A habitação tem novas centralidades e novas geografias, mas os preços não baixam
Sentada num banco de madeira no largo de São Tomé, a meio caminho entre São Vicente e Alfama, em Lisboa, dona Irene vai apontando para as casas. «Ali é um hotel, ali outro. Ali é um hostel, como dizem agora, e naquele primeiro andar não vive ninguém. O do lado está em obras e já se sabe que também vai ser para turistas. Isto metade está vazio».
Vazio de habitantes permanentes, quer ela dizer. Porque agora que o medo da pandemia deixou de assombrar o turismo, as rodinhas das malas de viagem voltaram a fazer-se ouvir nas pedras da calçada. As esplanadas da Cerca Moura voltaram a encher-se e os investidores olham de novo para os imóveis como boas formas de fazer render o seu dinheiro. Os turistas estão de volta e Dona Irene está a braços com uma ação de despejo, depois de o dono da casa onde vive há quase 50 anos a ter levado a, sem saber, assinar um contrato que a deixou em situação precária. O prédio entretanto foi vendido e o novo proprietário quer que ela saia de lá o mais rapidamente possível.
Já fora do centro histórico, a caminho das Avenidas Novas, Marta Teixeira divide uma casa com mais quatro amigos. Já lá estão desde que vieram para a universidade e agora, depois de terminado o curso, continuam. Marta tem um quarto só para ela, mas queria ter uma casa inteira, onde pudesse cozinhar à hora que lhe apetecesse ou pôr a roupa na máquina quando precisasse, sem ter de adaptar sempre o seu horário ao de outras pessoas. Mas como conseguir dar o salto, se o salário que ganha a trabalhar na loja de um museu e como gestora de contas em redes sociais nunca permitiria pagar a renda de uma casa em Lisboa?
Dona Irene, 70 anos, e Marta, 22, são dois dos rostos dos tempos que a cidade atravessa em matéria de habitação. Pouca oferta e preços elevados, que continuam a crescer e que dificilmente podem ser suportados por jovens que querem iniciar uma vida independente dos pais, por idosos com reformas baixas, por famílias com salários médios.
Durante a pandemia, os preços do arrendamento em Lisboa caíram e em 2020 a descida superou mesmo os 16%, de acordo com os dados do Confidencial Imobiliário – uma consultora cuja base de dados compila e analisa todos os números do setor. No final de 2021, contudo, assistia-se já a uma inversão, com um aumento de 1,8%. Para se ter uma ideia, a renda média contratada em Lisboa atingiu os 12,9 euros por metro quadrado. Uma casa pequena, com 50 metros quadrados, facilmente chega aos 650 euros. Mas se Lisboa tem as rendas mais altas, a verdade é que estas subiram na generalidade do país. E este ano a tendência de crescimento mantém-se.
Na compra e venda, o percurso dos preços foi igualmente ascendente. Em 2021 subiram na maioria das capitais de distrito e em metade dos casos o aumento ultrapassou os 10%. Lisboa contabilizou preços 11,7% acima dos de 2020 e Porto foi aos 10,3%, em comparação com o mesmo período. E cidades como Faro, com uma valorização de 26,4%; Setúbal, com mais 18,7%; Viseu, com 18,5%; e Aveiro, com mais 17,3%, ficaram entre as que mais se destacaram.
«A pandemia desacelerou os preços e numa fase inicial houve uma estagnação, travando o crescimento que vinha de trás», explica Ricardo Guimarães, economista e managing partner da Confidencial Imobiliário. «Houve alguma incerteza e uma expectativa de descida de preços que acabou por ser pouco significativa e depois o mercado acelerou novamente. O segundo semestre de 2021, ainda em pandemia, foi já de franca recuperação», sintetiza.
Mas como conseguiu o imobiliário passar ao lado da crise pandémica? Por um lado, «as moratórias do crédito descomprimiram o mercado e evitaram uma corrida provocada pelo pânico». Por outro, havia uma lição que ficou da crise anterior: acreditava-se que «o mercado iria voltar ao ponto de partida e, portanto, quem não estivesse numa urgência, mais valia ficar e esperar – precisamente o que não aconteceu na crise financeira de 2011», descreve o especialista.
Quando o seu prédio foi vendido, em 2015, dona Irene vivia num terceiro andar cheio de luz e da sua sala via o Tejo. Já tinha ouvido falar da nova Lei do Arrendamento Urbano, mas estava sossegada, porque, pela tal lei, a idade garantia-lhe que dali não saía. E a reforma, menos de 300 euros, não permitiria grandes subidas de rendas. Depois veio o novo dono, quis fazer obras, convenceu a inquilina de que, com a idade, subir ao 3º andar ficaria cada vez mais difícil, e ela, duas operações ao joelho, aceitou, confiante do que ele lhe dizia, que o contrato ficava igualzinho ao que tinha assinado em 1970. Não ficou. O «protocolo» que assinou era, afinal, um novo contrato, com a duração de cinco anos, e que só ainda não foi executado porque se meteu pelo meio uma pandemia. Mas isso agora acabou e o despejo já corre em tribunal.
A reforma da Lei do Arrendamento Urbano, de 2012, facilitou despejos e aumentos de renda e muitos contratos antigos chegaram ao fim, apesar das normas travão criadas para proteger os mais idosos e com dificuldades financeiras. Ficaram marcas que ainda hoje, dez anos volvidos, se encontram bem visíveis e que são boas ou más, dependendo de quem para elas olha. Imóveis arrendados há longos anos, com rendas que praticamente não mexiam e que eram de facto muito baixas, puderam ser libertados para novos moradores, mas, sobretudo, para novas atividades. Prédios que há muito precisavam de obras foram todos reabilitados e pintados de fresco, mas Lisboa, e, embora menos, também outras cidades, como o Porto, assistem, desde então, a uma desertificação do centro, que passou a ser dedicado em grande parte ao turismo, sobretudo ao chamado alojamento local (AL), temporário e para visitantes.
Os censos de 2021, cujos resultados já são em parte conhecidos, vieram confirmar aquilo que já se antecipava em Lisboa: numa década, as freguesias do centro perderam uma fatia considerável dos seus habitantes. Aconteceu, por exemplo, na Misericórdia, em pleno centro histórico, que, comparando com 2011, data dos Censos anteriores, tem agora menos 26,1% de moradores. Ou em Santa Maria Maior, mesmo ao lado, que perdeu 22% dos seus habitantes. Em São Vicente são menos 9,1% e em Santo António, que abrange a avenida da Liberdade e parte das colinas de Santana e de São Roque, menos 6,4%.
Olhando para o Porto, a maior cidade a norte, a situação repete-se, ainda que em escalas um pouco diferentes. Aí é Campanhã que regista a maior queda, de 9,1% face a 2011. Segue-se-lhe o conjunto de freguesias que inclui Cedofeita, Ildefonso, Sé, Miragaia, Vitória e Nicolau – onde se localiza o centro histórico da Invicta – que teve uma redução de 7,4%.
Em contrapartida, o número de casas destinadas ao alojamento temporário, cresceu exponencialmente na última década, tornando-se no motor do ciclo de valorização dos centros das cidades. Para o bem e para o mal, na verdade.
Os dois anos da pandemia e a inevitável quebra do turismo, deixaram marcas ao nível do AL, que vinha de um pico em 2018. Segundo dados da associação ALEP – Alojamento Local em Portugal, nos últimos dois anos mais de 5.000 fogos saíram do AL em Lisboa. Alguns porque desistiram, outros porque redirecionaram a atividade para outro tipo de contratos, mais duradouros no tempo – estudantes, nómadas digitais, trabalhadores temporários, famílias em trânsito. Poucos foram os que optaram por colocar os seus imóveis no arrendamento habitacional permanente, e isso apesar de até haver programas públicos pensados para atrair este tipo de propriedades, como o programa Renda Segura, em Lisboa, ou o Porto Seguro, na Invicta.
Tiago Saraiva, arquiteto, tem sido uma das vozes que, ao longo da última década, denunciaram os problemas decorrentes do excesso de alojamentos destinados ao turismo e da gentrificação decorrente do facto de os centros estarem a ficar desertos. E não está particularmente otimista. Apesar de admitir que há hoje, «do ponto de vista público, uma ideia de que o AL é um fator gentrificador» e que, por isso, «os autarcas tenderão a levantar reservas e tenderá a ser bem aceite que se mantenham algumas reservas ao AL», o especialista não tem dúvidas de que vem aí uma significativa recuperação do turismo e que «os proprietários que, com a pandemia, reorientaram o seu mercado para o arrendamento de duração média, tenderão a voltar ao AL». E aos centros das cidades.
De tal forma que as casas de Alfama ou de outros bairros históricos continuam a ser as mais apetecíveis para os investidores. E nem o facto de Lisboa ter agora suspendido a atribuição de novas licenças na cidade, enquanto reavalia o regulamento do alojamento local, parece ser um fator dissuasor de novas transações.
A resposta está na velha lei da oferta e da procura, que nunca falha e que, no imobiliário, é clara como a água. Os preços deverão continuar a subir, o que, conjugado com a mais do que antecipada subida das taxas de juro, dificultará ainda mais a capacidade de as famílias morarem no centro. Nos dois primeiros meses do ano, os preços da habitação no país estavam a crescer 3,4% face aos níveis de dezembro de 2021, confirmando uma aceleração da tendência de valorização que, a manter-se, “apontaria para crescimentos na ordem dos 13% no final do ano”, admite Ricardo Guimarães. Só que, entretanto, começou a guerra na Ucrânia, uma variável inesperada que ninguém sabe ainda que efeitos trará.
Acontece que Portugal tem sol, tem mar, tem gente simpática e impostos baixos para os residentes não habituais. A somar a isso, lembra Tiago Saraiva, tem também um Serviço Nacional de Saúde que funciona relativamente bem – deu provas disso durante a pandemia – e, muito importante nos tempos que correm, tem segurança. Se Portugal já era um destino muito procurado por reformados estrangeiros, a expectativa é que isso se mantenha, ou tenda mesmo a aumentar. «Já se está a sentir do ponto de vista da procura, o pensionista francês, o alemão, querem vir e ficar nos períodos de inverno. São pessoas com rendimentos que não têm a ver com os nossos padrões de salário e que conseguem pagar arrendamentos elevados e comprar casas caras», acrescenta o especialista.
Uma vista de olhos pelos sites de arrendamento, mostra, por outro lado, mais uma realidade florescente: a dos nómadas digitais. Pessoas que ficam durante uns meses e que têm disponibilidade para pagar 500 euros mensais por um quarto ou mil euros por um apartamento com uma assoalhada no centro de Lisboa, desde que tenha mobília e uma internet rápida, que lhes permita, a partir daqui, trabalhar em qualquer outra cidade do mundo.
São valores aos quais Marta Teixeira, tal como os amigos com os quais divide a casa, nunca conseguirão chegar. «Pagar 600 euros por uma renda, e é se for um T0, é impossível, pelo menos sozinha. Há uns tempos ainda fiz uma buscas, mas desisti», lamenta. E a única solução, para já, é manter os 200 euros que paga no apartamento partilhado por cinco, enquanto vai «poupando, para daqui a uns anos», quem sabe, conseguir finalmente a sua casa.
Quanto à Dona Irene, se o despejo acabar mesmo por se concretizar, provavelmente terá de ir para casa da filha, perto de Santarém. Ela que sempre viveu sozinha e que tudo o que «queria era não dar trabalhos a ninguém». E, se assim acontecer, será mais um número nas estatísticas daqueles que se veem obrigados a sair do centro.
Efetivamente, continua Tiago Saraiva, a evolução que se antevê «tenderá a afastar cada vez mais os rendimentos médios dos centros das cidades». Um problema que, sublinha, «já não é só de Lisboa e Porto» e «está alastrado por todo o país, no litoral a norte do Tejo, no Algarve, tendendo cada vez mais a ser um problema nacional».
«Dez mil euros o metro quadrado por uma casa, como acontece em Lisboa, é uma coisa que custa a perceber, mas é uma realidade que existe e nos ultrapassa», admite Ricardo Guimarães. O responsável pelo Confidencial Imobiliário prefere, porém, falar em «novas geografias», estas «já com preços a que as famílias portuguesas podem aceder».
Os números, explica, mostram que Lisboa, apesar de manter a tendência de valorização, tem, nesse indicador, vindo a «perder o protagonismo nos últimos dois anos, mesmo no centro histórico». Porquê? «A procura respondeu ao que a pandemia trouxe, nomeadamente o teletrabalho, conduzindo a uma preferência pelas periferias, cidades com valores por metro quadrado mais baixos, mas com ritmos de valorização que podem atingir os 20%». Na grande Lisboa falamos da margem Sul, de Mafra, zonas com campo e relativamente perto do mar ou do trabalho, quando é preciso vir ao escritório um ou dois dias por semana. No fundo, «a pandemia acelerou uma dinâmica que já estava a verificar-se antes da pandemia», resume.
As estatísticas dos preços revelam isso mesmo: ao nível nacional, as cidades que mais valorizaram no pós pandemia foram cidades secundárias. «As famílias procuraram geografias em cidades já com algum nível de vida, cidades costeiras, alternativas mais baratas», descreve Ricardo Guimarães. E o que é certo é que continuaram a comprar: «para a classe média, em 2021 o crédito à habitação atingiu recordes pré-crise financeira», lembra.
Também os estrangeiros começam a procurar outros destinos. «Lisboa absorvia praticamente toda a procura por parte de não residentes, mas começa a haver uma dispersão». Até porque a capital «deixou de ser uma cidade barata até mesmo para esses investidores. Cada vez mais cosmopolita, mais dinâmica, já é um cabaz mais complexo e isso também faz com que os estrangeiros alarguem o perímetro da sua procura».
Por outro lado, os Vistos Gold – apontados frequentemente como mais um ingrediente que tem levado à especulação nos preços do imobiliário – têm novas regras desde janeiro de 2022 e os estrangeiros que a eles queiram recorrer para conseguir uma autorização de residência no país terão agora de optar por comprar casa fora dos grandes centros, passando a valer apenas, para este efeito, os investimentos nos chamados territórios de baixa densidade – mais para o interior, portanto.
Toda esta dinâmica de «novas centralidades» e o facto de o país ter características suscetíveis de continuar a atrair investimento estrangeiro, parece afastar a hipótese de uma bolha no mercado que possa estourar em breve, com desvalorizações abruptas que acarretem perdas para os investidores. «O crescimento está muito alicerçado na vinda de outras economias para Portugal, o que deverá sustentá-lo», acredita Tiago Saraiva. E, depois, há o turismo, que «beneficiou com a transferência de procura que resultou da Primavera árabe», sendo que «com a Ucrânia, Portugal está mais uma vez em situação de poder beneficiar em termos de procura», acrescenta Ricardo Guimarães.
Mas como ficam as famílias de rendimentos mais baixos, que não podem fazer teletrabalho e que não podem, simplesmente, mudar de cidade de um dia para o outro? O Governo tem em marcha um pacote de medidas, a que chamou «Nova Geração de Políticas de Habitação» e que assenta, em grande parte, na construção ou reabilitação de habitação pública. A lógica é que aumentando o parque habitacional público – seja para arrendamento acessível, seja para rendas sociais – estará também a condicionar, pelo lado da oferta, os valores praticados no mercado privado de arrendamento.
A habitação é uma das prioridades inscritas no Plano de Recuperação e Resiliência (PRR) e há mais de três mil milhões de euros afetos a esta área – são 1.583 milhões de euros de subvenções, a que se soma um investimento de mais 1.149 milhões de euros, recorrendo à vertente de empréstimos do Instrumento de Recuperação e Resiliência, para criar um parque público de habitação a custos acessíveis e para alojamento estudantil.
A face mais visível destes projetos é o Programa 1º Direito, com o qual o Governo se comprometeu a ter prontas, até 2026, um total de 26 mil habitações para entregar a outras tantas famílias, identificadas pelos municípios do país como vivendo em situações indignas. Mas o número já aumentou e contando já com financiamentos do PRR a fundo perdido, há pelo menos 167 autarquias com soluções habitacionais em curso para 46.495 famílias.
Porém, quando é que estes imóveis chegarão ao mercado? «Tudo o que se faz na habitação tem sempre o problema de demorar muito tempo a acontecer», diz Tiago Saraiva. E, neste caso, o arquiteto antecipa um problema acrescido. Um «enorme problema», aliás, «que é o facto de o setor da construção não conseguir dar vazão». A experiência diz-lhe que «será impensável fazer 26 mil habitações nestes três anos, quando só a contratação da empreitada são pelo menos seis meses».
Ricardo Guimarães concorda. «Os custos de construção aumentaram exponencialmente e não existem empresas de construção suficientes, com mão de obra suficiente». O problema pode até nem ser falta de dinheiro, mas é de «falta de mão de obra», diz. «Temos um saldo migratório positivo, mas que são nómadas digitais, reformados, pessoas com poder de compra, mas não temos uma geração de emigrantes que seja força de trabalho para o setor da construção». Em suma, o processo será lento.
O Governo inscreveu no seu Programa a intenção de criar subsídios para o arrendamento no caso de famílias que tenham quebras súbitas de rendimento ou de outras que enfrentem ainda problemas na sequência das mudanças provocadas pela reforma do Arrendamento, como aconteceu com a dona Irene. Inquilinos e senhorios não dizem que não, mas insistem em que é preciso mais. Baixando os impostos, por exemplo, como forma de tornar mais rentáveis os arrendamentos permanente, para os quais a taxa normal de tributação é hoje de 28% no IRS – os contratos mais duradouros no tempo têm direito a descontos, mas as rendas antigas, anteriores a 1990, que os proprietários tiveram de manter, ainda que atualizadas, não são abrangidas. Para já, contudo, não há expetativas de que venha a haver alterações a esse nível.
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