Quando as análises ao sangue acusam desemprego, pobreza e solidão
Maria Rodrigues Afonso diz que não está sozinha. Di-lo muitas vezes ao longo da conversa, como se fosse esse o facto mais importante da sua vida. “Nunca estou sozinha”, repete, sentada perto da janela, na sua aldeia de Casa Branca, a descascar ervilhas, um alguidar sobre as pernas. “Sozinha é que eu nunca estou.” Do alpendre avistam-se os montes suaves, verdes e floridos da Primavera. Uma pequena estrada serpenteia
ao longe. Alguns aglomerados de casas emergem aqui e ali, raros e dispersos. Menos que aldeias: montes. Em frente, na direcção Norte, os contornos intermitentes da albufeira da barragem de Odeleite. A Noroeste, mal se distinguem os telhados da Choça Queimada. Em linha recta, Odeleite não dista mais de 6 quilómetros. Por estrada, 12. Castro Marim fica a uns 20 quilómetros, Vila Real de Santo António a um pouco mais.
Maria Rodrigues Afonso, 84 anos, tem hoje a visita da filha, Alzira. Um primo e um amigo dele também costumam andar por ali, a pastorear cabras, ou a dar um jeito nas hortas. Hoje, Alzira vai dormir cá. Outras vezes dorme uma das suas duas irmãs. Há sempre quem apareça e, quer venha pela estrada desde o Azinhal, quer surja dos montes pelas veredas da Portela Alta, o mais provável é que seja da família.
“Nunca estou sozinha.” Casa Branca tem de facto uma dezena de casas brancas. Habitaram-nas em tempos outras tantas famílias. Famílias
grandes, com os seus empregados. “Vivia-se bem”, apesar de não haver electricidade nem água canalizada (ainda não há). “Isto dantes dava”, diz
Maria Afonso. “Amêndoa, alfarroba, azeitona. E seara: trigo, centeio, milho. Nós tínhamos porcos. Vendíamos a criação. Agora, é só pinheiros.”
Porcos, amêndoas, azeitonas e pessoas foram desaparecendo, de várias formas. “Foi tudo embora, por esses montes.” Uns, às vezes, pelo próprio pé, outros viu Maria irem de vez, contrafeitos e pontuais. Caso do marido, que antes de morrer viveu anos imobilizado. Nessa altura, era ela quem trabalhava, lá fora, enquanto ele a esperava em casa, na cadeira de rodas. Já havia muito pouca gente em Casa Branca. Ninguém para ajudar quando Maria caiu e partiu três costelas. Nem valia a pena gritar pelo marido. O que era preciso era chegar a casa, para telefonar a alguém. A filha e um cunhado bombeiro foram contactados e mandaram ajuda. Maria ainda tomou banho e se vestiu, sozinha, antes de chegar a ambulância. A sorte foi ter um cunhado bombeiro. Levaram-na para Vila Real de Santo António e, dali, para o hospital de Faro. Essa é a regra, ninguém vai directamente para Faro. Na Unidade de Cuidados de Saúde de Vila Real é feita a triagem. Alguns exames de diagnóstico são ali realizados, como análises e radiografias. Se necessário, o doente é transportado para o hospital distrital, por um serviço de ambulâncias privado,
que pode demorar duas a cinco horas até estar disponível. Se o caso não é extremamente urgente, o tempo médio de espera são cinco horas.
Maria ficou internada cinco dias. Depois quis vir para casa. Mas piorou, porque não podia deixar de trabalhar. Nem saberia como estar ali e deixar
por cumprir as tarefas da terra, de que se ocupa desde os dez anos. Voltou ao hospital. Sempre graças ao cunhado bombeiro. No hospital de Faro, apanhou uma tosse. Uma das infecções hospitalares de que Faro é recordista, entre os vários hospitais do país. Uma doença pulmonar que a obrigou ficar várias semanas internada.
Após dois anos paralisado, o marido acabou por morrer. Não era observado regularmente por nenhum médico. Os Centros de Saúde de Odeleite e Azinhal fecharam em 2012, e só desde há dois anos uma carrinha da Junta de Freguesia de Odeleite com uma médica e uma enfermeira percorre as aldeias e montes da serra algarvia, uma vez por mês, para observações de rotina. Medem a tensão arterial, renovam as prescrições médicas dos idosos. Desde a mesma altura, uma carrinha da Câmara Municipal de Castro Marim vai a casa buscar quem está imobilizado, para levar às consultas. Quem não está completamente imobilizado depende da boleia de familiares ou amigos. Se não os tiver, usa os transportes públicos. De Odeleite, há um autocarro diário para Castro Marim e Vila Real. Sai de manhã e chega à noite. Quem vive nas aldeias e montes tem de ir apanhá-lo à estrada, o IC27. De Casa Branca à paragem, por exemplo, são 20 minutos a pé. Já para Faro não há autocarro. Para ir ao hospital, é preciso apanhar o transporte diário até Castro Marim, e daí outro até à capital de distrito, no dia seguinte. Para ir a uma consulta no hospital, um habitante de qualquer monte, aldeia ou vila do sotavento da serra algarvia precisa de, pelo menos, três dias, pernoitando em Vila Real ou Faro. Se a situação for urgente irá de ambulância, ou na carrinha da Câmara, se estiver imobilizado. Mas se ficar internado não poderá receber visitas de familiares, se estes não tiverem carro, nem dinheiro ou saúde para a viagem de três dias em transportes públicos.
Maria Afonso podia ir viver com uma das filhas, em Vila Real ou Castro Marim, mas não quer. “Que iria fazer para lá? Para estar metida numa gaiola?” É difícil argumentar contra isto. O ar puro, o silêncio, a paisagem magnífica. Não imagina um sítio melhor para viver.
O cenário parece propício à liberdade e à plenitude, não se avistam limites nem barreiras, e no entanto eles estão por todo o lado, fatais e invisíveis. Não é a distância que cria fronteiras, porque estamos a escassas dezenas de quilómetros dos principais centros urbanos do Algarve. Muito perto de uma das áreas com maior rendimento per capita de todo o país. É o isolamento que cria as fronteiras. O esquecimento a que estas regiões foram votadas.
O acesso aos cuidados de Saúde é uma dessas fronteiras que só vemos quando esbarramos com elas. O acesso à Educação é outra. Quando era criança, Alzira, a filha de Maria, ia à escola a pé, em Odeleite. Uma hora de caminho por veredas de terra, outra hora para regressar. Não quis continuar os estudos. Quando completou 18 anos arranjou emprego na Conservatória do Registo Civil em Castro Marim. Agora, que já está reformada, vem muitas vezes fazer companhia à mãe. Quando não pode, alguma das outras duas irmãs vem passar o dia, ou a noite, ao monte. Principalmente desde que a outra mulher que ainda vivia em Casa Branca morreu, em Janeiro deste ano, precisamente no dia em que fazia 91 anos. Era, claro está, da família – sogra de Alzira. Estava doente havia algum tempo, não ia ao médico com frequência, embora nas emergências nunca lhe tivesse faltado ajuda. O mesmo se passa com Maria. As filhas, os primos e o cunhado bombeiro estão sempre prontos a ajudar. “Nunca fico sozinha”, diz outra vez Maria Afonso, a única habitante de Casa Branca.
Contrastes sociais
No monte da Choça Queimada ainda vivem uma meia dúzia de casais, embora não seja fácil encontrá-los. Além de escassos, são discretos, como se reduzissem a existência a uma letargia mimética, um estado de semi-hibernação que não desafia a natureza nem lhe consome os recursos. Uma mulher dorme, braços caídos, pescoço ao lado, numa cadeira do alpendre de sua casa. Um homem apanha ervas no quintal, vergado, silencioso, imóvel como um choupo. E até os que trabalham em conjunto, de enxada na mão, não levantam a voz acima de um sussurro misturado com a brisa.
Luísa e Manuel Domingues, 80 e 81 anos, sobem o caminho desde a estrada, ela à frente, ele muito atrás, apoiado num pau. “Está muito doente”, diz ela, sem saber explicar de quê. A carrinha da médica tem vindo cá, mas Manuel não quer saber. Há, no monte, dois casais acamados. A médica é para eles. Tal como a carrinha da Santa Casa da Misericórdia, que vem todas as semanas trazer alimentos e tratar da sua higiene. Luísa foi ao hospital uma vez, para ser operada à vesícula. Foi o filho quem a levou de carro. “Há sempre alguém para nos levar. Não estamos aqui sozinhos. Connosco está tudo bem. Pergunte àqueles ali. Talvez tenham coisas para dizer. Nós não sabemos de nada.” Por todas as aldeias da região, há ajudas e serviços médicos ao domicílio, acções de solidariedade social da parte das instituições autárquicas e religiosas. As situações emergentes nunca ficam por tratar. Quem aqui vive está em desvantagem em relação aos habitantes das cidades, mas há mecanismos de compensação. Os dados estatísticos chegam a ser surpreendentes. O município de Castro Marim tem apenas 12 médicos, sendo dez não-especialistas e dois de medicina geral e familiar (números da PORDATA, de 2015). Já Alcoutim tem seis médicos, um dos quais cirurgião.
É uma das zonas do país como menos médicos. Mas o número de habitantes por Centro de Saúde é, no município de Castro Marim, de cerca de 6700, sensivelmente o mesmo da média nacional. E no que respeita ao número de consultas médicas anuais por habitante, Castro Marim surge nada menos do que em primeiro lugar a nível nacional, com 8,2 (a média do país é de 2,5).
Tal como outras regiões do país, a serra do Sotavento conta com uma rede de lares da terceira idade geridos pela Misericórdia. Mas só os utentes que vêm indicados pela Segurança Social usufruem gratuitamente dos serviços. Os outros têm de pagar. Serviço de almoço, jantar e limpeza de roupa custa 300 euros mensais; internamento completo sobe aos 800 euros.
Nem estes lares nem o Serviço Nacional de Saúde promovem a desigualdade. Se existe, ela não está nos fornecedores de cuidados de saúde, mas nos utentes. Sendo o Algarve um dos territórios de maiores contrastes sociais, a desigualdade não pode deixar de traduzir-se no capítulo da Saúde. Não nos momentos críticos, não nas emergências. No socorro, como na morte, todos são iguais. Já na vida, não. Está em vantagem quem vive nas cidades e quem pode comprar serviços privados. Na clínica privada das Gambelas, em Faro, o tempo de espera para uma consulta é incomparavelmente inferior ao que vigora no hospital de Faro. Quanto aos elementos mais abastados da comunidade britânica, que habita a Quinta do Lago e outras zonas residenciais de luxo, têm por hábito fretar aviões a jacto para irem fazer tratamentos em Inglaterra.
Um projecto-piloto no Martim Moniz
Tanto na serra algarvia como no centro das principais cidades, não há desigualdade na Saúde: há apenas desigualdade. A Baixa de Lisboa é outra zona de contrastes. Famílias com capacidade para comprarem os metros quadrados de chão mais caros do país coexistem com idosos pobres e sozinhos habitando andares degradados sem elevador e com imigrantes vivendo aos cinco ou dez no mesmo quarto.
Mas a recém-inaugurada Unidade de Saúde Familiar (USF) da Baixa de Lisboa, em plena praça do Martim Moniz, é um oásis de igualdade. A muito jovem e especial equipa de médicos que lá trabalha sabe que não discriminar é necessário, mas não suficiente. Talvez de forma mais manifesta do que em qualquer outro lugar do país, a desigualdade entra como uma tempestade pelas portas das modernas e amplas instalações.
Para aqueles médicos seria fácil e natural alegar que a culpa não é deles. Que não lhes compete exorbitar das suas funções, corrigir as iniquidades da sociedade. Mas a sua atitude não é essa. Agem como se, sim, a culpa fosse deles. Como responsáveis. O coordenador geral da USF da Baixa, Martino Gliozzi, tem uma espécie de lema: “Equidade não é o mesmo que justiça”. Traduzindo: não basta prestar a todos igual assistência. Numa zona em que quase 30% das pessoas são imigrantes estrangeiros, não se pode tratar todos por igual, sob pena de ser injusto. Martino é um jovem italiano que veio para Portugal fazer Erasmus, e ficou. Terminada a especialidade, em Medicina Geral e Familiar, foi-lhe proposto dirigir um centro de saúde de características singulares. Aceitou e convidou uma equipa de médicos com idades entre os 30 e os 35 anos. Todos eles o conheciam, ou porque tivessem sido seus colegas de curso, ou porque já tinham ouvido falar da “lenda” Martino e das suas ideias. Por isso aceitaram concorrer para este lugar geralmente pouco cobiçado. Começaram no velho edifício da freguesia de São Nicolau, depois mudaram-se para a nova casa, que serve a nova megafreguesia de Santa Maria Maior, fruto da junção das freguesias da Baixa de Lisboa. Sentem que são uma espécie de projecto-piloto, embora o que os diferencie seja pouco mais do que a atitude.
O que é muito. “Ainda não temos vícios e ainda não desistimos”, diz Martino, para explicar que a idade importa. As vantagens incluem o entusiasmo, a vontade de experimentar, a convicção de que podem melhorar o sistema. Mas acima de tudo a disponibilidade para trabalhar mais horas e com mais intensidade. É claro que criaram um sistema de organização e automação que gerou eficácia: um “quiosque” onde os utentes se registam automaticamente à chegada, apenas inserindo o Cartão de Cidadão, um sistema de comunicação e chat interno em que o médico vê a ficha e as queixas do doente mal ele se regista, para decidir quando o recebe, e através do qual troca impressões com os colegas durante as consultas. O facto é que agora tudo funciona melhor. O tempo de espera é menor, bem como o de marcação de consultas. Como se explica isso, considerando que o número de utentes e de médicos são os mesmos? “A explicação é a inteligência”, diz uma utente, na sala de espera, Maria Sofia Ornatovskyy, 49 anos. Veio trazer os dois filhos, de 11 e 13 anos, ao seu médico de família, Martino. Casada com um imigrante polaco, Maria Sofia já não vive na Baixa há um ano, mas continua a vir aqui, por causa da rapidez, mas principalmente pela forma como é tratada.
Igualdade e literacia na saúde
Equidade não é o mesmo que justiça. Um utente mais pobre, ou um imigrante, precisam de mais tempo numa consulta. E de formas de atendimento diferenciadas. Para uns são necessárias mais explicações, uma abordagem mais pedagógica, para outros é preciso serviço de tradução, por vezes pouco convencional. O grupo étnico mais numeroso da zona é o dos provenientes do Bangladesh, seguido dos nepaleses e dos chineses. Se os primeiros falam quase sempre inglês, os outros obrigam a recorrer ao tradutor do Google, ou a uma espécie de linguagem gestual alargada, que vai desde o uso de fotografias de telemóvel até à pura arte dramática. “Como vão as dores nas costas?” “Melhor”, responde o jovem paquistanês.
Martino sabe que ele trabalha num supermercado, onde carrega caixas pesadas. Abre o envelope das análises. “Quantas cervejas bebe por dia?” “Só ao fim de semana”. “Quantas ao fim de semana?” “Três ou quatro”. “Isso não é nada, comparado com os portugueses”.
A consulta decorre em inglês, mas o atendimento especial requerido por um utente estrangeiro não termina aí. É preciso entender as condições de vida e as especificidades culturais.
Há doenças com maior prevalência nas comunidades imigrantes, como a tuberculose, diabetes, hipertensão. Martino quer realizar um estudo comparativo para saber se estas doenças são mais frequentes nos países de origem daquelas pessoas, ou se simplesmente são consequência das más condições de higiene, alimentação ou stress em que vivem os imigrantes. Outra das suas ambições é poder contratar tradutores, um nutricionista e um mediador cultural.
Sofia Correia Pinto, uma das médicas da USF, lembra-se de ter uma vez perguntado a uma mulher indiana se os três filhos dormiam na mesma cama dos pais.
“Não, nós dormimos todos no chão”, foi a resposta. Sofia trabalha num projecto camarário de apoio aos “bairros de intervenção prioritária”, na área da “interculturalidade” entre populações femininas. “Para haver igualdade, é preciso haver literacia na saúde”, diz ela, referindo-se aos utentes, mas também aos médicos. Estes, explica, têm de compreender que certas doenças dos utentes oriundos do Bangladesh se devem ao facto de “trabalharem muitas horas, ou viverem muitos homens na mesma casa, sem arejamento adequado”.
Tânia Bonifácio, 37 anos, a “mais velha” da equipa de Martino, já foi chamada (através do spark, o sistema de chat que usam entre si) muitas vezes, de repente, à consulta de algum dos seus colegas do sexo masculino, para fazer um exame ginecológico a uma mulher, que ao colega, o marido muçulmano não permite. “Temos de estar disponíveis para esse tipo de particularidades”, explica. E também para ter em conta as singularidades das condições de vida das pessoas, no momento de fazer o diagnóstico. “Há muitas doenças gástricas, hipertensão e diabetes nos utentes da Índia e do Bangladesh, devido à alimentação e ao excesso de horas de trabalho.” Mas também, acrescenta, doenças mentais, devido às alterações nas condições de vida.
Também entre os portugueses “Há síndromes depressivos, alterações de memória nos mais idosos, porque não descansam. As causas são o barulho provocado pela prática do alojamento local, o isolamento. Muitos idosos foram retirados das suas casas e colocados no rés-do-chão, para que os apartamentos do prédio fossem alugados a turistas. Ficam afastados dos vizinhos, dizem que não conseguem dormir. O problema é tão grave que eu já incluo a pergunta sobre o barulho na rotina das consultas.”
Refeição ao ritmo do trabalho
Se as condições de vida provocam as doenças, também ditam os tratamentos. Rogério Rodrigues de Carvalho, 70 anos, diabético, senta-se em frente da médica Tatiana Consciência. “Sr. Rogério, isto melhorou um bocadinho, mas não o suficiente”, diz ela, lendo o resultado das análises. “Tem-se esquecido de tomar os comprimidos às refeições? Como são os seus horários?” “Acordo às 7 e vou para a peixaria. Tomo o pequeno-almoço às 9h45. Eu e a minha senhora começamos a almoçar às 2 ou 3 horas. A vida do peixe é assim. Vou para a lota à meia-noite. Saio às 2h30, chego a casa às 3 da manhã.” “E entre as 3 da tarde e a meia-noite come alguma coisa?” “Sim, às 9 um caldo ou uma fruta cozida.” “E às 3 da manhã?” “Um chá e umas bolachas.” “E ao almoço?” “Peixe frito, arroz, poucochinho, e pão. Queijo e fruta e dois copinhos de vinho.” “Então, o que pode fazer para melhorar a sua dieta?” “A doutora fala, e fala bem, mas eu não tenho vida para fazer melhor do que isto.” “Mas mantendo a sua vida, o que pode fazer de diferente?” “Eu como batatas, arroz e pão porque, derivado ao esforço que faço, dá-me para comer essas coisas. Tenho de carregar sacos de gelo, pegar em caixas de 20 ou 30 quilos.” “Não seria possível cortar no pão?” “Eu se estou à mesa tenho de comer pão. Não consigo estar à mesa sem comer pão. Duas carcaças por dia. E às 3 da manhã, bolachas.”
“Não está impedido de comer pão, mas podemos tentar então cortar nas batatas. Acompanha o peixe com pão. Vamos lá reflectir em conjunto. Porque, se não, temos de iniciar as injecções de insulina.” “Não queria nada chegar à insulina.”
Tatiana elabora um horário especial para a toma dos medicamentos, em consonância com o ritmo das refeições de Rogério. Explica-lhe quais os alimentos que fazem subir os níveis de açúcar, para que possa reduzir alguns. E marca a próxima consulta em dia e hora compatíveis com o trabalho da lota e do peixe.
Rogério Carvalho teve uma oficina de torneiro mecânico, com o irmão. Mas “com a moda dos plásticos, faliu. Dantes, as peças de um autoclismo eram feitas de bronze e latão. Agora é
tudo de plástico”. A oficina fechou em 2002. A mulher trabalhava na fábrica de camisas Regojo, que também fechou. Começou a vender peixe na rua, como a mãe, até que a Câmara o proibiu e lhe atribuiu uma pequena peixaria em Alfama. “Mas agora Alfama só tem estrangeiros e turistas, e eles não vão à peixaria, compram tudo no supermercado.”
Os problemas de saúde de Rogério surgiram desde que trabalha com a mulher na peixaria, diz ele. Teve uma cólica renal, depois diabetes e problemas cardíacos. “Mas não posso mudar de vida. Tenho 5 netos.” A consulta durou mais de meia hora. Tatiana, tal como os outros médicos, recebe 20 a 30 utentes por dia. Na sala em frente, Martino acaba de atender a nepalesa Laxmi, de 23 anos, e o seu filho Agrim, de quase 2. “Ele come bem?”, pergunta o médico, em inglês. “Normalmente.” “Que febre tinha?” “38.” “Tosse?” “Não.” “Vamos ao strip-tease.” Agrim fica deitado na marquesa, de fralda, brinco na orelha e cabelo claro, em rabo de cavalo. Laxmi, cabelo preto e calças de veludo verde, sorri ao olhar para a pulseira com uma frase nepalesa que Martino usa no pulso. Foi ela que lha ofereceu, provavelmente por ele ter detectado e tratado um torcicolo em Agrim, quando ele tinha dois meses. Um médico menos atento talvez não tivesse descoberto a causa das dores do bebé e da sua dificuldade em mover a cabeça. O italiano ateu Martino usa também um colar muçulmano e outro budista, ofertas de pacientes. Na sala em frente, Tatiana já está com outro utente, do Bangladesh. Na ficha de consulta de Rogério escreveu: “Dei ao doente os parabéns pelos progressos conseguidos.”
O acordo ortográfico utilizado neste artigo foi definido pelo autor