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Uma semana pouco santa

Uma semana pouco santa

Nesta crónica, Paulo Guinote reage ao anunciado regresso à escola dos alunos do 11º e 12º anos, numa altura em que há ainda incertezas sobre os riscos de contágio.
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A maior parte da semana foi passada na expectativa das decisões que iriam ser tomadas em Conselho de Ministros. Quinta-feira, conheceram-se medidas que só pecaram por tardias no Ensino Básico, como a não realização de provas de aferição e provas finais do 9º ano e o não regresso a aulas presenciais.

As aulas presenciais no Básico, serão substituídas até final do ano lectivo por “ensino a distância” complementado com uma variante de telescola.

No caso do Ensino Secundário, a opção por recalendarizar os exames foi correcta, embora a sua marcação para apenas três semanas depois da data inicial me pareça pouco prudente. Pouco prudente porque o regresso a aulas presenciais para as disciplinas com exames no 11º e 12º ano não tem prazo definido e discordo do primeiro-ministro quando afirmou que mesmo que fosse só uma semana, valeria a pena para “esclarecer dúvidas”.

Aqui por casa existe uma professora que lecciona o 12º ano e uma aluna do 11º ano e não sei bem como me sentirei se forem obrigadas a regressar às respectivas escolas sem ter um grau razoável de certeza científica de que não correm riscos de contágio, podendo desenvolver ou não a doença ou ser apenas transmissoras assintomáticas.

Foram os encarregados de educação e professores que iniciaram informalmente o período de confinamento dos alunos, não esperando pelo prazo formal. E isso é apontado como uma das razões para a evolução relativamente favorável da covid-19 entre nós.

Porque não se trata apenas da concentração dos alunos nas salas de aula, mas também da sua deslocação para as (e das) escolas e dos próprios professores, com todos os riscos associados, se a ameaça de um segundo surto epidémico ainda existir.
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Prudência, insegurança e, claro, o medo são superiores a qualquer preocupação com exames ou calculismos políticos alheios. Teria sido mais adequado deixar a data dos exames em suspenso e não surgir, como aconteceu com o ministro da Educação num programa matinal da TVI, a afirmar que, se for necessário, se realizarão os referidos exames em pavilhões ou espaços abertos, sem ser como piada de fraco gosto. Porque demonstra pouca sensibilidade e escasso senso em quem fez parte da sua carreira como cientista.

Como encarregado de educação, senti-me desrespeitado, e como professor algo embaraçado. Em termos humanos, foi uma declaração desastrada, mas que não me espantou muito depois de o ver estender a mão e cumprimentar o primeiro-ministro após a conferência de imprensa de 5ª feira.

Nessa mesma 6ª feira, chegaram à comunicação social e às escolas alguns documentos sobre o que se pretende ser o modelo de ensino a distância para o Ensino Básico na ausência de aulas presenciais.

A tarefa não era fácil, há que o admitir. Mas é em momentos difíceis, em que é preciso tomar decisões e fazer opções que melhor se podem perceber as prioridades e concepções dos decisores (leia-se, governantes e seus grupos de apoio).

Há constatações que me deixam surpreendido na grelha de programação do #EstudoEmCasa; a começar pela ausência de qualquer segmento dedicado às Tecnologias de Informação e Comunicação, quando os alunos mais necessitam de desenvolver competências digitais.
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Assim como é muito claro que a componente artística e tecnológica do currículo é menorizada e reduzida a dois segmentos de 30 minutos dedicados aos 9 anos do Básico, sem qualquer diferenciação para a Educação Visual, a Educação Musical e a Educação Tecnológica.

Quando a “Sensibilidade Estética e Artística” é um dos pilares do Perfil dos Alunos à Saída da Escolaridade Obrigatória, percebe-se que não é de pequenino que se começa a regar seja o que for. O que nos pode levantar muitas dúvidas acerca da orientação de um futuro currículo para os tempos digitais.

Depois da menorização da Filosofia no Secundário e da salamização semestral da História e da Geografia no Básico, restam-nos poucas esperanças acerca de qualquer equilíbrio curricular. A tarefa não era simples, mas a qualidade das decisões e da governação afere-se melhor nestes contextos do que quando tudo é fácil.

Para além disso, percebi que a docência é mesmo encarada como uma espécie de vocação evangelizadora, inclusivamente na modalidade “porta-a-porta”.

No documento que apresenta os 9 princípios orientadores para acompanhamento dos alunos que recorrem ao #EstudoEmCasa determina-se (alíneas a) e b) do princípio 7) que no caso de “isolamento social” e “impossibilidade de haver conectividade” serão os professores titulares e diretores de turma que “assegurarão um contacto regular com os alunos pelos meio [sic] disponíveis, acompanhando o seu bem estar” e que “a cada aluno que recebe conteúdos exclusivamente pela televisão deve ser atribuído um professor mentor, responsável pelo estabelecimento de contacto [que] visa o acompanhamento das tarefas em curso, a verificação de que os alunos estão a assistir às emissões e que desenvolvem outras atividades propostas pela escola.”

E ao ler isto, sem ironia, percebi até que ponto na 6ª feira se estava a anunciar, se tudo isto é para levar a sério, uma nova modalidade de via sacra.

 

O acordo ortográfico utilizado neste artigo foi definido pelo autor.

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