Cancro: tempo de agir
Veja o Fronteiras XXI «Cancro: para quando a cura?»
Nunca se está à espera de um diagnóstico de cancro. Muito menos quando se tem 31 anos e um filho de três. Fátima Abreu, assistente operacional, sentia uma dor na mama, que permaneceu depois de uma pancada dada pelo filho. Quando se queixou à médica de família estava convencida de que seria algo de natureza muscular. Mas não era. Mamografia e ecografia prontamente requisitadas pela médica mostraram que estava com cancro.
“Não me tinha passado pela cabeça”, recorda hoje, sete anos após o diagnóstico. Submeteu-se à tríade quimioterapia, cirurgia, radioterapia e continuou a vigilância apertada, sem sustos. Até que uma metástase no fígado, em 2020, e a subida dos marcadores tumorais detetada em setembro de 2021 lançaram novo alerta. Só que estávamos em plena pandemia e ao contrário do que tinha acontecido da primeira vez, Fátima deixou de ter resposta do hospital público onde era acompanhada. Ao fim de um mês de espera para a Ressonância Magnética e para o PET e sem qualquer previsão para a data de realização dos exames, decidiu recorrer à medicina privada, chegando mesmo a iniciar o tratamento na unidade. “Eu sempre quis voltar para o público e assim que tive vaga, regressei ao meu hospital”, relata. Fátima resignou-se a este contratempo e entendeu que o atraso, e a mudança de atendimento relativamente à primeira fase da doença se devia às circunstâncias extraordinárias que estamos a viver.
Ainda é cedo para avaliar todas as repercussões que a pandemia terá nas doenças oncológicas. Mas ninguém tem dúvidas de que as ondas de choque continuarão a ser notadas ao longo dos próximos anos. “Nos tratamentos em curso não terá havido grande perturbação, já que os doentes oncológicos foram sempre considerados prioritários ao longo da pandemia. O maior efeito foi na deteção do cancro, devido à dificuldade de acesso aos cuidados de saúde primários. As pessoas começaram a chegar ao hospital em estados mais avançados da doença.”, sublinha Ana Castro, oncologista e presidente do Centro Hospitalar e Universitário do Algarve. “Só ao longo dos próximos cinco anos é que iremos perceber qual o impacto que [este atraso] terá na sobrevivência”, continua.
Em colaboração com a Ordem dos Médicos e a Associação Portuguesa de Administração Hospitalar, e no âmbito do Movimento Saúde em Dia, a consultora Moai começou em setembro de 2020 a lançar, periodicamente, indicadores de acesso aos cuidados de saúde. “Mesmo que hoje já estejamos a atingir um ritmo normal, haverá sempre doentes a ficar para trás”, alerta Joana Sousa, da Moai. “Os médicos têm-nos relatado a chegada de doentes com tumores mais avançados”, diz. Sendo que os hospitais focados exclusivamente no atendimento à patologia – Instituto Português de Oncologia – foram os que menos sofreram o impacto da pandemia e os que maior esforço de recuperação de consultas em atraso têm vindo a fazer.
Tamara Milagre, fundadora da Associação Evita, de apoio a pessoas com cancro hereditário, não é gentil com as palavras. “É um tsunami que aí vem!”, diz, referindo-se sobretudo às mulheres que sofrem de cancro da mama hereditário – à volta de 10% cento dos casos têm origem numa alteração genética presente à nascença. Em geral, a doença aparece em pessoas muito jovens, numa forma altamente agressiva e de evolução rápida. A vida destas mulheres depende de uma análise genética para identificação da mutação e recomendação de esquemas de rastreio mais apertados, sendo que em alguns casos pode mesmo ser equacionada a realização de cirurgias profiláticas, de extração de mamas e ovários, antes que o cancro apareça. “Se antes da pandemia já tínhamos um tempo de espera de um ano para a primeira consulta de aconselhamento genético e depois mais um ano à espera do resultado do teste, nem consigo prever de quanto será o atraso neste momento”, lamenta a enfermeira, ela própria portadora da mutação. Para as cirurgias preventivas, em que a espera é habitualmente de dois anos, Tamara também teme o pior. “Como não eram casos urgentes, foram ficando para trás. E a pessoa vai vivendo com a Espada de Dámocles na cabeça, sem saber quando vai adoecer.”
Juntamente com colegas brasileiros, americanos e de outros países europeus, Ana Castro desenvolveu um modelo para estimar o impacto, nos próximos cinco anos, dos atrasos no diagnóstico provocados pela pandemia, no cancro da cabeça e pescoço e “é mau, muito mau!” E não é que a especialista não esteja habituada a cenários complicados. “Quando comecei a trabalhar, fiquei com os cancros que ninguém queria”, recorda. Quase nada funcionava no tratamento de neoplasias na zona do nariz, garganta, boca, base do crânio, pelo que até os oncologistas, preparados para encarar situações difíceis, fugiam destas neoplasias. Passaram duas décadas e a história hoje é bem diferente. “Antes, os pacientes que apareciam com doença metastática não viviam mais de dez meses. Hoje, tenho pessoas com regressão total da doença e que continuam vivas, mais de seis anos depois do diagnóstico”, relata entusiasmada.
O otimismo continua quando a especialista elenca as razões para esta drástica mudança no panorama das doenças oncológicas. Fármacos inovadores, imunoterapia como a terapia de células CAR T, altamente eficazes no tratamento de leucemias e linfomas, quando os tratamentos de primeira linha falharam, cirurgia minimamente invasiva, com a ajuda de robôs que permitem atingir maior grau de precisão no corte, radioterapia que diminui as sequelas e as margens à volta do tumor. Tudo isto tem vindo a melhorar não só a esperança de vida como a qualidade de vida. Porque a ideia é “viver mais, mas viver bem”, salienta Ana Castro.
Em 2020, morreram trinta mil portugueses, vítimas de cancro – um número que tem vindo sempre a crescer. Na Europa foram 1,3 milhões. Dados do Reino Unido indicam que uma em cada duas pessoas nascidas após 1960 irá desenvolver a doença ao longo da sua vida. Ursula von der Layen, médica de formação e Presidente da Comissão Europeia, está determinada a tornar a saúde num pilar do seu mandato, concentrando-se em particular no cancro. A 4 de fevereiro último, um ano após o lançamento do Plano Europeu do Combate ao Cancro, a Presidente fez um balanço do impacto da pandemia – uma em cada duas pessoas com sintomas não foi encaminhada com a urgência desejada – e das iniciativas previstas pelo plano, que tem um financiamento de quatro mil milhões de euros e envolve a criação de uma rede de centros em todos os estados-membros, elevando e harmonizando o acesso e a qualidade dos cuidados e aumentando a mobilidade dos pacientes.
Mesmo antes do programa promovida por von der Layen, já havia portugueses a serem encaminhados para outros países à procura de uma terapia mais adequada ao seu caso. “Hoje em dia a Medicina é europeia, internacional, até”, nota Ana Castro que já referenciou doentes para Espanha, Suíça e até EUA, para serem tratados no âmbito de um ensaio clínico, no perfil do qual se encaixavam. Esta é em geral a última opção para casos em que já se esgotaram todas as linhas terapêuticas aprovadas e só resta tentar soluções experimentais.
Uma década depois de Bruno Silva-Santos e o seu aluno de doutoramento Daniel Correia terem identificado uma população estranha de células imunitárias, que numa primeira análise até pareciam uma impureza da amostra, iniciaram-se, na América, os ensaios clínicos a este tipo de linfócitos T, denominadas de células DOT. Depois de manipuladas e multiplicadas em laboratório, as DOT tornam-se altamente eficazes no combate ao cancro. O que ficou comprovado ao longo da fase de ensaios pré-clínicos, com testes conduzidos em caixas de Petri e em animais modelo, pelos dois cientistas do Instituto de Medicina Molecular da Universidade de Lisboa, fundadores da spin-off Lymphact, entretanto adquirida pela biotecnológica britânica GammaDelta Therapeutics. Neste momento, estas “super assassinas” estão a ser administradas em quatro centros americanos, a pacientes com leucemia mieloide aguda, o cancro do sangue com pior prognóstico – três em cada quatro pacientes chega a uma fase da doença em que já não responde à quimioterapia – num ensaio de fase I. Com a expectativa de que as DOT sigam para a segunda fase de ensaios, já com a dose terapêutica mais bem definida, Bruno Silva-Santos e a sua equipa continuam a explorar o potencial desta imunoterapia noutros tipos de tumores, em concreto no cancro do cólon, um dos mais frequentes. “Sabemos que as células DOT, que administramos no sangue, são capazes de infiltrar tecidos, incluindo tumores. Estamos a avaliar a sua capacidade de eliminar as células de tumores primárias e de impedir que elas se espalhem pelo organismo”, avança o imunologista. “Se os nossos resultados forem positivos, a Takeda (que incorporará a Gamma Delta Therapeutics nos próximos meses) poderá avançar para ensaios clínicos neste tipo de cancro onde a imunoterapia ainda não conseguiu o sucesso tão ambicionado.”
Esta linha de ataque, que passa pela manipulação do sistema imunitário, inaugurou uma nova era no tratamento da doença. Diferentes estratégias, que assentam neste princípio, têm vindo a mudar completamente o prognóstico de alguns dos cancros mais mortais, como era o caso do melanoma e do cancro do pulmão. E o próximo grande avanço pode ser numa das doenças mais temidas pela sua enorme mortalidade, o cancro do pâncreas. “Nos últimos vinte anos nada mudou no cancro do pâncreas. É uma tragédia!”, diz Markus Maurer, responsável pela área de imunoterapia do Centro de Cancro do Pâncreas Botton-Champalimaud. Mas estão para breve novidades que deixam o investigador especialmente entusiasmado. “Houve uma revolução silenciosa no cancro”, diz, referindo-se em particular ao estudo do microambiente tumoral – as proteínas que estão à volta do tumor e que afetam o seu crescimento – e também aos enormes progressos que têm sido feitos relativamente à biologia de cada tipo de tumor. Este acumular de conhecimento potencia a dita medicina de precisão que de uma forma simplificada significa que cada tumor é tratado de uma forma única e de acordo com as características específicas do paciente e da doença. No novo centro dedicado ao tratamento e pesquisa, não são as janelas com vista para o Tejo que o enchem de particular orgulho, mas o laboratório GMP (do inglês Boas Práticas de Fabrico) que permitirá manipular células humanas para depois as injetar nos pacientes. “Isto irá permitir-nos modificar geneticamente e treinar células T de modo a serem capazes de reconhecer, e eliminar, as células tumorais”, resume Markus Maurer.
Uma técnica que deu os primeiros passos na terapia, já aprovada, de CAR T e que deverá começar a estender-se a outro tipo de neoplasias. Há também grande expectativa em torno da correção da mutação KRas, envolvida em 25% de todos os cancros e em quase 90% dos cancros do pâncreas. Trinta anos depois de ter sido descoberta, conseguiu-se, finalmente, desenvolver moléculas capazes de contrariar esta alteração que alimenta a proliferação tumoral e que em breve estarão disponíveis no mercado. “O tratamento do cancro está a evoluir para uma diversidade de opções. Umas aplicáveis a mais tipos de cancro do que outras, umas mais personalizadas”, aponta Bruno Silva-Santos. No entanto, qualquer que seja o caminho, é certo que viveremos mais e com melhor qualidade de vida.