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Não há um, mas vários elefantes na sala

O racismo (ainda) é real? Post de Joana Gorjão Henriques, autora de «Racismo em Português»
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No outro dia fui a uma aula de História Contemporânea ​numa universidade portuguesa falar do meu projecto-livro Racismo em Português – o lado esquecido do colonialismo, uma parceria entre o jornal Público e a Fundação Francisco Manuel dos Santos, à qual se juntou a editora Tinta-da-China.

Perguntei à plateia de cerca de 15 pessoas quem é que se considerava racista. Três braços levantaram-se. Experimente-se fazer o mesmo em vários contextos e os resultados não deverão variar muito.

A razão é simples: a maioria de nós não se considera racista. É por isso que o racismo é dos temas mais complexos para se discutir em público. Mexe com a nossa visão do mundo mas também com a visão sobre nós mesmos, de forma profunda e inconsciente. O racismo, uma ideologia que começou a ser defendida no século XIX e que tem como base a hierarquia entre raças (com a branca no topo)​ e que se ​​tornou uma prática social enraizada, não se trata apenas de uma atitude que se explicita abertamente. É uma forma de olhar e de agir automática que tem a discriminação como motor e ​que ​nos programou para ​considerar que essa construção social não é construção, é biológica. O automatismo​ do preconceito passa por coisas como mudar de passeio porque vem um grupo de negros, elogiar um negro dizendo que ele se distingue dos demais negros “e não é como os outros” ou olhar para um rosto negro e pensar que não pode ser português. Aconselho a todos a fazer o teste do “preconceito implícito” elaborado pela Universidade de Harvard.

No meu projecto fui ouvir os africanos sobre o racismo exercido pelo sistema colonial português, para contrabalançar o olhar brando da versão portuguesa. Nas discussões públicas que tenho tido torna-se óbvio o quão pouco debatemos o tema, por isso rapidamente se passa para a questão pessoal, como se o racismo fosse um episódio na vida de uma pessoa e não algo estrutural que determina a forma como nos relacionamos. Outra característica na discussão sobre o racismo é que a primeira reacção é, quase sempre, de defesa: justifica-se com outra coisa – “não é por causa da raça que a senhora das limpezas é discriminada, é por ser empregada”; não é por ser negro que o homem foi parado pela polícia, é porque apresentava um comportamento suspeito; não é por ser negra que a mulher não ascende ao lugar de topo, é por ser mulher; não é por ser negro que um jovem não consegue alugar a casa, é porque a casa será alugada a um branco.

Revisitar o colonialismo e ouvir, in loco, na primeira pessoa, a história de mais de 100 africanos a falar sobre as suas memórias, sobre os relatos que ouviram contar dos avós e dos pais, sobre o que aprenderam na escola mostrou-me, com histórias concretas e vivas, o quanto o sistema colonial quis apagar África e quão forte e extenso é o lastro ideológico que deixou até hoje. Discutir esse tabu em Portugal está-me a mostrar de forma ainda mais clara que há não um, mas vários elefantes na sala - e um longo caminho a percorrer na descolonização das mentes.

Joana Gorjão Henriques é autora de Racismo em Português, um projecto do jornal Público e da Fundação Francisco Manuel dos Santos.

O acordo ortográfico utilizado neste artigo foi definido pelo autor

Portuguese, Portugal