A
A
Religiao-um-ponto-de-acesso-a-modernidade-da-sociedade-portuguesa

Religião – um ponto de acesso à modernidade da sociedade portuguesa

Artigo de Alfredo Teixeira, o autor do ensaio «Religião na sociedade portuguesa».
4 min

Depois dos discursos acerca do «fim da religião», entre as teses díspares sobre a (des)secularização, é necessário retomar a ideia de que compreender a religião é um passo necessário para conhecer as sociedades. Este ponto de partida é importante, depois de tantos oráculos acerca da privatização da religião. A paisagem religiosa é o lugar de muitas das dinâmicas que caraterizam a modernidade portuguesa, entre persistências e mudanças.

O século XX português foi ainda marcado pelas estruturas da religiosidade tradicional, contexto em que as imagens e as narrativas do Deus cristão sofreram moldagens diversas, na plasticidade própria de um «Deus da nossa terra». Trata-se de uma religiosidade da bênção, da promessa e da festa, presente na socialização de muitos portugueses. Mas a tradição incorpora a mudança e a mudança carrega a tradição, dinâmica particularmente visível nas formas religiosas mais enraizadas culturalmente.

O fenómeno de Fátima é, neste contexto, um «laboratório» surpreendente. Aí se encontram fortes laços com as práticas e imaginários tradicionais, mas também os sintomas de uma mudança social. Fortemente ligada à expressividade dessa religiosidade da circulação de dons entre os crentes e as entidades sobrenaturais, Fátima acompanhou as diferentes dinâmicas de mudança social que descrevem a sociedade portuguesa contemporânea. Por um lado, o capital simbólico do Santuário de Fátima centra-se numa mensagem (disponível para os debates ideológicos). Por outro, tendo-se tornado um espaço muito regulado institucionalmente, é facilmente moldável pela biografia dos crentes. E, ainda, o fenómeno de Fátima não ficou amarrado ao localismo próprio das religiosidades tradicionais, mas acompanha os novos fluxos transnacionais.

A diversificação religiosa da sociedade portuguesa foi marcada pelas recomposições provocadas por diferentes fluxos migratórios. Antes de mais, as mobilidades coloniais e pós-coloniais. Mais tarde, os fluxos migratórios marcados pelas diversas conjunturas mundiais.

A sociologia do início do século XXI interessou-se por compreender como se recompunham práticas e crenças num contexto de modernidade avançada, marcado pela afirmação de uma sensibilidade emancipatória. Quando hoje perguntamos o que é ser-se católico em Portugal, a resposta desenha-se num espectro de incertezas. Neste caso, a afirmação de uma cultura do indivíduo produz tanto a erosão como a diversificação das práticas, tornando a religião menos visível enquanto presença social compacta. De um catolicismo «confessante» até às franjas de um catolicismo cultural, diversificaram-se os modos de exprimir a articulação entre crer e pertencer. Os indivíduos podem permanecer ligados à Igreja em que foram socializados, independentemente da evolução das suas próprias posições pessoais. O peso do religioso como obrigação diminuiu, mas o seu lugar enquanto memória e referência pode sofrer moldagens diversas.

O catolicismo já não beneficia das condições de um monopólio religioso. Mas a Igreja católica romana pode descrever-se como uma das instituições que, na sociedade portuguesa, revela capacidade de agregar e construir comunidades de proximidade. A sua presença nas instâncias de socialização de crianças e adolescentes, nos contextos de maior vulnerabilidade social, e no acompanhamento ritual-simbólico dos ciclos da vida individual e familiar, permitem-lhe ainda uma importante inscrição cultural. Mas essa condição convive com o fenómeno da diversificação das identidades crentes e das posições face à religião.

A diversificação religiosa da sociedade portuguesa foi marcada pelas recomposições provocadas por diferentes fluxos migratórios. Antes de mais, as mobilidades coloniais e pós-coloniais. Mais tarde, os fluxos migratórios marcados pelas diversas conjunturas mundiais que fizeram da sociedade portuguesa contemporânea um território de acolhimento. Esses fluxos foram particularmente importantes para a diversificação das identidades religiosas não cristãs em Portugal, mas também para o processo de diferenciação das pertenças cristãs. A crescente afirmação de uma pluriconfessionalidade cristã, com particular relevância para a Área Metropolitana de Lisboa, pode assinalar-se como um dos fenómenos sociais mais relevantes.

As formas de religiosidade inscritas na geografia do cristianismo de matriz evangélico-protestante conhecem uma particular vitalidade mundial, e Portugal não está fora desse arco de mudanças. Sobretudo no âmbito das comunidades de tipo pentecostal, multiplicam-se os contextos de oferta religiosa, com uma vincada relação com a experiência das fraturas da modernidade. Esse religioso transnacional instalou-se nas casas, nos fundos de prédios, em espaços comerciais adaptados, estabelecendo uma rede de milagres que se apresenta como uma oferta de libertação face aos lugares de sofrimento pessoal e familiar. Talvez esta seja uma revolução religiosa em curso.

Fotografia de Ricky Turner no Unsplash.

O acordo ortográfico utilizado neste artigo foi definido pelo autor

Portuguese, Portugal