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Democracia e passado autoritário

Democracia e passado autoritário

Divulgamos o primeiro capítulo do livro «Ditadura e democracia: legados da memória», de Filipa Raimundo.
7 min

Nem todas as democracias lidam com o seu passado autoritário da mesma forma. A decisão de punir ou não os responsáveis pelo regime deposto é, em larga medida, um produto das condições políticas existentes durante a mudança de regime.

O mesmo sucede com os aspectos mais simbólicos, relacionados com os legados materiais e com a construção de uma narrativa em torno do passado recente. Mais tarde, só conjunturas críticas permitem mudar a relação entre um povo e o seu passado autoritário. 

Quando a transição do autoritarismo à democracia ocorre por via de negociações entre a velha e a nova elite política, as democracias ficam mais condicionadas na forma como lidam com o seu passado autoritário. Esses constrangimentos muitas vezes persistem, mesmo perante pressões da sociedade civil para inverter as decisões tomadas durante a mudança de regime. Vejamos o exemplo do que se passa ainda hoje em Espanha e no Brasil.

Em Espanha, o carácter gradual e negociado da mudança de regime desencadeada com a morte de Francisco Franco em Novembro de 1975, associado ao medo do regresso ao clima da Guerra Civil que marcou o período de 1936-39 e que deixou cicatrizes profundas na sociedade espanhola, conduziu à aprovação, com largo apoio social, de uma lei de amnistia. É essa lei que ainda hoje impede que sejam julgados os crimes cometidos pelo franquismo. Nos últimos anos, a opinião pública daquela que foi durante muito tempo descrita como uma transição pacífica, consensual e modelar, foi mudando. Em 2006, 30 anos após o fim do franquismo, um inquérito estatal revelou que mais de metade dos inquiridos (65%) era a favor que se identificassem as fossas comuns dos fuzilados do regime franquista e se reabilitassem as vítimas da guerra civil. Num outro inquérito conduzido dois anos mais tarde, quase metade dos inquiridos concordava que as autoridades que violaram direitos humanos durante o franquismo deviam ser julgadas. Os inquiridos que se mostravam mais divididos eram, de acordo com aqueles dados, os que se diziam próximos do Partido Popular, o principal partido de direita à data, a que inicialmente aderiu um segmento importante da velha elite franquista.

No Brasil, onde os militares também aprovaram uma auto-amnistia antes de abandonarem o poder em 1985, o impacto do equilíbrio de poderes foi também bastante evidente na forma como se lidou com o passado. Apesar do longo e detalhado relatório sobre a repressão exercida durante a ditadura militar, produzido pela Comissão de Verdade em 2014, os pactos da transição continuam ainda hoje a falar mais alto. No entanto, a opinião pública brasileira parece ter ideias menos claras do que a espanhola sobre este tema: em dois inquéritos conduzidos mais de 20 anos após o início da democratização, uma percentagem muito expressiva dos inquiridos – 40% em 2010 e 46% em 2014 – afirmava ser a favor da punição de pessoas que torturaram presos políticos durante a ditadura militar. Contudo, nos mesmos inquéritos, uma percentagem semelhante – 45% em 2010 e 41% em 2014 – afirmava ser a favor da manutenção da lei de amnistia. Os dados sobre o Brasil sugerem uma menor politização do tema, acima de tudo menos ancorada nas preferências partidárias, já que não parecem reflectir a posição dos partidos políticos com que os cidadãos se identificam. Na realidade, o número de cidadãos que se identifica com algum partido político é extremamente baixo e isso pode ser uma razão importante para que esta memória colectiva seja aparentemente difusa e ambígua quanto à melhor forma de lidar com o passado.

Ajustar contas com o passado autoritário implica deslegitimá-lo, estigmatizar os seus apoiantes e promover uma imagem negativa de tudo quanto esteja associado a esse período histórico. Tal não significa, porém, que não existam segmentos da população que preservem uma imagem positiva ou ambígua.

Ambas as experiências contrastam amplamente com as mudanças de regime que ocorrem na sequência da derrota ou deslegitimação da elite autoritária, que se vê sem grande margem para negociar os termos da sua saída. Exemplos disso são a Grécia, cuja ditadura dos coronéis ficou deslegitimada em 1974 depois da derrota na guerra com o Chipre, ou a Alemanha de Leste ou a Checoslováquia (mais tarde República Checa e Eslováquia), onde os regimes comunistas colapsaram na sequência de fortes pressões sociais e manifestações em 1989. Em qualquer um destes países, a transição à democracia abriu espaço para que a elite política, os funcionários das instituições repressivas e, nos casos das democracias pós-comunistas, os filiados no partido único fossem julgados pelos tribunais, afastados da função pública e estigmatizados. Nestes casos, o ajuste de contas com o passado parece deixar uma marca positiva nos cidadãos, que parecem manter o apoio a esse tipo de medidas, mesmo anos após a estabilização da democracia. Um inquérito realizado a uma amostra de 334 indivíduos que requereram compensações por terem sido vítimas de repressão durante o regime comunista na Alemanha de Leste revelou que, em 2007, havia ainda uma ampla maioria (66%) que defendia a intensificação das medidas de punição. Também na República Checa, em 1999, dez anos após a queda do regime comunista, mais de metade (60%) dos participantes num inquérito à população continuava a posicionar-se a favor da ilegalização do partido comunista.

As atitudes dos cidadãos encontram frequentemente paralelo entre a elite política. Veja-se, a título de exemplo, o discurso de Manuel Fraga Iribarne, antigo ministro de Francisco Franco, um dos ‘pais’ da nova Constituição democrática espanhola, eleito para diversos cargos políticos durante a democracia, em 1986: “Assistimos ao desaparecimento, por simples esgotamento biológico e rodeado do respeito e até do afecto de milhões de espanhóis, de um homem singular, que governou em guerra e em paz durante quase 40 anos e cuja obra não pode no entanto ser valorizada com total serenidade, por mais que sejam muitos os que o tentam fazer de boa ou má-fé”. Este discurso contrasta, por exemplo, com o de Vaclav Havel, o primeiro Presidente da Checoslováquia na sequência do colapso do regime comunista, que no discurso de Ano Novo em 1991 afirmou: “Há um ano estávamos todos unidos pela alegria de nos termos libertado de um sistema totalitário (…) Mas a herança das décadas passadas provou ser pior do que podíamos ter antevisto no meio do clima de alegria das primeiras semanas de liberdade. Cada dia traz mais problemas e cada dia nos percebemos como eles estão relacionados, quanto tempo levarão a ser resolvidos e quão difícil é encontrar a ordem em que vamos lidar com eles”.

Este género de discursos, juntamente com as decisões sobre como lidar com o passado autoritário, contribuem para a construção da memória histórica de um país. As democracias que não ajustam contas com o passado promovem discursos de continuidade e de reconciliação; as democracias que ajustam contas com o seu passado tendem a diminuir a legitimidade de narrativas alternativas. Ajustar contas com o passado autoritário implica deslegitimá-lo, estigmatizar os seus apoiantes e promover uma imagem negativa de tudo quanto esteja associado a esse período histórico. Tal não significa, porém, que não existam segmentos da população que preservem uma imagem positiva ou ambígua desse passado. Isso é o que mostram os dados recolhidos através de dois estudos de opinião pública conduzidos pelo Centro de Estudos de Opinião da Universidade Católica Portuguesa e pelo Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa (ICS-UL), em que se pedia aos portugueses que avaliassem o Estado Novo de forma global. Tanto em 2004 como em 2014, anos em que se celebravam 30 e 40 anos do 25 de Abril de 1974, respectivamente, a percentagem de inquiridos que concordava com a ideia de que o Estado Novo teve tantas coisas positivas como negativas rondava os 30% e a percentagem de inquiridos que afirmava ter uma imagem mais positiva do que negativa daquele regime rondava os 20%. Só cerca de metade dos inquiridos é que afirmava ter uma imagem mais negativa do que positiva daquele período da História do século xx português, sendo que, face a todos os outros, essa percentagem passou a ser minoritária em 2014 (47%).

 

O acordo ortográfico utilizado neste artigo foi definido pelo autor.

Portuguese, Portugal