Donald Trump e o «nosso» Mundo
«Estes não são tempos fáceis para os rivais e também para os aliados dos EUA.» Neste artigo para o blog da Fundação, a especialista de Relações Internacionais Raquel Vaz-Pinto debruça-se sobre a política externa da Administração Trump e as suas implicações para Portugal e o mundo.
«Our foreign policy calls for a direct, robust and meaningful engagement with the world. It is American leadership based on vital security interests that we share with our allies across the globe. (…) Free nations are the best vehicle for expressing the will of the people – and America respects the right of all nations to charter their own path. My job is not to represent the world. My job is to represent the United States of America. (…)» Presidente Donald Trump, Congresso dos Estados Unidos da América, 28 de Fevereiro de 2017.
Os não-apoiantes nacionais e internacionais de Donald Trump suspiraram de alívio quando o ouviram discursar perante o Congresso. Mas foi sol de pouca dura e o Presidente Trump voltou ao seu melhor estilo: acusou o Presidente Obama de o ter espiado durante a campanha. Caiu por terra o breve e curto registo de estadista e passámos via Twitter à alusão de um «Watergate 2.0». Entretanto, o «Trump Tower Gate» foi desmentido sem apelo nem agravo pelo director do FBI. E eu diria que não vamos ficar por aqui.
Este episódio digno de uma novela mexicana (não resisti!) é muito revelador. No meio de tanto ruído, acusações e insultos, como vamos conseguir descortinar as politicas estruturais desta Administração? Como distinguir o dia-a-dia das opções com alcance a médio e longo prazo? Mais ainda, no que toca a decisões estratégicas podemos esperar que estas sejam de facto cumpridas ou vão ser sujeitas a ziguezagues?
Num exercício que não será fácil vamos ter que aprender a separar as opções de fundo de Trump dos seus tweets. O discurso não foi inovador – por exemplo, continuamos sem saber qual vai ser a tónica nas relações de Washington com Moscovo - e certamente não aprofundou o que já sabemos do olhar externo desta Administração: mais proteccionista e unilateral. Mas ainda assim vale a pena termos em atenção algumas das suas frases.
Ao afirmar que «não é a sua função representar o mundo, mas sim os Estados Unidos da América», o Presidente Trump está a assumir a divergência em relação a um princípio basilar de Washington desde 1945: a liderança do mundo é do interesse nacional dos EUA. A sua agenda de colocar a «America First» ou a de «make America great again» parte do pressuposto que é preciso rever as estruturas da sociedade internacional criadas pelo seu país.
Mais ainda quando declara que os EUA «respeitam o direito de todas as nações de trilharem o seu caminho», parece-me que podemos esperar de Trump uma politica externa menos normativa e na qual a expansão e promoção de direitos humanos e da democracia liberal será secundária. É pelo menos o que parece transparecer da sua proposta de orçamento, na qual os gastos militares são reforçados em detrimento, por exemplo, do Departamento de Estado. Rex Tillerson, o Secretário de Estado, parece estar a perder terreno e a sua decisão de não fazer uma sessão de apresentação do Relatório Anual sobre Direitos Humanos não deve ser uma coincidência. Será crucial perceber nos próximos tempos se Tillerson vai ser capaz de reivindicar maior autonomia orçamental para o seu Departamento. Para já o Secretário de Defesa, General James Mattis, está na linha da frente reforçando o que parece ser uma tendência: a secundarização do Departamento de Estado face ao seu congénere de Defesa.
Há ainda é claro a ideia crucial de Trump: o proteccionismo. Para além das grandes tiradas e da confirmação da morte anunciada da Parceria Trans-Pacífico, que aliás Trump caracterizou como «job-killing» no seu discurso no Congresso, não há ainda muita substância. Mas para tentarmos descortinar o que pode vir a ser a sua politica comercial vale a pena ler o livro de Peter Navarro (escrito em co-autoria com Greg Autry) intitulado Death by China, confronting the Dragon – a global call to action, já que Navarro foi escolhido por Trump para dirigir o Conselho Nacional para o Comércio. Este livro escrito em 2011 com um tom profundamente panfletário contém muitos dos sound-bytes que Trump tem proferido sobre a China em matéria comercial. Basta olharmos para o título da segunda parte do livro, em que o «mercantilismo chinês» é caracterizado como «weapons of job destruction».
E nós portugueses, como vamos navegar nesta maré Trump? A resposta não é fácil porque os outros pontos de apoio da nossa política externa também não estão de boa saúde. É claro que vamos ter de esperar para ver se de facto a NATO continua a ser central para a política externa dos EUA. Um dos maiores defensores da manutenção dos Açores na sua vertente militar é o californiano Devin Nunes, que preside ao Comité de Intelligence da Câmara dos Representantes, e que tem acesso a Donald Trump. Mas é claro que a nossa relação com os EUA não se esgota na questão das Lajes. A relação com Washington é muito mais do que isso.
Mas e se os EUA desinvestirem nesta relação, seja do ponto de vista comercial seja do ponto de vista militar? O timing é terrível para Portugal e para a Europa. A União Europeia atravessa um momento grave e vai ter um ano difícil. É paradoxal que um dos espaços do mundo onde melhor se respira o ar da democracia liberal esteja em pânico com as eleições holandesas, francesas e alemãs. A Europa, que ainda não digeriu o Brexit, vai ter de tomar decisões importantes sobre o caminho a seguir. Neste momento muitos países europeus discutem as suas opções estratégicas. É urgente que Portugal também o faça.
2017 é, aliás, também um ano difícil para um país cuja importância cresce na Europa e em particular em Portugal: a China. Num sinal claro deste século XXI, temos de incluir o Império do Meio nas nossas análises. Apesar de todo o entusiasmo criado pelo discurso de Xi Jinping no Fórum Económico Mundial, a verdade é que a China tem pela frente um ano complicado. Gostaria de destacar no final deste mês a escolha do Chefe do Executivo de Hong Kong e no fim do ano a renovação politica a ter lugar no 19º Congresso do Partido Comunista da China. Este é um ano em que os erros se pagarão caro e poderão acabar com as carreiras politicas de muitos decisores chineses. Ao mesmo tempo que Beijing vai escolher a Sexta Geração, que entrará em funções depois do segundo mandato de Xi Jinping, vamos poder confirmar se a nova composição do todo-poderoso Comité Permanente do Politburo irá reflectir o poder do actual Secretário-Geral do Partido e Presidente da China.
Como podemos ver, as relações entre a China e os EUA serão ainda mais decisivas este ano. Seja sobre os testes da Coreia do Norte, a possível revisão do artigo nove da Constituição japonesa, os conflitos territoriais no Mar do Sul da China ou Taiwan, não faltarão ingredientes para uma «tempestade perfeita».
De um lado, um Presidente revisionista e do outro um defensor do status quo. O que é extraordinário é que o revisionismo da ordem internacional venha de Washington.
Estes não são tempos fáceis para os rivais e também para os aliados dos EUA. Quais são as nossas mais-valias? Devemos apostar no mar? Vale a pena continuar a pensar no mundo lusófono? O que é que nos distingue verdadeiramente? Qual será o melhor caminho europeu para a nossa economia? Daqui a duas décadas estaremos melhores? Estes são alguns dos temas sobre os quais precisamos de reflectir e conversar num ano que, do ponto de vista internacional, não nos dará tréguas.
Raquel Vaz-Pinto é autora do ensaio 'Os portugueses e o mundo', publicado pela FFMS.
O acordo ortográfico utilizado neste artigo foi definido pelo autor.