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A sombra de Putin

A sombra de Putin

Num artigo premonitório de 2015*, o antigo embaixador José Cutileiro (1934-2020) explicava porque Putin era a principal ameaça à paz na Europa e questionava «vai voltar tudo a ser como dantes?»
12 min
O“czar russo” é hoje a principal ameaça à paz. Os países da OTAN mostram estar atentos, mas ninguém parece querer fazer-lhe frente.
 

Por outras palavras: “Vai voltar tudo a ser como era dantes?”


Assim formulada, a pergunta poderia parecer estranha à maioria das leitoras e leitores. De mémoire d’homme Portugal é terra de paz. Quem não seja muito novo lembrar-se-á das guerras coloniais de 1961 a 1974, mas essas guerras, embora matando e estropiando muitos compatriotas nossos, fizeram-se longe; não se passaram no que são a terra, o ar e o mar portugueses. Mesmo a última guerra europeia em que Portugal participou, entre 1916 e 1918, conhecida entre nós por Grande Guerra ou por Guerra de 14, tampouco se passou em Portugal e no Algarve de aquém-mar (como se chamaria ao nosso rectângulo no século XVI): tropas portuguesas bateram-se em Angola, Moçambique, França, mas não cá. Durante a Segunda Guerra Mundial – de que, com o aumento da esperança de vida, ainda muita gente se lembra – Timor foi ocupado pelos japoneses e ninguém lá foi mandado por Lisboa; o Reino Unido, primeiro, e os Estados Unidos, depois, obtiveram de Salazar facilidades nos Açores, sendo estabelecida a base aérea das Lajes, na Ilha Terceira – mas mesmo nessa altura, ao contrário do que se receou, os alemães não atacaram e não chegou a haver guerra (o receio era real: em cidades dos Açores e do Continente foram coladas às vidraças das janelas tiras de papel destinadas a limitar estilhaços em caso de bombardeamento aéreo). Assim, com alguns salpicos brutais vindos de fora, a memória da gente portuguesa viva, tal como era a dos pais e avós desta, é uma memória de paz: de ditadura para alguns, de pobreza para muitos mas, para todos, de paz – ou pelo menos de paz pelas nossas bandas.

A memória da gente portuguesa viva, tal como era a dos pais e avós desta, é uma memória de paz: de ditadura para alguns, de pobreza para muitos mas, para todos, de paz – ou pelo menos de paz pelas nossas bandas

Durante muito tempo não se passou o mesmo em outras partes da Europa. As duas grandes guerras mundiais da primeira metade do século XX, provocadas pela Europa e nela começadas, foram em grande parte decididas, com muito morticínio, em terras europeias – na frente Leste (aí antes do resto, dando folga aos bolcheviques que haviam derrubado o Czar) e nas trincheiras da Flandres na primeira; de Londres a Estalinegrado na segunda – deixando na vitória a Europa sobre-representada no Conselho de Segurança das Nações Unidas (França e Reino Unido, em breve despojados de colónias) ombreando formalmente com China, Estados Unidos e Rússia, mas muito aquém do poder europeu sobre o mundo durante quase meio milénio que acabara realmente no fim de 1918 com a emergência dos Estados Unidos da América como primeira super-potência contemporânea.
Entre 1945 e o fim dos anos 80 a União Soviética seria a segunda. Depois esta implodiu, acarretando a liquidação do comunismo como via para procura da felicidade – salvo nos bizarros e teimosos quistos da Coreia do Norte e de Cuba – e a China emergiu como a grande rival mundial dos Estados Unidos, estes próprios, nos últimos anos, tolhidos por governação incapaz de defender bem os interesses do país devido à paralisia criada pelo confronto entre a Casa Branca de Barack Obama e o Congresso dominado pelo Partido Republicano. Entendidos em política norte-americana dizem que nunca, desde o começo do século XX, as divisões no Senado e na Câmara dos Representantes foram determinadas, como são desde a primeira tomada de posse de Obama, apenas por filiação democrata ou republicana. Havia sempre causas, algumas importantes, em que interesses partilhados, a despeito da linha divisória política, obtinham progresso; hoje tais interesses nunca levam a melhor à obediência partidária. (Instância recente foi a incapacidade de Washington de lidar com a criação pela China de um grande banco asiático para desenvolvimento do continente, que rivalizará com as instituições de Bretton Woods, dominada pelos Estados Unidos – depois de o Congresso republicano se opor há anos à vontade de Obama de deixar dar nelas mais voz à China e a outras economias asiáticas – e de que Reino Unido, Alemanha, França e Itália decidiram ser membros fundadores, contra a vontade expressa de Washington.)

Movimentações a Leste

No mundo bipolar da Guerra Fria não só Portugal, mas também todo o resto da Europa Ocidental estiveram em paz. Houve, por assim dizer, furúnculos localizados e persistentes de violência esporádica – País Basco, Irlanda do Norte – mas estes nunca irradiaram para o resto de Espanha ou para o sul da França nem para a República da Irlanda, respectivamente. Na Europa Oriental, sob dominação soviética, as coisas não foram tão simples e, para manter a ordem pública e o sistema filosófico-político em vigor, foram precisas, para além de opressão diária constante, intervenções militares soviéticas consequentes: na Hungria em 1956; na Checoslováquia em 1968. A Polónia foi osso mais ruim de roer: depois de, ao longo de décadas, estrebuchos anteriores serem dominados pelas autoridades alinhadas com Moscovo, o electricista de Gdansk e a sua gente acabaram por levar a banca à glória, já quando na União Soviética Gorbachev se propunha reformar o comunismo por dentro. O resto é história, com Ieltsin a depor Gorbachev e a destruir o comunismo irreformável na Rússia. Passar abruptamente de uma dieta de Lenine para uma dieta de Hayek não seria fácil para qualquer organismo, mas Ieltsin teve a coragem de o encomendar ao jovem Yegor Gaidar, que, Deus lhe tenha a alma em descanso, deu conta do recado. Entretanto, Lech Walesa tornou-se Presidente da Polónia, inteira e soberana.

No mundo bipolar da Guerra Fria não só Portugal, mas também todo o resto da Europa Ocidental estiveram em paz.

Num texto sobre o risco de nova grande guerra na Europa não se pode deixar de recordar a importância especial da Polónia, potência antiga entalada entre a Prússia e a Rússia (depois entre Alemanha e URSS) que erros seus e má fortuna fizeram desaparecer – por junto, durante quase um século – do mapa da Europa, cuja cavalaria atacou a sabre os tanques invasores alemães em 1939, cuja elite militar, mais de 20.000 oficiais, foi em 1940 fuzilada na floresta de Katyn por ordem de Estaline, havendo Moscovo atribuído a atrocidade aos alemães de Hitler até Gorbachev – em exercício de glasnost impensável no Kremlin de hoje – decidir que a verdade fosse contada.

No fim da guerra de 1939-45 a Polónia viu reguladas a contento contas antigas com a Alemanha, com ganhos de território e tudo. No caso da Rússia, passou-se o contrário. À já longa fieira de agravos na sua história de altos e baixos, tantos que Jan Kochanowski, grande poeta polaco, chamou ao país “o pátio de recreio de Deus” (designação usada por Norman Davies para título da sua magistral história da Polónia), veio acrescentar-se nessa altura o poder omnipresente e dogmático de Moscovo (os polacos – como De Gaulle – mais lúcidos que muitos outros, viram sempre na URSS a Rússia) forçando pertença obrigatória ao Pacto de Varsóvia e ao COMECON, exercendo droit de regard sobre a política interna. Esse domínio, mesmo nas alturas de maior afirmação, foi recebido com ambiguidades profundamente sentidas: apparatchiks aparentemente devotados a Moscovo, quando mais tarde tiveram de responder pelos seus actos, justificaram-se dizendo que haviam agido assim para proteger a Polónia de ingerência directa russa, civil e militar. Eram, como todos os polacos, primeiro patriotas, segundo católicos e só muito depois comunistas (ou, agora, democratas).

No fim da guerra de 1939-45 a Polónia viu reguladas a contento contas antigas com a Alemanha, com ganhos de território e tudo. No caso da Rússia, passou-se o contrário.

Em 1987, era eu director-geral dos Negócios Políticos no Ministério dos Negócios Estrangeiros em Lisboa, recebi para consultas em duas semanas seguidas os meus homólogos  polaco e búlgaro, altos funcionários dos respectivos países, cada um acompanhado por dois subalternos. Das duas vezes, tratámos do que tínhamos a tratar no Largo do Rilvas e levei-os com os seus a almoçar ao Ritz. Aí, sem agenda, falámos disto e daquilo, de coisas búlgaras e portuguesas; polacas e portuguesas. Lembro-me de ter pensado a seguir que nessas duas semanas eu recebera convidados que viviam em prisões. Mas havia uma diferença capital: os da Bulgária eram carcereiros; os da Polónia eram prisioneiros.

Devido em grande parte à sagacidade de Angela Merkel, o presidente actual do Conselho Europeu é um homem político polaco que fora, até se mudar para Bruxelas, primeiro-ministro do seu país. É barbacã oportuna, com Vladimir Putin perpetuamente no Kremlin, possuído por engodo do poder passado – real e imaginário – da Mãe Rússia/União Soviética, de raiva humilhada por o que julga terem sido e continuarem a ser arrogâncias ocidentais deliberadas contra a Rússia e dotado de desenvoltura pré-moderna ao tratar quer com os seus compatriotas, cujo juízo influencia por catadupas diárias de mentiras – o controle dos meios de comunicação social é quase completo; obrigações de veracidade não existem – quer com potências estrangeiras que tem vindo a pôr à prova com resultados reconfortantes para ele, desde a invasão da Geórgia em 2008 até inspirar e atiçar o separatismo no Leste da Ucrânia com, pelo meio, absorção ilegal da Crimeia há pouco mais de um ano. Toda a gente sabe que ele mente desaforadamente e toda a gente lhe continua a falar; bate onde não deveria bater e não lhe batem de volta. Apesar da grande baixa de preço do petróleo (em jeito de país subdesenvolvido, da Rússia exportam-se matérias-primas – petróleo e gás – e muito pouco mais se produz) e de efeitos progressivamente mais nefastos de sanções financeiras, a máquina de propaganda do Kremlin mantém Vladimir Vladimirovitch popular entre os seus, com números em sondagens de opinião incomparavelmente mais altos do que aqueles de que goza qualquer dirigente da União Europeia no seu próprio país.

Manter – ou agravar, se for caso disso – o regime de sanções parece ser a única maneira de que dispomos sem recorrer à força ou à ameaça do uso da força para levar o novo Czar, senão a desfazer completamente o rol de crimes e desmandos contra a legalidade internacional que vem cometendo (seria esperar demasiado) pelo menos a não agredir mais e a recuar onde encontre maneira de salvar a face. E, com sorte, talvez os incómodos impostos por sanções acabem por suscitar desafeição no povo e traição na corte.

Putin tem vindo a pôr à prova as potências estrangeiras com resultados reconfortantes para ele, desde a invasão da Geórgia em 2008 até inspirar e atiçar o separatismo no Leste da Ucrânia com, pelo meio, absorção ilegal da Crimeia há pouco mais de um ano
Planos de contingência

Mas tal estratégia ocidental, que parece evidente, não o é para toda a gente – gente que não inclui apenas Putin e os seus seguidores. Chegar ao modesto leque de sanções europeias a que se chegou já foi o cabo dos trabalhos. Não é na Rússia que os bilionários russos gastam o seu dinheiro – se o fizessem a economia russa estaria hoje mais perto de uma economia desenvolvida e diversificada e os russos não precisariam de delírios de grandeza para se sentirem bem neste mundo. As praças financeiras europeias, o mercado imobiliário topo de gama, as indústrias do luxo, desde os barcos de recreio e os carros de colecção até aos perfumes, passando pelos grandes lapidadores de diamantes e os grandes costureiros, assustam-se quando imaginam que essa bela galinha de ovos de ouro possa passar a ir pô-los alhures. Como agora muitos se têm queixado, as sanções custam também a quem as impõe. Além disso, desde o tempo da Guerra Fria, sobretudo na Alemanha e em França, sentiu-se sempre uma veia pró-russa – que em França fazia pendant com veia antiamericana histórica (o antiamericanismo alemão é mais recente e foi exacerbado por façanhas da National Security Agency) – e a tentação do entendimento a leste da Alemanha revelou-se bem no projecto de pipeline sob o Báltico que Schroeder acordou à socapa com Putin, nas costas dos polacos, para indignação destes, pois o Pacto Germano-Soviético de 1939 nunca foi esquecido naquela parte do mundo. Angela Merkel, quando chegou à Chancelaria não desmanchou esse arranjo, mas agora, honra lhe seja feita, tem sido ela a impor à Alemanha participação decidida e liderante na campanha de sanções contra Moscovo.

É um estado de coisas perigoso. Nenhum governo europeu terá neste momento planos para atacar a Rússia, mas alguns deles terão já previsto contingências se forem eles a ser atacados. A OTAN, bem dirigida, tem-se portado à altura em exercícios e em preparação, ajudando a dar confiança aos Estados Bálticos. Do lado de lá não é tão simples. Há anos que a máquina de propaganda do Kremlin apresenta ao povo russo o Ocidente como um inimigo malévolo. E, a nível oficial, há sinais mais perturbadores ainda. A 23 de Março, o embaixador russo em Copenhaga disse a um jornal local que se a Dinamarca integrasse o programa de defesa antimíssil da OTAN, os navios de guerra dinamarqueses passariam a ser alvos para armas nucleares russas.

(Muitos têm sustentado, incluindo o redactor destas linhas, que durante a Guerra Fria a posse de arsenais nucleares pelos Estados Unidos e a União Soviética, em vez de exacerbar os riscos de guerra entre as grandes potências os tornou praticamente inexistentes. Mas a extrapolação para os dias de hoje não é segura. No Kremlin daquele tempo a fieira controlando e comandando o uso eventual da arma atómica incluía vários altos responsáveis, o que prevenia insensatezes e enganos. Hoje, perigosamente, uma eventual decisão fatídica parece estar mais à mercê dos caprichos de um só homem.)

Hoje, perigosamente, uma eventual decisão fatídica parece estar mais à mercê dos caprichos de um só homem

Constitui tudo isto um risco de guerra? Talvez não. A atitude belicosa de Putin já levou à decisão de Letónia, Lituânia, Noruega, Países Baixos, Polónia e Roménia de aumentarem as suas contribuições nacionais para a OTAN, e na área da defesa os europeus em geral ouviram sinos tocar a rebate (a Lituânia decretou o serviço militar obrigatório). O Kremlin talvez tenha entendido que, por exemplo, alegadas medidas de protecção a minorias russas nos Estados Bálticos encontrariam deste lado respostas decididas.

Mas há outra questão, a meu ver mais inquietante ainda. Nas últimas páginas de «The Invention of Peace», excelente livro publicado em 2000 – antes do 9/11, da megalomania paranóide de Putin, das barbaridades anacrónicas do Califado, ameaçarem do exterior a pasmaceira europeia – o historiador militar inglês Michael Howard observou que as sociedades ocidentais poderão agora ser todas pacificamente burguesas mas que a sociedade burguesa é aborrecida (boring). Lembra que Lamartine explicava ter sido o aborrecimento que no Paris de1848 destruíra a estimável monarquia de Luís Filipe. Os historiadores nem sempre dão por ele; a vasta maioria da humanidade não teve tempo livre que chegasse para o experimentar, labutando do nascer ao pôr-do-sol, do berço à cova. Mas a Igreja medieval sabia-o tão bem que fez da preguiça um dos sete pecados mortais.

Howard receava extremismos internos que estão agora connosco. Mas ameaças exteriores levantam outro problema. E se os europeus não quiserem sequer bater-se, preferindo pazes negociadas, por vergonhosas que sejam as condições? É risco a considerar hoje, tanto mais que, lembra jurista inglês do século XIX em epígrafe de The Invention of Peace, «A guerra parece ser tão antiga quanto a humanidade mas a paz é uma invenção moderna». A qual poderá, contra-intuitivamente, nem sempre dar resultado preferível ao da alternativa antiga.

Por outras palavras: para garantir paz teremos às vezes de ir à guerra.

* Este artigo foi originalmente publicado na «Revista XXI Ter Opinião» de Julho-Dezembro de 2015

 

O acordo ortográfico utilizado neste artigo foi definido pelo autor

Portuguese, Portugal