investimento público o Estado pagou 15%. E como esse investimento implicava impostos, IVA ou IRC [que revertem para os cofres públicos], na verdade o Estado ficou a ganhar com o investimento e não a perder”, alega. Para o comentador da RTP, o aumento da dívida pública a partir de 2008 explica-se essencialmente com dois factores: por um lado, o aumento do perímetro das contas públicas (dívida das empresas públicas passou a ser considerada em Orçamento ) e o impacto tremendo que a crise internacional e o programa de ajustamento tiveram nas mesmas contas.
12. Mas também houve recomendações europeias para o investimento público…
“Em 2009, em plena crise financeira, houve recomendações aos estados-membros para fazerem política anti-cíclica, mas em Portugal por ser um período eleitoral fez-se mais do que as recomendações”, acusa Miguel Cadilhe, lembrando que nesta altura, até foram dados aumentos na Função Pública, por exemplo. “Se as finanças públicas já não estavam preparadas, menos preparadas ficaram para aguentar o choque da crise internacional”, afirma. Para o ex-governante, a grande dificuldade está em perceber como foi possível chegar aqui quando há mecanismos de vigilância financeira como o Banco de Portugal e o Tribunal de Contas, ou de supervisão política, como o Parlamento ou o Presidente da República. “Porque é que todos falharam de modo flagrante pondo em causa o bom nome da Democracia?”, questiona.
13. A Europa também não deu o alarme?
“Também não nos avisou”, reconhece Cadilhe. A Europa tem, agora, um mecanismo de desequilíbrios macroeconómicos e uma grelha de sinais de alerta. “Desses 14 indicadores Portugal não cumpre três: a dívida pública, que está muito acima dos 60%, a dívida privada, em que somos o 7.º país, e na posição líquida de investimento internacional, em que somos dos piores países. É bom que as instituições da República façam este acto de contrição, para tirarmos ilações para o futuro”.
14. O controlo da dívida não depende também de uma boa gestão da política macroeconómica da Europa?
Esse é um dos problemas da arquitectura da União Europeia, reconhece Ricardo Paes Mamede. O problema fundamental é a dívida externa, que nos leva à crise e no facto de, na União Europeia, não existir uma solução para resolver estes problemas, argumenta. “Infelizmente é mais fácil dar explicações absurdas como os países do Sul gastarem em copos e mulheres, do que dar explicações realistas sobre a origem do problema”.
15. Como é que Portugal vai conseguir pagar a dívida pública?
É preciso mais crescimento económico e é preciso que o Estado, mantendo o Estado Social, se torne mais leve, defende Cadilhe. Isso só se consegue com a reforma dos regimes públicos. Em 1989, quando eu estava nas Finanças, introduzi auditorias externas independentes à gestão e recursos de cada grande serviço público. “As primeiras auditorias externas foram realizadas. Claro que houve resistências, claro que o ministro das Finanças saiu passado pouco tempo, por essa e por outras razões”, recorda, acrescentando que essas auditorias teriam sido o primeiro grande passo para a reforma estrutural do Estado.
16. Este ano está previsto em orçamento de Estado o pagamento de oito mil milhões de juros. Não são insustentáveis?
Segundo Miguel Cadilhe essa é uma despesa corrente que o Estado não pode evitar. “Portugal devia propor à Europa uma menor taxa de juro na parte que é financiamento da Europa. Porque não faz sentido que as instituições europeias ganhem algum dinheiro que seja com a situação de necessidade que vivemos no país”. Por outro lado, adianta, o Estado tem a facilidade de ter o BCE a comprar dívida, taxas de juro baixíssimas. Se as taxas de juro subirem…
17. Podemos pedir maior flexibilidade à Europa?
“Defendo uma renegociação honrada da dívida junto da Europa, de forma a prolongar o nosso prazo e reduzir as taxas de juro”, adianta Cadilhe. Porque nesta matéria a Europa tem responsabilidade: “O seu maior erro foi permitir que dentro da zona euro as dívidas soberanas entrassem em crise de reputação de forma inaceitável, passassem a ter mau nome”. Também para Paes Mamede é preciso encontrar uma solução multilateral para os juros da dívida. “Não estou a ver nenhuma circunstância em que Portugal possa cumprir as regras orçamentais europeias e pagar a dívida nos termos previstos sem fazer um corte radical dos serviços públicos de educação, saúde e pensões. Mas se isso acontecesse teria um impacto muito negativo no nosso crescimento. Resolvíamos de um lado e piorávamos do outro”, alerta. Se conseguirmos “fazer cortes através de redução de taxas e alongamento de maturidades então façamo-lo”.
18. Não há crescimento possível neste contexto?
Miguel Cadilhe recorda que o chamado produto potencial tem estado em Portugal sistematicamente abaixo do Europeu. “A taxa de crescimento do potencial era há uns anos de 4 ou 5% e hoje é de 1%. O que é sistemático nesta situação é o peso do Estado.
19. Vamos conseguir inverter esta tendência?
Fernando Alexandre acredita que “não há nenhum país que se desenvolva sem o papel essencial do Estado”, mas defende que é preciso “olhar para o Estado e ver o que não está ao serviço da economia”. No Ministério [da Administração Interna] onde estive tínhamos cinco serviços centrais e passamos a ter um. Poupámos 3 milhões de euros e montámos um sistema informático que nos dá informação. Quando eu cheguei nem sabia quanto se gastava em combustível quando o Ministério da Administração Interna é responsável por 40% do parque automóvel do Estado. Não é só por uma questão de poupança, mas de qualidade da gestão que temos. Para Paes Mamede, o problema é que dificilmente se consegue poupar muito sem pôr em causa pilares fundamentais da sociedade. “Portugal não tem um peso do Estado em % do PIB que seja superior ao da UE e o que aumentou nos últimos anos foi a despesa com educação, saúde e a protecção social”. Com esse investimento, argumenta, “aproximámo-nos da média dos países mais avançados. Temos de perguntar às pessoas se é isso que estão dispostas a perder…”
20. Como podemos em sociedade resolver este problema da dívida?
A dívida coloca problemas de coesão na sociedade , sobretudo com as perspectivas demográficas e de envelhecimento da população portuguesa, argumenta Fernando Alexandre. “Temos um stock imenso de dívida que vai ser pago por cada vez menos pessoas”, alerta. O professor de Economia cita previsões do Instituto Nacional de Estatística que mostram que, em 2050/2060, 40% dos portugueses terá mais de 65 anos. “Será uma população mais pequena e com menor capacidade produtiva. Ou seja a dívida per capita será muito mais elevada”. Por isso, remata, “este é um grande problema que deve ser tido em consideração”.
O acordo ortográfico utilizado neste artigo foi definido pelo autor.