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Entrevista GPS #36: «Os protectores solares já demonstraram ser eficazes»

Entrevista GPS #36: «Os protectores solares já demonstraram ser eficazes»

Entrevista a Natércia Rodrigues Lopes, doutoranda em Química-física na Universidade de Warwick, Reino Unido.
7 min
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«Os protectores solares são indispensáveis para nos mantermos seguros e saudáveis quando expostos ao Sol. No entanto, o que eu faço é tentar melhorar os ingredientes activos nos protectores solares, descobrindo formas de criar moléculas com características protectoras mais eficientes.»

 

Pode descrever de forma sucinta (para nós, leigos) o que faz profissionalmente?

O meu trabalho, e a minha pesquisa científica, estão relacionados com o desenvolvimento de melhores ingredientes activos em protectores solares. Os componentes de um protector solar que nos protegem do Sol são moléculas ‘fotoprotectoras’ que absorvem a luz do Sol para que essa radiação não possa ser absorvida pela a nossa pele, protegendo-a assim dos efeitos nefastos da radiação solar. No entanto, quando qualquer molécula absorve radiação, diz-se que ela fica excitada, ou seja, fica num estado de excesso energético. Esta energia em excesso tem de fluir para algum lado – ela não pode, simplesmente, desaparecer. Portanto, estas moléculas fotoprotectoras têm de encontrar mecanismos para se libertar dessa energia em excesso, sem que isso resulte na sua degradação ou outros processos indesejáveis. Por exemplo, se o ingrediente activo num protector solar (a tal molécula fotoprotectora) transferir o excesso de energia sob a forma de radicais livres (partículas altamente reactivas que reagem com material biológico na nossa pele), isso pode vir a ser uma fonte indirecta de danos no nosso ADN, o primeiro passo para o desenvolvimento de cancro da pele, neste caso. É importante dizer que os protectores solares já demonstraram ser eficazes na protecção contra a radiação solar e são indispensáveis para nos mantermos seguros e saudáveis quando expostos ao Sol. No entanto, o que eu faço é tentar melhorar os ingredientes activos nos protectores solares, descobrindo formas de criar moléculas com características protectoras mais eficientes, sempre contornando os tais processos indesejáveis.

Para alcançar este objectivo, utilizo tecnologias de espectroscopia ultrarrápida. Os processos que ocorrem nas moléculas de um protector solar quando estas absorvem radiação acontecem muito rapidamente, dentro de femtosegundos, que são 0.000000000000001 segundos! Observar eventos que acontecem em tão pouco tempo só é possível usando pulsos de luz laser. O laser tem duas funções: um primeiro feixe de luz laser imita os efeitos do sol e excita a molécula fotoprotectora. O segundo laser vem um determinado intervalo de tempo após o primeiro e actua como se tirasse uma ‘fotografia’ do processo fotoquímico, isto é, o processo que acontece após a molécula absorver radiação. Se tirarmos muitas destas ‘fotografias’, umas a seguir às outras, e depois as observarmos por ordem, podemos ter uma ideia do processo dinâmico completo – um pouco como aqueles caderninhos com um desenho em cada página que, se desfolharmos muito rapidamente, dão a aparência de uma imagem que se move. Assim, o laser não só inicia o evento a ser observado, mas também depois ‘desenha’ cada uma das páginas na analogia anterior. A mim só cabe depois ‘folheá-las’ para ver qual é o processo fotoquímico activo numa determinada molecular fotoprotectora. Com esta informação, posso criar novas moléculas em que os processos fotoquímicos são optimizados para melhor protecção contra a radiação solar.

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Agora pedimos-lhe que tente contagiar-nos: o que há de particularmente entusiasmante na sua área de trabalho?

Tudo o que vemos à nossa volta é o resultado de transferências de energia de um sistema para outro: é assim que adquirimos energia do que comemos, é assim que as plantas sobrevivem da luz solar, e é assim que as proteínas nos nossos olhos traduzem a luz reflectida pelos objectos à nossa volta para uma imagem que faça sentido nos nossos cérebros. Estes mecanismos de transferência de energia não são mais que um ballet de electrões saltitantes de um lado para o outro. Estes electrões são partículas infinitesimamente pequenas que não podem ser observadas directamente mas, desde o dia em que a minha professora de química do 12º ano mos apresentou, vivo fascinada por electrões e, especialmente, pelos processos em que eles estão envolvidos. A razão pela qual vemos cores, por exemplo, tem a ver com as interacções entre matéria e luz; mais precisamente, luz faz com que electrões se movam e esse movimento eventualmente produz mais luz, correspondente às cores que vemos. É arrebatador pensar que tudo o que vemos, tudo o que somos, se reduz à dança de corpúsculos minúsculos. Porque é que electrões se comportam desta forma? Qual a razão de a energia fluir numa direcção e não na outra? Estas são as leis que permitiram que a vida biológica se gerasse e evoluísse da forma que o fez; se tivesse sido diferente, será que o ser humano teria existido?

Estudar como as moléculas interagem com a luz, e a forma como energia é consequentemente transferida entre sistemas é, em essência, entender porque é que o Mundo à nossa volta funciona como o vemos hoje, e ter a oportunidade de alterar esses mecanismos de transferência de energia para mudar a vida das pessoas: desde prevenir cataratas até desenvolver novas formas de usar e guardar energia solar (painéis solares mais eficientes, por exemplo). Este é o tema apaixonante que me faz voltar ao laboratório todos os dias.

A minha área, especificamente, creio que não existe em Portugal – se alguém ler estas linhas e me souber errada, por favor avise-me!

Por que motivos decidiu fazer períodos de investigação no estrangeiro e o que encontrou de inesperado nessa realidade académica?

Vim para o Reino Unido imediatamente após acabar o ensino secundário. Não só queria muito viajar e passar pela experiência de viver no estrangeiro, mas entendi desde cedo que teria melhores hipóteses de singrar numa carreira em ciência fora de Portugal. Fiz o meu bacharelato com mestrado integrado na Universidade de Leicester, com um ano de estágio no Science and Technology Facilities Council, e depois doutoramento na Universidade de Warwick, onde acabei de entregar a minha tese e estou à espera de a defender. Inicialmente foi-me difícil adaptar ao estudo universitário, especialmente fazer a transição para usar terminologia científica em inglês. Depois, ganhei ritmo e as coisas foram correndo melhor – tive imenso apoio tanto do meu departamento, incluindo professores e staff não docente, como da universidade em geral. Não sei se houve algo de inesperado, sei que houve momentos marcantes que definiram o meu futuro. O meu ano de estágio, por exemplo, que foi quando decidi que queria fazer um doutoramento e enveredar pelo caminho da pesquisa. Iniciar a minha carreira científica no Reino Unido tem-me aberto muitas portas e eu tenho muita vontade de agarrar essas oportunidades.

Que apreciação faz do panorama científico português, tanto na sua área como de uma forma mais geral?

A minha área, especificamente, creio que não existe em Portugal – se alguém ler estas linhas e me souber errada, por favor avise-me! Sei de um sistema laser de femtosegundos que está a ser usado na Universidade do Porto, mas para um fim completamente diferente daquilo que faço. Mas acho que é o único sítio onde equipamento semelhante existe em Portugal.

Tendo feito toda a minha vida académica no Reino Unido, acabo por não ter uma noção clara da situação em Portugal. Sei, sim, que começo a pensar em voltar, e fazer pesquisa em Portugal, e em verdade as coisas que encontrei – em termos de trabalho que se faz e oportunidades de financiamento para pós-docs, por exemplo – é superior ao que pensei que fosse encontrar. Há mecanismos para apoiar ciência, ainda que com recursos limitados. A vida em pesquisa científica e a progressão na carreira académica tem os seus desafios também no Reino Unido, e presumo que assim seja também em Portugal. Em geral, os critérios para ser aceite numa posição permanente numa universidade são muito exigentes e é preciso muito traquejo. Tenho esperança de, quando estiver pronta para voltar, vir a ter a oportunidade de fazer a diferença no universo da pesquisa científica portuguesa e em Portugal. Mas tenho a noção de que tenho de ter um currículo que seja difícil recusar, e é para isso que tenho vindo a trabalhar.

Que ferramentas do GPS lhe parecem particularmente interessantes, e porquê?

Acho muito importante que haja iniciativas como esta. Não só é importante que as pessoas em Portugal estejam mais familiarizadas com a realidade de que há muitos portugueses no estrangeiro a trabalhar em pesquisa científica importante, em instituições líderes a nível mundial, mas é também importante para os cientistas, eles mesmo, conhecerem-se uns aos outros. Saber que há mais gente na nossa situação pode facilitar a interacção, a partilha de ideias e de experiências, e pode ser frutuoso em termos de futuros projectos de pesquisa. Mais ainda, levar ciência a toda a gente, independentemente do seu nível de conhecimento científico, é algo que considero de extrema importância e que o GPS também aborda.

Consulte o perfil de Natércia Rodrigues Lopes no GPS.
GPS é um projecto da Fundação Francisco Manuel dos Santos com a agência Ciência Viva e a Universidade de Aveiro.

 

O acordo ortográfico utilizado neste artigo foi definido pelo autor.

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Portuguese, Portugal