A cafeína é o melhor amigo do hoteleiro
«É pelo facto de a exigência no serviço ser cada vez maior que talvez compreendamos o quanto de sincero e angustiante existe na confissão de um dos meus testemunhos, confessando-me que a cafeína era o melhor amigo do hoteleiro.»
Paladino é o nome próprio do hotel onde desvendo vida e trabalho atrás das cortinas de bem-estar e lazer. Neste retrato percorro recantos, da despensa à oficina, da recepção ao bar, do ginásio à lavandaria, e neles me deparo com episódios contados pelos personagens principais de um hotel. Os clientes? Aqui os protagonistas são os guardiões do templo, os trabalhadores que reservam um património de segredos, alguns para rir, muitos para refletir, sobre o seu dia-a-dia. Estou a recordar-me da angústia de Mara quando abriu a porta de um quarto virado do avesso pelos clientes acabados de sair. A dimensão da diversão dos hóspedes foi proporcional à dimensão de trabalho-extra de limpeza. De cascas de camarão a beatas queimadas em tampos de mesa, de cómodas dispostas de pernas para o ar a lençóis sujos, os 16 quartos que levava na folha de serviço para cumprir escrupulosamente foram estendidos por muito mais horas de esforço, sem apelo nem agravo... E é importante saber o quanto quem trabalha nos bastidores tem de calar o que vê. Aprendendo a “não ver nem ouvir”, gera-se um pacto com um cliente de forma a não trair a confiança e a fidelidade, mesmo que estejamos a falar de situações de acesso à intimidade capazes de chocar alguma sensibilidade, como é contado neste livro. Depois há também um lado dos bastidores sobre o qual vale a pena pensar. É porque o funcionário não pode dar a entender que nem tudo está perfeito. Deve dissimular e esconder qualquer incidente ou imperfeição para recriar plenamente a sensação de deleite cultivada pelo cliente. É nesta linha que recordo um dos episódios mais curiosos na “arte da dissimulação”: numa noite, um grupo de hóspedes exigiu beber apenas, e só, de uma marca de vinho, previamente indicada ao restaurante do hotel. A noite foi-se alongando, e a necessidade de beber também. O problema é que o stock da marca tinha acabado e havia que dar a volta à situação… sem margem para grandes considerações, o responsável de departamento resolveu servir-se de um funil e verter vinho nas garrafas vazias da marca reservada, mas de um outro vinho disponível… e levá-las para o serviço de mesa. O mais interessante é que o grupo felicitou o serviço, considerando que até o vinho lhes soube cada vez melhor! Já pensaram que um hotel nunca fecha? E que nele se cruzam hóspedes sem qualquer vínculo, habitando paredes meias, tantas vezes exigindo anonimato, ou até assinando sob falsos nomes? É pelo facto de a exigência no serviço ser cada vez maior que talvez compreendamos o quanto de sincero e angustiante existe na confissão de um dos meus testemunhos, confessando-me que a cafeína era o melhor amigo do hoteleiro… porque não há tempo para parar e porque em mil e uma tarefas se desdobram para gerar satisfação, tantas vezes sem conhecerem reconhecimento.
O acordo ortográfico utilizado neste artigo foi definido pelo autor.