Ferrovia no PNI 2030? Um sim com alertas
Merece nota positiva o Programa Nacional de Investimentos (PNI) 2030 apresentado a 22 de outubro.
Apesar de vários detalhes ainda não serem do conhecimento público, os projetos, prioridades e lógica de implementação anunciados são no geral de saudar. Avançar o mais rapidamente para a execução destes projetos no terreno é crítico. No entanto, algumas componentes de longo prazo deste programa merecem revisão.
O país e mundo encontram-se numa profunda crise e estes projetos têm a capacidade de injetar diretamente na economia investimento muito necessário. Mas mais do que isso, estes são investimentos capazes de trazer benefícios de longo prazo para a sociedade e a economia portuguesa, do ponto de vista ambiental, no aumento de acesso a oportunidades, na dinamização do cluster ferroviário e indústrias associadas, na modernização da infraestrutura e na transformação substancial da mobilidade e dos usos do solo no país. Este plano pode ser ainda o símbolo da reconstrução económica e da transição verde pós-covid injetando força anímica em todo o tecido social e económico nacional.
No livro publicado pela Fundação Francisco Manuel dos Santos de que fui autor, A Ferrovia em Portugal: Passado, presente e futuro, muitas das propostas agora anunciadas são discutidas, assim como o futuro da ferrovia em Portugal a um nível mais lato. Estrategicamente, ter toda a fachada atlântica da península ibérica conectada por ligações ferroviárias rápidas, frequentes e com bons níveis de conforto é a maior prioridade para o transporte de passageiros ferroviários. A mais importante ligação ferroviária internacional de passageiros para o país encontra-se, de facto, a Norte, entre o Porto e a Galiza. Dar prioridade a essa ligação com passagem por Braga é a aposta certa. A ligação entre Porto e Lisboa é a mais importante do país e de todo o eixo da fachada atlântica. Reduzir o tempo de viagem, aumentar a capacidade e conforto nessa ligação é fundamental. Implementar estas melhorias por fases recorrendo a variantes à linha do Norte é a estratégia correta. A ferrovia deve ser a coluna vertebral do sistema de transportes neste corredor que vai da Corunha a Faro, permitindo uma mobilidade 100% elétrica, sem emissões e de qualidade ao longo da densamente ocupada fachada atlântica da península ibérica.
O reforço dos serviços nas grandes áreas metropolitanas é outra das grandes prioridades para a ferrovia de passageiros. Os anúncios de aumentos de capacidade nas áreas metropolitanas do Porto e de Lisboa vão nesse sentido, sendo de realçar o aumento da capacidade na linha de cintura, a autêntica coluna vertebral da ferrovia na região de Lisboa. Todas estas melhorias na infraestrutura necessitam de ser acompanhadas por uma expansão e modernização da frota de material circulante, outra das iniciativas anunciadas neste plano.
A isto junta-se o compromisso de concluir o Ferrovia 2020 até 2023, plano que contém um conjunto de intervenções mais orientado para o transporte de mercadoria. Algo fundamental ao país e que durante a crise se mostrou bem mais resiliente que o transporte de passageiros.
Mas há detalhes ainda não anunciados no plano que são de grande importância e alertas quanto há opção de longo prazo para a ligação Lisboa-Porto.
A localização das estações na nova linha de alta velocidade será um dos fatores críticos para a sua atratividade e utilidade, sobretudo nas paragens intermédias de Aveiro, Coimbra e Leiria. Estarão estas estações localizadas nos centros destas cidades, ou no seu núcleo urbano, como ditam as boas práticas de projetos de alta velocidade ferroviária? Ou estarão a quilómetros destes núcleos populacionais? Estando distantes do centro que planos existem para desenvolver as áreas em torno destas estações? A maximização dos níveis de serviço a prestar, não sendo o único critério, deve ser o mais importante no desenho de uma infraestrutura estratégica que estará ao serviço do país e populações por largas décadas, se não séculos.
Já sabemos que esta nova linha irá cruzar a linha do Norte, mas não é claro se também estará conectada com a Linha do Oeste, algo que multiplicaria os serviços e as ligações capazes de beneficiar com esta nova infraestrutura e aumentaria a resiliência de toda a rede.
Esta nova linha será feita por fases: numa primeira etapa será feita uma variante entre o Porto e Soure que entronca na linha do Norte, e as velocidades máximas serão entre os 200 e 235 km/h. Isto já permitirá ligar Lisboa ao Porto em cerca de 2 horas. Na sua versão final o projeto tem um custo estimado de 4.5 mil milhões de euros e permitirá fazer esta viagem em 1h15 minutos. Uma questão de fundo a discutir é se a melhor opção para servir a população portuguesa é ter uma ligação de 2 horas com bilhetes de 25-50 euros ida e volta, ou ter tempos de viagem mais curtos de 1 hora e 15 minutos, mas com bilhetes mais caros entre os 100-150 euros.
A variante até Soure, articulada com melhorias na Linha do Norte. não permitirá melhorar significativamente a capacidade e diminuir os tempos de viagem entre Porto e Lisboa? Será mesmo necessário avançar para a execução da segunda fase que inclui todo o traçado de Soure passando por Leiria até junto de Lisboa atravessando terreno muito acidentado como a serra de candeeiros, naquilo que será o investimento mais dispendioso do projeto anunciado? Uma vez implementada a 1ª fase de melhorias, não existirão outras prioridades mais relevantes?
Melhorada significativamente a ligação Porto-Lisboa, não será mais prioritário ter uma terceira travessia sobre o Tejo que permiti melhorar as ligações ao sul do País e apostar na estratégia da fachada atlântica em toda a sua extensão? Relembro que hoje em dia a maior cidade a sul do Tejo, Setúbal, não tem oferta de serviços ferroviários de longa distância/intercidades. Outros potenciais investimentos a priorizar seriam a modernização da Linha do Vouga, das ligações a Beja (que constituiriam também uma alternativa à linha do Sul), novas linhas na área metropolitana do Porto (para servir Amarante ou Paços de Ferreira, por exemplo).
Num momento de grande incerteza onde os padrões de mobilidade e ocupação do território podem ser substancialmente alterados após a pandemia, reavaliar a necessidade de ter uma ligação completamente nova entre o Porto e Lisboa, face a outros investimentos mais distribuídos pelo território nacional, deve ser equacionado.
Um mundo novo?
A crise económica e social gerada pela pandemia tem impactos imediatos profundos, mas também trará impactos estruturais de longo prazo que poderão em muito afetar os transportes. Enquanto assistimos a quedas brutais no transporte de passageiros, nas mercadorias as quedas foram menores. Aconteça o que acontecer, bens e mercadorias têm de continuar a circular, mas o mesmo não acontece com os passageiros. O plano Ferrovia 2020 já contém várias melhorias orientadas para o sector das mercadorias, mas no PNI 2030 esta vertente está algo ausente. Mesmo após a total implementação do plano 2020 é necessário continuar a aposta no transporte ferroviário de mercadorias e avaliar a necessidade de investimentos adicionais orientados para este sector.
O Futuro será digital e virtual. A acessibilidade física pelo território continuará a ser importante, mas a acessibilidade digital, a possibilidade de ter acesso a uma Internet fiável e rápida ganhará ainda mais importância. É mais que provável uma redução de viagens de negócios no mundo pós-pandémico. A necessidade reuniões e eventos ao vivo não irá desaparecer, mas muito do que se fazia ao vivo pode agora ser feito virtualmente, com custos muito mais baixos e muito maior facilidade de acesso. O aumento do teletrabalho poderá conduzir a uma migração dos grandes centros para zonas rurais e cidades de pequena e média dimensão. Isto terá implicações na oferta de transporte que terá de se ajustar a uma procura mais distribuída pelo território. Os planos de investimento na ferrovia devem ter isso em conta e a prioridade dada a ligações Inter-regionais e cidades médias deve ser reforçada.
O conjunto de propostas anunciadas no PNI 2030 são uma inegável mais-valia para o país e são uma parte indispensável da resposta à crise. Dar início à execução destes projetos é da maior importância. Mas a lógica faseada de implementação da nova linha Lisboa-Porto é muito adequada a estes tempos de grande incerteza e deve ser levada até ao fim. Que se avance para a primeira fase desta ligação, outros investimentos do PNI 2030 para a Ferrovia e se conclua o Ferrovia 2020, mas antes de começar a rasgar a Serra de Candeeiros é preciso reavaliar prioridades.
Artigo publicado originalmente no Jornal Económico no dia 13 de Novembro de 2020.
O acordo ortográfico utilizado neste artigo foi definido pelo autor.