Esta dívida portuguesa tem solução?
Esse é o valor, por pessoa, da dívida externa de Portugal, que atingia 194,3 milhões de euros no final do ano passado, somando os activos e passivos financeiros sobre o estrangeiro. Valores, acumulados ao longo de anos, que permitiram a Benedita nascer num hospital público, ter direito a frequentar escolas e liceus gratuitos ou a cruzar o país em auto-estradas.
Tudo porque grande parte da dívida externa portuguesa é também dívida pública e sem estes empréstimos o Estado estaria hoje de mãos atadas. Há mais de seis décadas que Portugal recorre a financiamento lá fora. E na maioria das vezes não conseguiu gerir essa dívida com o crescimento interno.
Nos últimos 16 anos, a situação agravou-se. A economia nacional deixou praticamente de crescer, obrigando o país a continuar a endividar-se para pagar novas despesas, facturas antigas e os juros de tantos empréstimos.
Os mais recentes dados do Banco de Portugal mostram que a dívida pública ultrapassava os 241mil milhões de euros em Dezembro, mais 9,5 mil milhões do que no ano anterior. E que só em juros o país deverá gastar este ano oito mil milhões de euros.
Não é preciso recuar muito para compreender o estado da economia nacional. No início de 1980, Portugal é um país quase subdesenvolvido. Um em cada cinco portugueses era analfabeto (20, 6%) contra os actuais 5%. Em cada mil bebés que nasciam, 24 morriam antes de chegarem ao primeiro ano de vida (hoje são 2,9). A grande maioria da população vivia ainda em localidades com menos de dois mil habitantes e havia pouco mais de 150 televisões por cada mil pessoas.
A economia estava à beira da bancarrota. Na ressaca do choque petrolífero de 1979 e com um descontrolo nas contas públicas, o Governo não tem outro remédio se não voltar a pedir ajuda ao Fundo Monetário Internacional (FMI).
Em 1983, pela segunda vez em apenas cinco anos, o país é alvo de intervenção do FMI e o programa imposto com o novo resgate cai duramente sobre os portugueses: os impostos aumentam e o crédito sofre restrições (ver infografia).
Este cenário começa a mudar com a entrada do país na CEE (1985). Os fundos comunitários de apoio e o investimento público permitiram modernizar o território. Construíram-se redes de abastecimento de água, de electricidade e saneamento básico. As distâncias encurtam-se: há novas estradas e as duas principais cidades do país ficam ligadas por auto-estrada (1991).
Nesta década e meia, a economia nacional dá um enorme salto: o país cresce a um ritmo superior a 4% ao ano, o desemprego está nos mínimos, e o país adere à moeda única, o euro (1999).
Ao mesmo tempo a despesa pública não pára de subir com os investimentos em infra-estruturas, educação, saúde, Administração Pública e Segurança Social. O Estado cresce. É o grande motor económico, controla empresas em vários sectores estratégicos e é proprietário do maior banco nacional.
Esta política responsável por grandes desenvolvimentos, levou contudo a um “extraordinário aumento da despesa pública”, defendem os economistas Fernando Alexandre, Luís Aguiar-Conraria e Pedro Bação no livro Crise e Castigo. E induziu ou ampliou “o desenvolvimento de graves desequilíbrios que culminariam na longa estagnação da economia portuguesa, na ruptura financeira do Estado e em grandes debilidades do sistema financeiro”, concluem.
No novo milénio, a economia nacional paralisa. E assim se mantém ao longo dos últimos 16 anos. Já o endividamento externo continua a galopar e estará, juntamente com a grave crise financeira internacional, na origem do terceiro pedido de resgate do país, em 2011. Desta vez o FMI, Banco Central Europeu e Comissão Europeia, a famosa Troika (ver infografia) emprestaram a Portugal 78 mil milhões de euros, entre 2011 e 2014.
Durante a crise financeira, grande parte do discurso nacional atribuiu também ao excesso de consumo das famílias a responsabilidade por um endividamento externo excessivo. Mas não foi isso que aconteceu, garante o professor de economia e pró-reitor da Universidade do Minho, Fernando Alexandre, um dos convidados deste programa Fronteiras XXI.
Os grandes responsáveis por esta dívida foram o Estado e as empresas, que no país “estão entre as mais endividadas do mundo”, adianta o professor de economia, co-autor do livro Poupança e Financiamento da Economia Portuguesa.
A austeridade imposta pela Troika obrigou a subidas de impostos, congelamento de salários na administração pública e fez disparar os despedimentos no sector privado. A taxa de desemprego bate recordes, atingindo os 16,2 % em 2013. Até à saída dos credores europeus de Portugal, em 2014, o país assistiu também a uma fuga de capitais para o estrangeiro e ao colapso do sistema bancário. O resgate do Estado à banca após a crise contribuiu fortemente para o endividamento público.
No último ano são muitas as vozes preocupadas e os alertas feitos à situação económica nacional. O ministro das Finanças alemão Wolfgang Schäuble já por três vezes veio publicamente questionar a capacidade de o país cumprir as regras de Bruxelas. Há menos de duas semanas, durante uma conferência de imprensa em Berlim, deixou o último aviso: “Certifiquem-se de que não precisam de um novo resgate”.
Um alerta que, tal como os anteriores, não caiu nada bem junto do Governo. E o primeiro-ministro António Costa, respondeu-lhe com os resultados positivos alcançados em 2016 . “Contra factos não há argumentos”, frisou, lembrando que o défice do país é o melhor em 42 anos de democracia: 2,1%. A estes valores acrescentou os “2% de saldo primário positivo, a diminuição de um ponto da dívida líquida, estabilização da dívida bruta e começo da redução, estabilização do sistema financeiro, criação de 118 mil postos de trabalho líquidos”.
Certo é que apesar de cumprir as metas impostas por Bruxelas, a capacidade de Portugal se financiar lá fora é cada vez mais pequena. A dotação do país pelas agências de rating continua a ser de “alto risco”, ou lixo. Por cada título da dívida pública a dez anos negociado no mercado, os portugueses pagarão este ano juros superiores a 4 % e apenas graças ao programa de compra de dívida pública do Banco Central Europeu (BCE). Por comparação os alemães pagam apenas 0,3% e os espanhóis 1,5%.Esse programa foi prolongado até final deste ano, e Portugal continua muito dependente desta política financeira do BCE para contrair empréstimos a taxas de juros mais baixas. Senão houvesse este programa, o país teria como único recurso a emissão de títulos da dívida pública a juros com valores substancialmente mais altos.
A discussão sobre a forma como Portugal conseguirá suportar a factura do endividamento público está na ordem do dia. À esquerda são cada vez mais aqueles que defendem que a solução está na reestruturação da dívida, ou seja na sua renegociação com os credores europeus e o FMI.
O antigo dirigente do BE e hoje membro do conselho consultivo do Banco de Portugal Francisco Louça é um deles. “Portugal está hoje numa situação que não tem sentido, porque não tem nenhuma possibilidade de sustentar os juros da dívida”, defende, acrescentando que a reestruturação é a única solução. “Estão a pedir a Portugal que responda à dívida que foi acumulada pelo aumento dos juros, com uma política que nenhum outro país conseguiu fazer”, defende.
A solução é polémica e “divide” o próprio Governo. No último debate parlamentar sobre a dívida, na semana passada, os socialistas preferiram continuar sem pronunciar a palavra reestruturação pedida pelos seus companheiros de governo, PCP e BE. Preferem antes falar de uma “gestão” do endividamento.
Na prática, isso implicará uma nova negociação da dívida no contexto europeu, como já admitiu o ministro das Finanças Mário Centeno. “É necessário que Portugal tenha uma redução da taxa de juro que paga sobre o seu endividamento”, afirmou em Novembro do ano passado antes de uma reunião do Eurogrupo. A resposta deste organismo às declarações do governante português foi breve: um rotundo “não” a uma renegociação com Portugal.
Para o economista Ricardo Reis, da London School of Economics, uma reestruturação da dívida nacional seria, na prática, um perdão. “Reestruturar a dívida significa convencer as instituições europeias e o FMI a darem-nos dinheiro, ou seja, convencê-los que nós devemos deixar de lhes pagar o que nos emprestaram”, frisou numa entrevista ao jornal online ECO em Outubro do ano passado. “O FMI não empresta o seu próprio dinheiro. Quem lhe empresta são os seus membros. Estamos a falar de mais de 200 países. Conseguir convencer esses países todos a perdoarem dívida, a não ser no caso de países como o Ruanda, acho muito difícil”.
A alternativa para o futuro podem ser a continuação de políticas de contenção da despesa e estímulo ao crescimento da economia, para conseguir provar aos mercados que o país merece a sua confiança.
A responsável pela Agência de Gestão de Tesouraria e da Dívida Pública (IGCP), Cristina Casalinho, defendia no início do Janeiro num artigo de opinião no Jornal de Negócios, a urgência de agir perante o problema. Dizia, que a dívida portuguesa é “das mais altas do mundo em termos de PIB” , sendo por isso necessário estimular a poupança no país. Ao mesmo tempo, alertava que era necessário acelerar o crescimento da economia nacional, aproveitando um “contexto de taxas de juro reduzidas, que poderão ter abandonado os seus patamares mínimos”.
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