Rescaldo da Feira
Todos os anos, desde há 86 anos para cá, que decorre no Parque Eduardo VII a Feira do Livro de Lisboa.
Todos os anos, desde há 86 anos para cá, livreiros e editores, autores e transeuntes, chefs, garçons e garçonettes, pedintes e pedinchas, entre tantos outros, percorrem os passeios que se estendem para cima do Marquês, carregados de sacos, livros, farturas e revistas. Mais modestamente, nos últimos três anos, juntei-me às hostes de livreiros furiosos que pululam os corredores de pavilhões. Sim, é pavilhões que se diz. Barracas, barraquinhas, stands e estaminés, ficam para outras feiras de menor gabarito e intelectualidade.
Logo no primeiro ano, o de 2014, tive de me habituar a este estranho modo de trabalhar. Por um lado é uma feira. Por outro lado não há ciganas, pregões nem carrinhos de choque. É um lugar de conhecimento, sabedoria e intelectualidade. Mas o que não faltam são farturas, algodões doce, pipocas e ginjinhas. Os críticos literários abundam. No entanto, poucos deles leram o que quer que seja. A feira é um lugar de contrastes e de extremos. Das chuvas diluvianas que ameaçam os stocks precários dos alfarrabistas aos dias de calor tropical onde só se aguenta em baixo dos chuveirinhos da praça Leya.
No meio destes contrastes e confusões estamos nós. Ou melhor, estou eu. Porque, ao chegar à feira, cada um sabe de si. Estou eu, de cócoras no pavilhão C05, ao cuidado da Fundação Francisco Manuel dos Santos. Morro de calor a arrumar o infindável stock de Ruínas, Arigatos e vinte uns (a numeração romana infelizmente não me permite o plural). São 9h da manhã e a feira ainda não abriu.
Neste ano, o de 2016, os sábios conselheiros, consultores e gestores da venda livreira optaram por instalar a Fundação num pavilhão aberto. A ideia é a de mostrar ao público que estamos abertos ao conhecimento, à troca de ideias e de opiniões. Ao debate. Queremos transmitir a nossa convicção de que somos uma Fundação para todos e não apenas para alguns. Qualquer um pode entrar, mexer, desarrumar e debater. O Bernardo recebe, o Bernardo arruma, o Bernardo atura. E se com isso aumentarmos as vendas em 50%, melhor ainda. Todos os dias há debates, lançamentos e iniciativas. De um pavilhão que tínhamos saqueado à Relógio d’Água em 2014, conquistámos o segundo em 2015. Expandimos para uma praça, a Azul, e anexámos um café, o Jeronymo. Colonizámos o DN com vouchers e anúncios. Invadimos a TSF com debates e conferências. A expansão passivo-agressiva da Fundação só se dará por completa quando todos os portugueses, ou pelo menos aqueles que frequentam a Feira do Livro, forem à Leya perguntar por nós e não o contrário. Mas divago. Naquela manhã bem suada, em que estou de cócoras a arrumar stock nas prateleiras bamboleantes instaladas pela APEL, surgem os primeiros empecilhos do dia. “Já está aberto?” “Não, peço desculpa, só ao meio dia e meia.” “Ai que parvoíce. Mas não posso ir vendo já?” “Esteja à vontade minha senhora.” “Vocês não tinham um qualquer sobre a morte?” “Temos sim, é este aqui, da Maria Filomena Mónica.” “Deixe-me lá levar já... Não me vai fazer voltar cá outra vez pois não?”. Sai essa e entra uma nova. “Economia, Moral e Política tem? Diz que é do Vítor Beto” “Bento, minha senhora. O autor é o Vítor Bento.” “Não, não. Aqui diz Beto. Vítor Beto.”
Ele há clientes mais chatos, outros menos. Ele há clientes que acompanham com dedicação as actividades da Fundação, outros menos. Há clientes que vêm à “Fundação Pingo Doce”, só para ir buscar aquela coisa que oferecem no DN. Outros vão só chatear o juízo do Bernardo cansado com perguntas imbecis sobre o Alentejo do Raposo. Ele há de tudo. E quando estou de cócoras a arrumar stock com 30 graus lá fora, estores semi-fechados e a fazer conversa de cácárácá sobre os horários da feira, tomo uma decisão. Há que redigir, com urgência e cuidado, um manual de sobrevivência à Feira do Livro. No meu coração, já tomei a mesma decisão que tomo todos os dias ao sair da feira. A mesma decisão que abandono todos os dias ao chegar de manhã. Para o ano não venho. A fava para as velhas e para os velhos dos vouchers e das promoções. Se algum tontinho me volta a pedir um catálogo, um marcador ou indicações para a concorrência, dou três berros e piro-me daqui.
Mas nunca dou. Nem nunca piro. E para o ano que vem provavelmente cá estarei outra vez. É por isso que decido, encorajado por toda a intelectualidade que me rodeia, que é imperativo avisar a descendência. É da maior importância alertar os sucedâneos de Bernardos e de Gonçalos que para o ano venderão as ilustres obras da Fundação. Há que elucidar os futuros vendedores para os perigos que decorrem de aturar a clientela da Feira do Livro. Mesmo que esses vendedores sejamos nós próprios. E é por isso que aproveito esta manhã calma de calor para deixar escrito um pequeno Manual de Sobrevivência à Feira do Livro. Espero que este documento seja suficiente para dissuadir estóicos actos de voluntarismo na aceitação de futuras feiras. Mas se isso não acontecer, ao menos fui avisado.
Faço uma pausa na escrita. Tenho de atender um dos habitués do pavilhão. O reformado filósofo que todos os dias me traz um voucher do Diário de Notícias. Todo o santo dia leva consigo um livro que não vai ler. Muito simpático de cachimbo na mão e óculos escuros por cima dos de leitura. Fala pelos cotovelos sobre o Junqueiro, o Fidel Castro e o Charles Chaplin. Mistura ideias, dizeres e ditados terminando sempre com a mesma tirada: “Enfim, não aprenderam nada comigo. Mas ficam com qualquer coisa. Para pensaaaaar.” E dá-me toques furiosos no ombro. “Como dizia o Fidel Castro, não peço que creias, mas que leias.” Mais toques. “Para pensaaaar...” Volta e meia declara que volta amanhã. “Se estiver vivo...“ Palavras do próprio.
Vamos então ao tal manual.
A primeira e mais importante regra de sobrevivência é simples. Imita o Coronel Tapioca. Nos fundos do balcão deverás esconder todos os essenciais à sobrevivência no deserto. Camisola para a noite, calções para o calor. Águas com fartura e farturas sem água. Carregadores para o telemóvel. Lancheira com farnel. Rolos de papel. De cozinha e higiénico. Sacos do lixo e dos normais. Um livrinho e alguns jornais. Bancos, cadeiras e mais uma ou duas lancheiras. Economato recheado. Um leque ou um ar condicionado. Prepara-te para tudo, porque é isso mesmo que vai acontecer.
A segunda regra é menos dramática, mas não menos importante. Foge a sete pés dos chatos e dos melgas. Todos os dias há um novo. Ora querem borlas ora querem atenção. Uns são autores distintos, outros são bestuntos. Outros são só parvos e ingramáveis. Vêm em todas as espécies e feitios. Chatos com dificuldades na fala. Velhas com dificuldades motoras. Bêbados e drógados que acumulam ambas as categorias. Quanto mais rapidamente os identificardes, mais rapidamente os podereis evitar. “Para pensaaaar...”
A regra que se segue também se prende com pessoas. Entre tantos chatos e chatinhos há uma espécie semi-independente pela qual nutro especial afecto. Os tocs, as gráficas, os autores sem obra e os demais solicitadores. Tendem a apresentar-se com um ar profissional. Geralmente investidos de autoridade. Chamam pelo supervisor, pelo chefe ou pelo responsável. Protegidos pelos prospectos e cartões-de-visita, fazem-se conhecer pelo seu ofício. Propõem reuniões e apresentações. Coitados... O truque é responder com variações de “Peço desculpa, eu sou apenas um mero funcionário.” “Tente contactar directamente a Fundação.” “Eu não tenho poder de decisão.”
A enumeração talvez não seja a forma ideal de preparar os Bernardos e os Gonçalos para as feiras do futuro. De todas as regras que me ocorrem, só uma se mantém presente. A paciência. Haja paciência. E muita! Paciência para os insuportáveis autores dos temas mais eruditos, dos parlamentos e das políticas externas. Paciência para os clientes que querem trocar os livrinhos que estão meios dobradinhos. Paciência para os chefes e para as chefas, que adoramos e glorificamos, mas que nos trazem novas e espectaculares ideias que nos enchem de trabalho. Haja paciência para decorar a praça, dia sim, dia sim. Só para a despir passada uma hora, dia sim, dia sim. Haja paciência para montar os chapéus. Haja paciência para desmontar os chapéus. Haja paciência para segurar os chapéus, que o ministro ainda leva com eles na cabeça. Haja muita, muita paciência para chegar às nove. Paciência para arrumar stock. Quando está sol ou quando chove. Paciência para os Alfredos, para as Ritas e para Susanas. Haja paciência para os chatos e para as suas bezanas. Haja muita paciência para aturar tudo e ficar bem-disposto. Continuar ali firme, sem sair do posto. Haja paciência para a Hora H e para fazer contas na caixa má. E por fim, haja paciência para sair à uma. Porque para fechar a caixa, é que já não há nenhuma.
A paciência e a pachorra são palavras de ordem na Feira do Livro. A boa vontade e a simpatia vêm logo a seguir. Mas a Feira do Livro, tal como o irredutível gaulês, resiste ainda e sempre ao invasor. Resiste ao futebol, quando este se instala lá em baixo na rotunda. Resiste aos santos e às marchas. Resiste à chuva e ao calor. Mas nós, os livreiros, precisamos de ajuda. Pelo menos aqueles que, como eu, ainda não caíram no caldeirão da intelectualidade. Também nós precisamos de uma poção mágica. Não era minha intenção acabar com uma petição. Mas as palavras até aqui me trouxeram. Por isso o melhor é esquecer o manual de sobrevivência e ir directos ao assunto. Querem-nos cá para o ano? Dêem-nos café. E um aumento também ajuda... “Para pensaaaar...”
Muito obrigado aos meus companheiros de Feira, Ana Neves, Gonçalo Magalhães Carvalho e Duarte Vaz-Pinto.
O acordo ortográfico utilizado neste artigo foi definido pelo autor