As mulheres preferem empregos mais mal pagos?
Portugal fica longe da Alemanha e da Islândia. E estas também estão a alguma distância entre si. Bom, ambos são factos indesmentíveis. Mas não só na geografia.
Tomemos o caso das novas leis contra a discriminação salarial adoptadas pelos três países. Na Islândia, as empresas com pelo menos 25 funcionários estão a partir de agora obrigadas a pagar o mesmo a todos os que desempenharem as mesmas funções, sob pena de pagarem multa. Na Alemanha, os trabalhadores já podem exigir saber o valor da remuneração mediana paga pela empresa a quem tem tarefas equiparáveis às suas. Uma medida que se aplica, para já, às empresas com 200 ou mais pessoas e que lhes dá maior poder para pressionar as chefias, com ou sem a ajuda de sindicatos ou das autoridades do Estado.
Em Portugal, passou quase despercebido um projecto de lei sobre esta matéria. Foi apresentado pelo Governo e aprovado unanimemente, em Dezembro passado, pela Assembleia da República. A lei entra em vigor no segundo semestre do ano, mas não parece espoletar entusiasmo equiparável ao produzido por aquelas leis nos seus países.
Aplicando-se para já às empresas com 250 ou mais funcionários (daqui a três anos, irá estender-se a todas as que tiverem pelo menos 100), o diploma prevê que os registos salariais enviados aos serviços do Estado passem a detalhar as funções de cada trabalhador – para além do seu salário – através de critérios mensuráveis. Assim, a Autoridade para as Condições do Trabalho terá dados objectivos através dos quais poderá detectar casos de discriminação salarial. A ACT irá então exigir às empresas que ou justifiquem a discrepância ou apliquem um plano para a sua correcção, tendo para isso um prazo de dois anos.
A nova lei abre, assim, a porta a que haja justificação para as diferenças salariais entre pessoas com funções semelhantes. É diferente do que se passará na Islândia: da auditoria à política remuneratória de cada empresa resultará ou um certificado de igualdade salarial ou uma multa. Por outro lado, a lei portuguesa consubstancia uma exigência de transparência remuneratória das empresas na exigência de melhor informação transmitida pelas empresas ao Estado. Mas não dá necessariamente mais “força” aos colaboradores das empresas, como faz a Alemanha. É certo que, nos três países, a discriminação salarial com base no sexo já era e mantém-se ilegal. Mas a discriminação salarial é neles entendida, avaliada e penalizada de forma diferente.
Portugal está, porém, a tomar mais medidas pela efectiva igualdade salarial. Na Estratégia Nacional para a Igualdade e a Não Discriminação 2018-2030 – Portugal + Igual, o Governo elenca dezenas de medidas a implementar ao longo dos próximos anos. Estão previstos, como exemplos, a inclusão da "dimensão de género" nos processos de financiamento, na atribuição de fundos estruturais e na contratação pública; um foco particular na pobreza e na exclusão social femininas; a disseminação de conteúdos educativos e de campanhas mediáticas que enfraqueçam estereótipos de género; mais dados estatísticos desagregados por sexo; campanhas de prevenção do assédio moral e sexual; e medidas que promovam o trabalho flexível, a partilha de licenças parentais e o surgimento de mais creches e estabelecimentos de ensino pré-escolar.
Todas estas medidas partem do pressuposto de que as mulheres são efectivamente discriminadas no mercado de trabalho: tanto no português como no alemão e no islandês. É esse também o entendimento da Comissão Europeia, instituidora do Dia Europeu da Igualdade Salarial que se assinala a 5 de Março. O objectivo de igual remuneração para igual trabalho, patente na efeméride, não terá ainda sido atingido. Em seguida, vamos tentar verificar se isso é verdade e em que medida.
Comecemos por um olhar de longe sobre a floresta: em Portugal, as mulheres auferem salários 19% inferiores aos dos homens. Como se trabalhassem gratuitamente de 1 de Janeiro até 5 de Março, o dia em prol da igualdade salarial. Traduzido em euros, o ganho (remuneração mais subsídios e outros bónus) médio dos homens situa-se em 1215 euros, bem acima dos 989 euros recebidos pelas mulheres. Estes dados são de 2016, mas o fosso de género é observável pelo menos desde 1985.
De acordo com o Eurostat, na publicação A vida das mulheres e dos homens na Europa (2017) e em dados como os que podem ser consultados na área de Emprego da Pordata Europa, a discrepância entre os ganhos médios masculino e feminino em Portugal é das mais elevadas na União Europeia. Até aqui, porém, olhámos apenas para médias globais. Importa desagregar estes dados.
Olhemos para a posição dos trabalhadores no quadro das suas empresas. Enquanto a análise macro nos mostra 19% de diferença média entre géneros, esta perspectiva permite concluir algo mais: que as mulheres auferem menos, em média, em todos os níveis remuneratórios. Entre trabalhadores não qualificados, perdem 13% (639 euros, versus 734 euros para eles); entre os altamente qualificados o corte é de 21% (recebem 1239 euros, mas os homens ficam com 1573 euros); nos quadros superiores, a discrepância é ainda maior, de 28%: elas ficam abaixo de 2000 euros, em média; eles ganham mais de 2700 euros/mês (consulte aqui os dados para o sexo masculino e os do sexo feminino). Em suma: as mulheres perdem mais quanto mais sobem na hierarquia (um dado que pode ser aprofundado através do site Portugal Desigual).
O fosso salarial existe, pelo menos em termos macro, e parece preocupante. Mas significa mesmo que há discriminação? O termo pressupõe desigualdade de rendimentos em igualdade de circunstâncias e é, por isso, ilegal. Abaixo olharemos para os principais argumentos de quem nega a discriminação e dar-lhes-emos a resposta possível, à luz dos vastos dados agregados disponíveis na Pordata e noutras fontes.
As mulheres não ganham sistematicamente menos
Bom, aqui como nos restantes tópicos poderemos apenas dar respostas incompletas. Os dados da Pordata sobre actividade económica agregam as profissões por grandes áreas económicas: uma com a designação “Saúde e acção social", outra tão vasta como "Administração pública, defesa e segurança social obrigatória", e por aí adiante. O que podemos mostrar é que, a esse nível de agregação, o que se verifica é que as mulheres recebem menos, em média, em todas as áreas. Todas. Até na área "Alojamento, restauração e similares", que em geral requer pouca formação e portanto, como vimos acima, deveria ter menor ou nenhuma discrepância, o fosso é de quase 130 euros/mês: em média, os homens levam para casa 836 euros, as mulheres 703 euros. Estas diferenças transversais são uma realidade também nos outros países europeus, como mostra um gráfico animado do Eurostat.
As mulheres não ganham menos nas diferentes funções de todas as profissões
Esta afirmação é verdadeira no caso da Administração Pública: em média, as mulheres têm salários mais altos nas categorias de profissionais altamente qualificados (949 euros, bem acima dos 842 euros que os homens auferem) e de chefes de equipa (1948 euros, 1594 euros para eles). Já nos quadros superiores o fosso volta a favorecer os homens. Mas na média das várias qualificações, as mulheres ganham 1093 euros e os homens 1000 euros.
Numa área com mais homens, a do alojamento e da restauração, a disparidade acontece a todos os níveis: desde os cargos menos qualificados aos mais qualificados (compare homens e mulheres). O mesmo acontece no comércio (aqui e aqui), nas indústrias transformadoras (aqui e aqui) e até na educação, uma área profissional composta em 84% por mulheres (aqui e aqui): as trabalhadoras do sistema educativo, professoras e não só, ganham em média 1148 euros. Eles: 1437 euros. Esta grande diferença, de quase 300 euros, é independente da qualificação (com a única excepção dos profissionais altamente qualificados: aí, elas têm um ganho médio superior).
As mulheres estudaram menos, logo ganham menos
Será que em média as mulheres estudaram menos, e que isso faz com que as "altamente qualificadas" sejam menos altamente qualificadas do que os homens? Dificilmente. Há em Portugal quase 807 mil mulheres com curso superior, um valor muito acima dos 511 mil homens com igual nível de qualificação. No outro prato da balança, vemos que há mais 400 mil homens do que mulheres no lote dos que não foram além do ensino básico. Já no ensino secundário não há diferenças significativas, apesar da ligeira vantagem para os homens. Confira os dados aqui e aqui.
As mulheres escolhem profissões mais mal pagas
Olhando de cima, a primeira impressão que se tem é a oposta: as mulheres trabalham sobretudo no sector terciário, onde as remunerações tendem a ser superiores. Há, aliás, mais mulheres do que homens no sector dos serviços; e o inverso acontece nos sectores primário e secundário: há mais de dois homens por cada mulher na produção e na transformação de bens. Mais a fundo, já vimos que as mulheres são 84% dos trabalhadores na área da educação. São também 78% do total de trabalhadores na saúde e nos serviços sociais, 63% nas ciências sociais, direito e comércio, 61% nas humanidades e nas artes. E são apenas 33% de quem trabalha nas engenharias, na construção e em arquitectura, algumas das áreas mais bem pagas.
As mulheres são em geral mais qualificadas (fizeram 60% dos doutoramentos) e tendem a distribuir-se pelas profissões que requerem maior qualificação e que são, de uma forma geral, mais bem pagas do que as restantes. Por outro lado, as médias remuneratórias permitem-nos verificar que uma das áreas mais 'masculinizadas', a das engenharias, está entre as mais bem pagas - é conhecido o fosso de género na procura por formação STEM, ou seja nas áreas das ciências, das tecnologias e das engenharias. Esta será parte da explicação para a discrepância salarial entre homens e mulheres. Abaixo abordaremos outras e reflectiremos também sobre a justeza em afirmar-se que as mulheres "escolhem" profissões mais mal pagas.
As mulheres têm trabalhos mais precários
Sabemos que, tendencialmente, os trabalhadores a prazo não só estão menos protegidos contra o despedimento como auferem salários inferiores aos dos contratados sem termo. Não há, porém, diferenças entre homens e mulheres a assinalar neste âmbito. Aliás, há até uma proporção ligeiramente superior de homens a prazo do que a fatia das mulheres. Com contratos a termo certo estão 19% dos homens e 18% das mulheres.
As mulheres trabalham menos horas
Por fim, olhamos para o argumento do tempo: o de que é forçoso que as mulheres sejam mal pagas em comparação com os homens, porque trabalham menos horas do que eles. Será? A Pordata diz-nos que as mulheres trabalham em média 32,4 horas por semana e que os homens trabalham 36,2. A diferença de tempo é de 11%, pelo que – grosseiramente – poderá explicar sensivelmente a mesma percentagem do fosso salarial médio. É um dado potencialmente muito significativo. Porém, esta discrepância de quase 4 horas semanais é muito influenciada pela diferença de tempo trabalhado em áreas menos bem remuneradas como a agricultura (quase 5 horas de diferença), mas não em áreas mais bem pagas como a da indústria (pouco mais de 2 horas de diferença). Os dados aconselham cautela.
As referidas médias de tempo trabalhado podem estar a ser muito influenciadas pelos dados do trabalho a tempo parcial. Como demonstra o Eurostat na publicação que referimos, há em toda a União Europeia uma discrepância acentuada no recurso ao trabalho a part-time: por exemplo, os Países Baixos, a Áustria, a Alemanha, a Bélgica, o Reino Unido, a Dinamarca e a Suécia facilitam a redução da carga horária, ainda socialmente mais apetecível para as mulheres. O resultado disso poderá ser uma menor média de tempo trabalhado e, consequentemente, de rendimento das mulheres. Mas neste capítulo, pelo menos, Portugal até não é dos países mais mal situados: 9,2% dos homens trabalham a tempo parcial, uma percentagem não muito inferior aos 13,4% das mulheres que o fazem.
Das hipóteses acima, algumas parecem não ter sustentação empírica, devendo funcionar em desfavor dos homens no mercado de trabalho. Outras têm-na, aparentemente, mas uma resposta mais clara só pode ser dada através de uma análise fina dos Quadros de Pessoal do Ministério da Segurança Social, onde os dados estão dispostos ao nível individual.
No recente ensaio infográfico Can we talk about the gender pay gap?, para o Washington Post, Xaquín G.V. refere que as 10 profissões mais feminizadas nos Estados Unidos têm um rendimento mediano inferior às 10 profissões com maior percentagem de homens. Mais interessante, o autor mostra uma correlação entre o grau de feminização de uma profissão e o fosso salarial nela existente: esse fosso é sempre favorável aos homens, mas é inferior nas profissões que têm mais mulheres do que homens e é um pouco maior nas profissões “mistas” e sobretudo nas profissões com mais homens do que mulheres.
Xaquín G.V. dá o exemplo dos porteiros, na maioria homens, que ganham mais do que os empregados de limpeza, na maioria mulheres. Em termos do nível de qualificação, ambas as profissões são idênticas, mas um emprego é mais valorizado do que o outro. E a diferença salarial é inferior no trabalho mais feminizado: uma mulher empregada de limpeza recebe em média 9,84 dólares por hora; um homem leva para casa 11,27 dólares por hora pelo mesmo trabalho. No caso dos porteiros, a diferença é de 12,91 dólares por hora para eles e 10,25 dólares por hora para elas.
O que estes dados indiciam, se um efeito deste tipo se verificar também na realidade portuguesa, é que pode haver um pendor de género no acesso e na manutenção do trabalho. Ainda que as mulheres sejam 49% dos trabalhadores em Portugal, uma realidade bem diferente da de há meio século, há apenas 68 mil empregadoras para 156 mil empregadores. E a taxa de actividade dos homens continua a ser superior à das mulheres. Elas são mais afectadas pelo desemprego, o que se aplica a todos os níveis de qualificação (ver aqui e aqui); e ficam mais tempo no desemprego: há 202 mil mulheres e 131 mil homens à procura de emprego há pelo menos um ano.
Portugal até não é, neste aspecto, um dos países onde a discrepância de género no desemprego é mais evidente: Grécia e Espanha surgem no fundo da tabela, com valores bem mais alarmantes. Também não somos um dos países onde a taxa de desemprego feminina é mais afectada (porque sim, ela é muito mais afectada do que a masculina) quanto maior é o número de filhos. Ainda assim, visto à escala europeia, este fenómeno indicia que há factores socioculturais de peso nas dinâmicas do emprego. Noutro exemplo, nota-se um maior fosso de género nas taxas de emprego nos países em que a taxa de emprego masculina é inferior. O emprego parece ser prioritariamente masculino. Não só em Portugal como nos outros países.
o Inquérito à Fecundidade de 2013, organizado pelo Instituto Nacional de Estatística com a Fundação Francisco Manuel dos Santos, metade das mulheres inquiridas disseram que o ideal é que a mãe trabalhe a tempo parcial (38% dos homens responderam o mesmo). Reforçando a ideia, 64% das mulheres e 67% dos homens disseram que o ideal é o pai trabalhar a tempo inteiro, sendo assim o principal garante de meios económicos para a família.
O espelho desta visão da organização laboral é uma organização familiar em que a mãe desempenha mais tarefas domésticas e é mais presente do que o pai no dia-a-dia dos filhos. Dados da Eurosondagem, acessíveis via Portal de Opinião Pública, indiciam uma certa ambiguidade dos portugueses quando lhes é perguntado se a partilha de tarefas em casa é importante para um casamento feliz: a média de 2,3 está mais próxima de "muito importante" (3) do que de "pouco importante" (1), mas fica sobretudo próxima do meio da escala. Mais interessante, quando lhes é perguntado se as crianças sofrem quando a mãe trabalha fora de casa, a resposta dos portugueses inclina-se mais para "concordo totalmente" do que para "discordo totalmente".
Os números portugueses não parecem fugir substancialmente à tendência europeia: 92% das mães europeias dizem que cuidam dos filhos todos os dias, o que compara com 68% dos homens (na Grécia, a diferença é a mais gritante, com 95% delas e 53% deles a cuidarem dos filhos diariamente). Para além disso, 79% das mulheres europeias cozinham e/ou executam tarefas domésticas dia após dia, mas apenas 34% dos homens o fazem. Mais uma vez, o sul da Europa fica pior na fotografia e a Escandinávia é a região mais igualitária. Em Portugal, apenas 19% dos homens se empenham diariamente nas tarefas domésticas
O que estes dados fazem crer é que há forças socioculturais com peso suficiente para, pelo menos, imporem que se pense duas vezes quando se fala das opções profissionais femininas. Trabalham elas menos apenas porque querem, ou haverá uma forma de condicionamento social que as leva a tal? Desempenham elas mais tarefas domésticas porque gostam, ou em parte porque é isso o que é esperado delas? Numa entrevista recente ao Diário de Notícias, a directora da Pordata, Maria João Valente Rosa, disse que «as mulheres, mesmo as mais jovens, continuam a ser as principais responsáveis pelas tarefas domésticas e pelo cuidar dos filhos. E são elas que predominantemente ficam em casa quando os filhos são mais pequenos ou quando adoecem». Este facto faz entender que as expectativas sociais sobre as mulheres continuam a ser bem diferentes das que pendem sobre os homens.
Nas palavras de Xaquín G.V., «as causas das discrepâncias salariais são muitas e mais subtis do que apenas escolhas individuais ou discriminação empresarial. Por mais que desagreguemos os dados, a discrepância está lá. Só reconhecendo a complexidade das variáveis que afectam essa discrepância é que empresas e governos poderão aplicar medidas que ataquem as suas causas mais profundas, ao invés de aliviarem os sintomas». A nova lei e a estratégia portuguesas para a igualdade salarial parecem ser passos nesse sentido.
O acordo ortográfico utilizado neste artigo foi definido pelo autor