Os manuais escolares deviam «ser catalisadores de uma reflexão crítica sobre a União Europeia»
Os manuais escolares são um instrumento político poderoso, capazes de disseminar ideologias e tendências políticas e imbuí-las de legitimidade histórica (cf. Pingel, 2010). Foi com base nesta asserção que um grupo de investigadores da Faculdade de Psicologia e de Ciências da Educação da Universidade do Porto considerou que era política e socialmente relevante estudar o modo como a União Europeia é abordada nos manuais escolares portugueses (Piedade, Ribeiro, Loff, Neves & Menezes, 2018).
Embora considere uma amostra específica de manuais escolares (i.e., Inglês, História e Área de Integração) do ensino secundário e profissional, o estudo em questão apresenta alguns resultados que nos devem preocupar. Gostava de trazer para esta reflexão os dois seguintes:
- A abordagem instrumental que os manuais de Inglês fazem aos tópicos da União Europeia (e.g., oportunidades de mobilidade, de estudo e emprego) que negligencia as dimensões relativas ao sentido de pertença ou identidade “europeia”;
- E o predomínio de visões normativas e consensuais nos manuais de História sobre o que é e deve ser a União Europeia que não prioriza o desenvolvimento do pensamento crítico nos estudantes sobre as questões europeias.
Em síntese, estes resultados alertam-nos para dois aspetos essenciais que, no meu entender, não podem ser descurados na promoção de um sentimento de pertença europeu que assente em princípios ético-políticos como a igualdade, a liberdade e o pluralismo, e que, em conformidade, reduz as possibilidades de crescimento de interesses e forças políticas antidemocráticas no seio da União Europeia.
O primeiro aspeto refere-se à necessidade de se promover oportunidades reais de envolvimento emocional dos e das jovens com a União Europeia. Esta não pode ser algo abstrato e longínquo liderado por elites burocratas e agendas políticas desconhecidas. O segundo aspeto prende-se com a necessidade de se promover uma capacidade reflexiva que permita analisar criticamente a União Europeia e que, em consequência desse processo, contribua para a manutenção e robustecimento das suas estruturas democráticas. É preciso ir além de uma lógica proselitista de combate ao euroceticismo. A simples procura desse desígnio pode facilmente desembocar num europeísmo acrítico que pode ser tão ou mais pernicioso do que o próprio euroceticismo, ao não permitir a abertura política necessária para que possa ocorrer a discussão e o questionamento permanente da União Europeia.
Começo por me servir da ideia central e que dá o título à obra The Ethics of Belief de William Kingdon Clifford para argumentar que estamos perante a necessidade evidente e urgente de uma ética de cuidado com o que nos se apresenta como verdade para podermos fazer face, de uma forma mais consistente, informada e crítica, a um clima onde proliferam as fake news e as "pós-verdades". Apesar de a preocupação com este assunto emergir ciclicamente para nos chamar a atenção para a perigosidade de uma cegueira política (recordo as ideias da ‘banalidade do mal’ de Hannah Arendt, da ‘tentação do bem' de Tzvetan Todorov e, sob a capa literária, da 'novilíngua' em George Orwell), ele tem assumido uma importância que tem levado a comunidade política e científica a conferirem-lhe um protagonismo crescente. É exemplo disso o alerta feito pela Comissão Europeia, dando a entender que o pensamento crítico é uma das principais competências que a Educação para a Cidadania deve promover no sentido de capacitar os e as jovens (Education and Training Monitor 2018).
No campo académico, por sua vez, podemos aludir a estudos recentes que têm trabalhado, por exemplo, o conceito de 'choice blindness' (Strandberg et al., 2018) para argumentar que a formação das nossas opiniões e posições políticas são altamente vulneráveis à manipulação de agentes externos, o que nos leva a considerar que essa fragilidade pode ser intencionalmente explorada para influenciar determinados eventos políticos. De forma muito simplificada, os indivíduos tendem a arranjar razões e mesmo a confabular para justificar/defender a sua posição ou escolha, ou melhor, a posição ou escolha que os fizeram acreditar que era a sua e não a implantada por outros.
As pessoas tendem (Mercier e Sperber, 2011) a preocupar-se mais em ganhar as discussões do que em procurar a verdade. Por outro lado, o uso de uma linguagem moral ou emocional aumenta a difusão das mensagens políticas, assim como provoca a polarização das posições políticas (cf. Brady et al., 2017). Assim, devemos preocupar-nos muito seriamente em arranjar estratégias político-educativas que procurem fortalecer nos indivíduos a sua capacidade de pensar e agir com autonomia e liberdade para não corrermos o risco de nos transformarmos numa massa monolítica que segue sem questionar os que defendem e praticam atos que atentam contra os direitos e liberdades de outros e outras semelhantes.
Perante esta realidade, e considerando que a escola é um contexto inevitável e de peso muito significativo na promoção da cidadania nos jovens e futuros adultos (é na escola onde estão a maior parte do seu tempo ativo), penso que é absolutamente imperativo uma educação escolar que promova o pensamento crítico, o inconformismo, uma educação que não esteja confinada a um modelo centrado exclusivamente em estruturas e conteúdos curriculares que limitam o desenvolvimento de experiências educativas que colocam em confronto diferentes visões e opiniões do mundo. Isto é, que impedem os jovens de passarem por experiências educativas eminentemente políticas que contribuem para a afirmação das suas subjetividades e que lhes permitam constituir-se como cidadãos e cidadãs do aqui e agora (cf. Ribeiro, Neves & Menezes, 2014).
Para esse desígnio, é necessária uma educação escolar que, através de momentos organizados de interrogação e reflexão, contribua para uma verdadeira apropriação dos significados do que é viver em democracia e, consequentemente, de uma postura mais crítica e consciente da sociedade e do seu papel enquanto cidadãos e cidadãs (cf. Ribeiro, Neves & Menezes, 2017). Os manuais escolares, enquanto parte integrante da educação escolar e, sobretudo, enquanto instrumentos importantes de politização, deviam plasmar nos seus conteúdos essa mesma necessidade. Nomeadamente através de abordagens pedagógicas que fossem para além de uma visão estritamente consensual e normativa da União Europeia e que incluíssem cada vez mais conteúdos que pudessem servir de catalisadores para uma reflexão crítica da União Europeia nas escolas portuguesas (cf. Piedade, Ribeiro, Loff, Neves & Menezes, 2018).
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