Quatro perguntas para a transição energética
Teresa Ponce de Leão, presidente do Laboratório Nacional de Energia e Geologia, tem notado uma irónica tendência nas reuniões em que participa. Por vezes, quem vem de carro elétrico chega atrasado. Motivo: falta de pontos de carregamento. Para Ponce de Leão, que também preside a Associação Portuguesa do Veículo Elétrico (APVE), este é um problema que tem de ser resolvido já, se Portugal quiser descarbonizar o transporte individual até 2050.
Segundo o Roteiro para a Neutralidade Carbónica 2050, aprovado pelo Governo em 2019, toda a frota de automóveis ligeiros de passageiros deverá ser elétrica dentro de três décadas. Ainda estamos longe desse cenário. Em 2020, os elétricos puros correspondiam a apenas 0,5% dos cerca de 5,6 milhões de veículos em circulação no país. Mas as vendas estão a crescer. Em 2020, um em cada vinte carros novos em Portugal era 100% elétrico. Em 2021, passaram a ser um em cada onze. Somados aos híbridos plug-in, entraram para as ruas no ano passado 29 mil novos veículos que precisam ser ligados a uma ficha de eletricidade.
A rede Mobi.E – que congrega os pontos de carregamento de acesso público – tem 2360 postos, dos quais 567 de carregamento rápido. Em 2021, entraram para rede 18 novos postos por semana, em média. O país é o quarto na Europa em pontos de carregamento por 100 quilómetros de estradas, atrás da Holanda, Luxemburgo e Alemanha, segundo a Associação Europeia dos Fabricantes de Automóveis (ACEA, na sigla em inglês). Mesmo assim, não é suficiente. “O principal ponto de bloqueio são os postos de carregamento. A quantidade já não está adequada”, afirma a presidente da APVE.
O desafio para os próximos anos é enorme. A Comissão Europeia quer que todos os carros novos tenham zero emissões de CO2 em 2035, segundo uma proposta ainda em discussão em Bruxelas. Para isso, já em 2030, o número de postos de carregamento na UE terá de aumentar 27 vezes – dos atuais 224 mil para seis milhões, segundo estimativas da ACEA. Aplicada a conta a Portugal, o país precisaria de pouco mais de 60 mil postos.
A questão do carregamento não é a única pedra no sapato da mobilidade elétrica. O abastecimento de lítio para as baterias tem os seus desafios. As reservas mundiais de lítio são suficientes para 220 anos do consumo atual, segundo dados da U.S. Geological Survey, a agência norte-americana para os recursos minerais. Mas o consumo vai subir exponencialmente. E a exploração de novas reservas pode esbarrar em limitações ambientais ou sociais, como o mostram os protestos contra a exploração de lítio em Portugal – que tem 10% dos depósitos da União Europeia.
Além disso, num veículo elétrico entram muito mais minerais – cobre, lítio, níquel, manganês, cobalto, grafite, terras raras – do que num veículo a combustão interna, que necessita sobretudo de cobre e manganês. Tudo somado, são seis vezes mais minerais, em peso, segundo a Agência Internacional de Energia. Acresce que os parques eólicos e painéis solares, que irão ser a fonte principal de eletricidade para os automóveis no futuro, também dependem de mais e mais variados recursos minerais do que as centrais térmicas e nucleares. A tecnologia das baterias, no entanto, está a evoluir rapidamente e pode amenizar o risco de volatilidade na oferta de matérias-primas.
Uma frota elétrica criará um outro dilema para resolver: o que fazer com as baterias usadas? Teresa Ponce de Leão aponta algumas alternativas: reciclá-las, recuperando os minerais mais valiosos, ou utilizá-las em outras aplicações, que não dependam de ciclos curtos de carregamento. “O custo [das baterias] não é o problema. O problema são as matérias-primas e o fim-de-vida”, resume.
Em favor da mobilidade elétrica, o preço das baterias tem vindo a baixar rapidamente. A nível global, caiu 89% entre 2010 e 2021 e poderá chegar aos 100 dólares (88 euros) por quilowatt-hora em 2024, segundo a BloombergNEF. Abaixo desse valor, os carros elétricos deixam de ser mais caros do que os de combustão interna, retirando uma das principais barreiras para a sua penetração no mercado.
Os carros elétricos não serão a única solução para a transição energética na área da mobilidade. Nos cenários do Roteiro da Neutralidade Carbónica, a energia final consumida no setor dos transportes em Portugal terá de baixar para cerca de um terço da atual. E isto só será possível com mais transportes públicos, modos suaves, como bicicletas, partilha de automóveis, veículos autónomos e outras medidas que aumentem a eficiência energética das deslocações.
Para os transportes públicos, nada funcionará se não houver uma grande transformação urbana. “Nas cidades é que está o grande desafio”, afirma Tiago Farias, presidente da Carris e especialista em mobilidade sustentável no Instituto Superior Técnico. “As cidades do futuro têm de ser mais próximas e menos pendulares”, diz Farias, citando o conceito da cidade dos 15 minutos – onde tudo de que um cidadão necessita está a um quarto de hora a pé ou de bicicleta de sua casa.
A pandemia ajudou, de certa forma, a testar o modelo. Praticamente toda a população foi obrigada a ficar em casa, trabalhando ou estudando remotamente e resolvendo suas necessidades do dia a dia perto de casa ou online. O reverso da moeda, para o bem ou para o mal, está no facto de os transportes públicos terem perdido utilizadores. Os comboios da CP transportaram 87 milhões de passageiros em 2020, contra 145 milhões em 2019. Em Lisboa, o metro perdeu metade dos seus utilizadores e a Carris, pouco mais de um terço. Os números recuperaram em 2021, mas ainda estão longe dos valores de antes da pandemia.
Mesmo no contexto da pandemia, os transportes públicos claramente cederam lugar aos carros particulares. O consumo de gasóleo e gasolina foi apenas 15% menor em 2020 e 10% em 2021, face a 2019, segundo dados da Direção Geral de Energia e Geologia. As empresas de transportes públicos têm, com isso, um desafio com o qual não contavam: recuperar a confiança dos utilizadores no pós-covid.
No futuro, o transporte individual poderá ter um apelo suplementar através dos carros elétricos, que teoricamente pesarão menos no bolso e aliviarão a consciência dos condutores quanto à poluição. Mas o leque de alternativas de transporte será outro. Uma fotografia de uma praça de Lisboa há vinte anos – diz Tiago Farias – mostra pessoas, carros, táxis e autocarros. Numa foto de hoje aparecem também bicicletas, tuc-tucs, trotinetes e outros meios. “Isso vai se multiplicar no futuro”, antecipa o presidente da Carris. “O grande desafio para as próximas décadas vai ser a gestão do espaço público. Vai ter de haver um reequilíbrio entre os transporte público e individual”, completa.
Independentemente de outras alternativas, o transporte público de massa vai ter de se descarbonizar. A Carris tem 525 autocarros a gasóleo – 70% da frota atual. Dos restantes, 28% são a gás natural e 2%, elétricos. Até 2025, serão adquiridos mais 230 veículos – 126 elétricos, 97 a gás natural e sete a hidrogénio.
As empresas de transportes terão também de se adaptar a novos tipos de exigências dos seus utilizadores, numa cidade provavelmente diferente, em que as necessidades de deslocações serão outras. Sem isso, não irão vencer o desafio. “A tecnologia sozinha não vai resolver o problema”, alerta Tiago Farias. “O que importa nos transportes públicos são veículos que poluem menos, mas com mais passageiros”.
As energias renováveis têm um calcanhar de Aquiles: dependem do clima e da meteorologia. Sem vento, não há produção eólica. Sem sol, de nada valem os painéis solares. Sem água, as barragens não produzem nada. Um dos maiores desafios da produção elétrica no futuro está precisamente em como suprir essa intermitência das renováveis.
Em Portugal, que já não utiliza o carvão e não tem energia nuclear, as centrais térmicas a gás natural fazem o papel de fusível. Podem aumentar ou diminuir o fornecimento de energia com relativa facilidade – como se estivessem a carregar ou retirar o pé do acelerador. E isto permite garantir o abastecimento elétrico quando não há vento ou sol, ou quando as barragens estão com pouca capacidade. Sem uma alternativa semelhante, não podem ser simplesmente encerradas de uma hora para a outra. A central térmica do Ribatejo – a maior do país, situada no Carregado – tem capacidade para produzir tanta eletricidade como 600 aerogeradores, que levariam meio século a construir, ao ritmo atual de crescimento da energia eólica em Portugal. E mesmo assim, não seria uma substituição perfeita, dada a variabilidade da meteorologia.
Uma solução melhor poderá ser a eólica offshore. No mar, sem obstáculos, o vento tende a ser mais intenso, estável e previsível. “À medida que a tecnologia se torne mais barata, pode ser uma alternativa interessante”, afirma José Eduardo Barroso, consultor em clima e energia na empresa Lasting Values.
Há um único projeto de eólica offshore em funcionamento no país, o Windfloat Atlantic, da EDP Renováveis. Três aerogeradores instalados ao largo de Viana do Castelo estão a produzir eletricidade suficiente para abastecer 60 mil habitações. Na Europa, até meados de 2021, havia 120 parques offshore, com 5566 aerogeradores – a maior parte no Reino Unido e Alemanha – segundo a Wind Europe, a associação representativa do setor.
A grande aposta, porém, está em baterias de grandes dimensões que possam acumular a energia produzida pelas renováveis nos períodos de baixo consumo, para utilizá-la quando for mais necessária. De acordo com a Agência Internacional de Energia, em 2020 havia já 17 gigawatts de potência instalada em baterias a nível mundial. Mas é preciso chegar a 600 gigawatts em 2030 – 35 vezes mais – para o mundo se manter no rumo da neutralidade carbónica até 2050. Em Portugal, nesse ano, as baterias podem vir a representar uma fatia de 8% do abastecimento elétrico, segundo os cenários do Roteiro para a Neutralidade Carbónica.
Outras alternativas para se acumular energia estão a ser testadas. Uma delas envolve centrais onde milhares de espelhos fazem os raios solares convergirem para uma torre, aquecendo um líquido que produz vapor para gerar eletricidade. Esta tecnologia já existe, mas a novidade está na utilização de uma solução salina que armazena o calor por mais tempo, podendo assim produzir eletricidade também à noite.
Nada disso está ali ao virar da esquina. “Se neste momento fechassem todas as centrais a combustíveis fósseis do mundo, a única solução seria o nuclear”, diz José Eduardo Barroso. Mesmo que assim se quisesse, o nuclear precisaria de muito tempo para substituir as centrais térmicas. Há 439 reatores nucleares em operação no mundo e apenas 52 em construção. Destes, 14 estão a ser instalados na China, que está prestes a ultrapassar a França como o segundo país com mais reatores, depois dos Estados Unidos.
Na União Europeia, o nuclear está a avançar muito lentamente . As duas únicas centrais em construção tem enfrentado enormes atrasos e aumentos astronómicos nos custos. Na Finlândia, o terceiro reator da central de Olkiluoto está praticamente pronto e deverá ser ligado à rede em junho, depois de 17 anos de obras e polémicas. Em França, um novo reator começou a ser construído em 2007 na central de Flamanville, mas não vai estar pronto antes de 2023. A fatura desse projeto já vai em quase 13 mil milhões de euros.
A esperança do setor nuclear está no desenvolvimento de pequenos reatores modulares – menores, mais seguros, mais baratos, e mais simples de instalar. Segundo a Agência Internacional de Energia Atómica, há pelo menos 70 modelos diferentes em estudo. A Rússia foi o primeiro país do mundo a ligar dois desses reatores à rede elétrica, em maio de 2020. A Argentina e a China tem projetos avançados.
A expansão do nuclear, no entanto, estará sempre condicionada ao apertado controlo que existe sobre a energia atómica, dado o temor de um acidente com graves consequências. E o problema de onde armazenar os resíduos radioativos ainda está longe de ser resolvido.
Por mais nobre e necessária que seja, a transição energética vai fazer vítimas pelo caminho. Empresas vão fechar, profissões desaparecerão, trabalhadores ficarão sem emprego. O conceito de uma transição justa, que minimize esses efeitos, está na agenda climática desde a década de 1990, levantado pelos sindicatos. Acabou por ser incorporado oficialmente no Acordo de Paris, o tratado internacional climático que vai definir o futuro da energia, aprovado em dezembro de 2015.
Precisamente cinco anos depois, os trabalhadores da refinaria da Galp em Matosinhos souberam que perderiam seus empregos. O encerramento da refinaria era algo que já se antecipava há anos. Acabou por ser comunicado à Comissão do Mercado de Valores Mobiliários três dias antes do Natal de 2020. Em setembro de 2021, consumou-se o despedimento coletivo de 170 dos cerca de 400 trabalhadores. Os restantes ficaram a trabalhar no desmantelamento da refinaria e uma parte foi realocada a outros setores da empresa. “Isto não é uma transição, é uma rotura completa”, afirma Telmo Silva, ex-supervisor de manutenção da refinaria, agora desempregado, e dirigente do Sindicato dos Trabalhadores das Indústrias Transformadoras, Energia e Atividades do Ambiente do Norte.
Quando a central termoelétrica do Pego – a última a carvão ainda a funcionar em Portugal –encerrou em Novembro do ano passado, o desfecho foi diferente. A União Europeia já tinha aprovado em junho o Fundo para a Transição Justa, que vai destinar 204 milhões de euros para determinadas regiões de Portugal lidarem com o abandono progressivo dos combustíveis fósseis. O dinheiro ainda não está disponível, mas o Governo adiantou-se. Foi criado um mecanismo gerido pelo Fundo Ambiental para compensar, durante um ano, a perda de rendimentos dos trabalhadores direta ou indiretamente afetados pelo fecho da central do Pego, incluindo os de uma empresa de limpezas industriais e até de um restaurante.
O Governo também decidiu antecipar o acesso às verbas do Fundo para a Transição Justa da UE, enquanto não vem a aprovação final de Bruxelas. As regiões onde ficam a central do Pego, a central de Sines – também a carvão, encerrada em janeiro de 2021 – e a refinaria de Matosinhos têm já direito a 30 milhões de euros cada.
O fundo europeu pode dar um empurrão a investimentos necessários para a transição energética. Mas parece curto, a julgar pela procura. Só no Médio Tejo, onde fica a central do Pego, foram já apresentadas 24 candidaturas aos 30 milhões de euros disponíveis, somando investimentos no valor 266 milhões de euros, segundo dados divulgados pelo semanário Expresso. Há projetos que vão desde a produção de hidrogénio utilizando a energia solar, até infraestruturas ferroviárias. O objetivo é que novos postos de trabalho compensem os que foram ou vão ser perdidos.
A iniciativa de Bruxelas abrange, no entanto, apenas a indústria da energia – centrais térmicas e refinarias – e outros setores industriais com maior intensidade carbónica. De fora ficam os transportes e os edifícios, responsáveis por dois terços do consumo de energia final em Portugal e onde as mudanças necessárias também poderão fazer vítimas. A transição para os carros elétricos – que têm um motor muito mais simples, com menos componentes – pode comprometer a sobrevivência das indústrias de peças, onde hoje trabalham 14 milhões de pessoas na UE. Os atuais mecânicos de automóveis, por sua vez, terão de se especializar ou arranjar outra profissão.
A transição também só será justa se garantir que as matérias-primas necessárias para uma energia sustentável sejam produzidas em condições decentes. O caso mais emblemático – o da exploração de cobalto na República Democrática do Congo, manchada pelo trabalho infantil e pelos riscos para os trabalhadores – mostra que ainda há muito a fazer.
O acordo ortográfico utilizado neste artigo foi definido pelo autor