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A-sociedade-e-a-mobilidade-no-seculo XXI

A sociedade e a mobilidade no século XXI

Artigo de opinião de Sérgio Batista, investigador pós-doutoral em sistemas de transporte multi-modais na New York University Abu Dhabi.
7 min

Nos dias de hoje assistimos por todo o mundo a um grande fluxo de migração de pessoas para as regiões metropolitanas das grandes cidades. A ambição de melhores empregos ou a acessibilidade a melhores serviços são dos principais factores para justificar estes movimentos de massas populacionais. Este problema é bem conhecido em Portugal, onde durante as últimas décadas temos observado uma desertificação do interior do país e um grande fluxo migratório da população para as regiões metropolitanas de Lisboa e do Porto.

Estamos perante um problema estrutural na sociedade do século XXI, no que toca a questões ligadas às suas necessidades de mobilidade. Por um lado, temos populações mais envelhecidas num interior desertificado, que têm necessidades específicas de mobilidade para poderem aceder a serviços. Por outro lado, os sistemas de transportes públicos e infra-estruturas nas grandes cidades não conseguem dar resposta a aumentos abruptos da procura, levando ao seu congestionamento. O aumento da congestão nas grandes metrópoles traz consigo não só problemas económicos, mas também de saúde pública devido aos aumentos dos níveis de ruído e poluição. Este artigo foca-se neste segundo ponto.

A questão central é a de como podemos encontrar soluções eficientes que nos permitam mitigar este problema da mobilidade no século XXI, em grandes áreas metropolitanas.

A curto prazo, os simuladores de tráfego podem ser utilizados para investigar como uma rede de transportes multi-modal de uma área metropolitana responde a diferentes níveis de procura. Neste contexto, podemos modelar soluções alternativas com o objectivo de aumentar a eficiência da rede de transportes. Podemos, por exemplo, verificar como todo o sistema responde à inclusão de uma nova linha de transportes públicos. Ou, por outro lado, como podemos incentivar os utilizadores de uma rede a escolherem o transporte público em detrimento da viatura particular, de forma a reduzir os níveis de congestão em pontos chave da cidade.

As ferramentas de simulação de tráfego existentes baseiam-se em modelos microscópicos de tráfego, onde as trajectórias de cada veículo são modeladas individualmente ao longo da rede urbana. Contudo, existem diversos desafios para implementar este tipo de modelos em grandes regiões metropolitanas. Este tipo de modelos microscópicos de tráfego requer não só um enorme trabalho de calibração do cenário de simulação, mas também elevados recursos computacionais. Neste contexto, surgiu a ideia na comunidade científica de uma modelação agregada do tráfego, que começou a ganhar mais força a partir de 2007. A ideia subjacente a este tipo de modelação é dividir a rede urbana num conjunto de regiões onde as condições de tráfego são aproximadamente homogéneas. Por outras palavras, onde os veículos circulam todos a aproximadamente à mesma velocidade.

Estamos numa era onde muito se fala dos automóveis conectados e autónomos, assim como da mobilidade eléctrica. No entanto, eu acredito que o futuro da mobilidade de massas passa não só pelo transporte partilhado mas também pela incitação ao uso do transporte público e da bicicleta.

As diferentes condições de tráfego são reguladas pelo Diagrama Macroscópico Fundamental (DMF). O DMF é uma relação existente entre o fluxo médio e a acumulação total de veículos que circulam numa dada região e num dado instante de tempo. O tráfego é modelado como trocas de fluxos entre estas regiões (também designados de reservatórios). Uma analogia simples para percebermos melhor o funcionamento destes modelos é imaginarmos um sistema constituído por vários tanques, todos ligados entre si. Este sistema encontra-se preenchido por um fluido que circula entre os tanques. As trocas do fluido entre os tanques representam a dinâmica do tráfego na rede. Quando a quantidade de fluido que entra num tanque for superior à sua capacidade de escoamento, ele começa a encher. Quando o tanque começa a ficar relativamente cheio, este fenómeno pode bloquear a passagem do fluído entre outros tanques.

Na nossa analogia, isto representa uma região que começou a congestionar, propagando-se posteriormente às regiões vizinhas. Esta dinâmica de enchimento e vazamento dos tanques representa a forma como o tráfego se propaga na rede. Este tipo de modelos tem sido alvo de diversos estudos e as suas potenciais aplicações são imensas, mas a isso já lá iremos.

Os modelos de tráfego requerem também a repartição dos utilizadores pelos diferentes modos de transporte e caminhos alternativos. Enquanto este desafio aparenta ser de fácil abordagem, não nos podemos esquecer que cada utilizador da rede possui comportamentos, necessidades, hábitos e preferências diferentes entre si e que devemos ter em consideração no nosso modelo. A heterogeneidade dos utilizadores traz-nos uma complexidade adicional.

Nos meus trabalhos de investigação desenvolvo modelos de afectação dinâmica de utilizadores em redes compostas por regiões, onde o tráfego é modelado segundo esta visão agregada. Um dos grandes desafios é precisamente integrar os comportamentos e hábitos de utilizadores pelos caminhos alternativos e modos de transporte. As escolhas dos utilizadores influenciam significativamente a performance de uma rede de transportes, ditando as zonas que serão mais congestionadas na cidade. Iniciei os meus trabalhos de investigação nesta área e aplicados apenas à modelação das escolhas de utilizadores pelo caminho alternativo durante o meu doutoramento na Universidade de Lyon, em França.

O meu trabalho de doutoramento enquadra-se num projecto europeu financiado pelo European Research Council, denominado de MAGnUM e supervisionado por Ludovic Leclercq. Actualmente, desenvolvo o meu trabalho de investigação pós-doutoral na Universidade de Nova Iorque e no campus de Abu Dhabi, nos Emirados Árabes Unidos, onde investigo a extensão destes modelos de afectação dinâmica de utilizadores em redes multi-modais agregadas.

Esta solução traria um aumento da fiabilidade dos tempos de percurso dos utilizadores e uma diminuição tanto das emissões de dióxido de carbono como dos níveis de congestionamento.

O potencial de aplicação deste tipo de ferramenta de modelação agregada do tráfego é imenso. Tomemos como exemplo as regiões metropolitanas de Lisboa e do Porto, para as quais iremos enumerar alguns casos concretos de aplicação.

Durante os dias de semana, existem dois grandes aumentos da procura, durante a manhã e ao fim da tarde, para aceder aos centros das grandes cidades. O pico da manhã surge associado a pessoas que se deslocam para o seu emprego. Enquanto o pico do fim de tarde representa os trajectos do local de trabalho dos utilizadores para as suas casas.

Em Portugal, os utilizadores ainda dão uma grande preferência à viatura particular em detrimento dos serviços de transporte público. No entanto, suponhamos que pretendemos mudar este paradigma e pretendemos construir estações multi-modais nas regiões metropolitanas de Lisboa e do Porto. Isto é, locais onde os utilizadores possam estacionar a sua viatura particular e apanhar um transporte público para completar a sua viagem até ao seu destino dentro da cidade.

Este tipo de simulação permite-nos investigar e ter uma ideia inicial de onde devem ser localizadas estas estações multi-modais por forma a aumentar o desempenho da rede e diminuir os níveis trânsito nos acessos às duas cidades.

Esta solução traria um aumento da fiabilidade dos tempos de percurso dos utilizadores e uma diminuição tanto das emissões de dióxido de carbono como dos níveis de congestionamento.

Um outro exemplo de aplicação poderá ser a investigação de políticas de incentivo, que levem os utilizadores a mudarem a sua escolha de modo de transporte, da viatura particular para o transporte público. Um caso de estudo muito interessante seria o estudo da sensibilidade do utilizador ao preço do bilhete de transporte público.

A modelação agregada do tráfego permite-nos de uma forma simples ter uma ideia do preço do bilhete de transporte que nos levaria à melhor repartição multi-modal dos utilizadores em termos da eficiência de funcionamento da rede de transportes e diminuição das emissões de dióxido de carbono.

Podemos também pensar num outro exemplo de aplicação em termos de controlo de perímetro, que consiste na interdição do acesso de carros aos centros da cidade quando o nível de tráfego ultrapassa um dado limite. Em geral, este limite é definido pelas condições críticas de funcionamento da rede, isto é, o limite entre os estados fluído e congestionados.

A simulação agregada do tráfego permite-nos estudar e testar diversas estratégias de aplicação de controlo por forma a afectar uma fracção dos utilizadores por caminhos alternativos até aos seus destinos, reduzindo os níveis de congestão nos centros das cidades de Lisboa e do Porto.

Actualmente estamos numa era onde muito se fala dos automóveis conectados e autónomos, assim como da mobilidade eléctrica. No entanto, eu acredito que o futuro da mobilidade de massas passa não só pelo transporte partilhado mas também pela incitação ao uso do transporte público e da bicicleta.

A simulação de sistemas de transportes permite-nos não só investigar como a rede responde a circunstâncias diversas, mas também compreender os padrões de mobilidade dos utilizadores e melhorar a eficiência do sistema de transportes. As questões e necessidades de mobilidade são um problema da sociedade actual, e em Portugal urge de facto melhorar as condições para o uso do transporte multi-modal. Os ganhos em termos económicos, ambientais e de saúde pública seriam significativos.

Imagem: «spaghetti junction» em Birmingham, no Reino Unido. Foto de _MV_ no Unsplash.

Sérgio Batista é investigador pós-doutoral em sistemas de transporte multi-modais na New York University Abu Dhabi, nos Emirados Árabes Unidos. Consulte o seu perfil no GPS-Global Portuguese Scientists.

O acordo ortográfico utilizado neste artigo foi definido pelo autor

Portuguese, Portugal