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A pobreza em Portugal como desafio ao desenvolvimento

«A pobreza está associada a diversos efeitos sistémicos que a condicionam e reproduzem. É difícil estabelecer as relações de causa e efeito destes efeitos sistémicos, simplesmente conseguimos perceber que estão associados à pobreza (…).»
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Reveja o Fronteiras XXI «É possível erradicar a pobreza?»

 
A pobreza em Portugal é um dos principais desafios ao desenvolvimento do país. Esta afirmação fundamenta-se, em primeiro lugar, no elevado número de indivíduos nessa situação. Desde 2003, com muitas oscilações, este número situa-se à volta dos 18%. Quase um quinto da população nacional. Além disso, a pobreza está associada a diversos efeitos sistémicos que a condicionam e reproduzem. É difícil estabelecer as relações de causa e efeito destes efeitos sistémicos, simplesmente conseguimos perceber que estão associados à pobreza: referimo-nos a questões nas áreas da saúde, da educação, do emprego, da cidadania, da regulação do estado (como a relativa incapacidade de dominar a economia paralela ou os vínculos laborais à margem da lei), das políticas públicas (como as transferências de rendimentos ou a conciliação trabalho-família), da produtividade, da especialização produtiva da economia portuguesa (em setores de atividade onde se paga mal e onde a economia paralela é importante, como a construção civil ou o turismo).

Apesar de ser um fenómeno muito relevante, o que sabemos sobre a pobreza em Portugal não é muito. O problema é complexo, o número de investigadores que o trabalha de forma sistemática é pequeno e as estatísticas e estudos são poucos e relativamente recentes. Não obstante, o último estudo sobre a pobreza em Portugal financiado pela Fundação Francisco Manuel dos Santos permitiu acrescentar ao manancial de conhecimento relativo ao assunto, contribuindo para o debate público sobre a sua erradicação.

Este estudo, aliás, resulta de uma preocupação consistente no tempo da Fundação Francisco Manuel dos Santos com os problemas da desigualdade da distribuição de rendimentos, crescimento económico e pobreza em Portugal. O seu ponto de partida foi: quem são e como vivem as pessoas em situação de pobreza em Portugal? Neste trabalho foram identificámos quatro grandes perfis de pobreza. Os perfis têm como base a condensação dos dados do Inquérito às Condições de Vida e Rendimento (ICOR-EUSILC) do INE em confronto com a literatura existente sobre a pobreza em Portugal. Num primeiro momento permitiram identificar em traços largos as características da pobreza para, de seguida, se traduzirem em entrevistas semi-diretivas. Com estas entrevistas aprofundámos conhecimento sobre as diferentes formas de viver a pobreza em Portugal, olhando para os percursos de vida de quem se encontra nessa situação. Para o fazer realizámos um cuidadoso processo de seleção dos nossos entrevistados, de forma a garantir na prática a diversidade de percursos que antevimos nos dados estatísticos. O estudo foi publicado no livro A pobreza em Portugal, trajetos e quotidianos e um resumo no livro Faces da pobreza em Portugal, ambos disponíveis em PDF no site da fundação.

O primeiro desses perfis é o dos reformados. Aqui podemos encontrar sobretudo indivíduos com 65 anos e mais que vivem em agregados familiares em que a principal fonte de rendimento é a reforma. Ainda no que respeita aos reformados, as entrevistas permitiram perceber que existem diversas coisas que o singularizam. Desde logo, a sua posição no ciclo de vida tem efeitos na sua idade e condições de vida pois são os mais descrentes no seu futuro e os que mais referem a doença e a morte. Mas também está em causa o impacto do Estado Novo, através de efeitos duradouros das políticas sociais deste regime político na sua educação, saúde, proteção social e emprego.

No polo oposto está o perfil 2, referente aos precários. É aqui que se concentram os mais novos e mais escolarizados. O que marca bastante este perfil é, por um lado, o facto de os agregados onde se inserem não terem intensidade laboral muito reduzida (quer dizer, os seus membros adultos trabalham mais do que 20% das suas horas de trabalho potenciais) e, por outro, de ser o grupo onde a família-providência se revela mais importante e onde os indivíduos (os que são mais jovens) são mais otimistas em relação ao futuro. De facto, é possível perceber que estamos em presença, em boa parte, dos filhos adultos e outros dependentes (por exemplo, domésticos/as e desempregados/as) dos indivíduos do perfil dos trabalhadores. Não obstante, há uma relação em nome próprio com o mundo do trabalho: quase todos, de uma forma ou de outra, exercem, ou exerceram recentemente, uma atividade laboral. A atividade em causa é, para a grande maioria, exercida à margem das normas que regulam a relação salarial, frequentemente em condições de grande penosidade, em precariedade e com salários muito baixos, o que justifica a situação de pobreza em que se encontram e a sua dependência de outros. Identificámos apenas uma ou duas exceções, de pessoas que se encontravam em melhor condição no momento da entrevista, mas que até aí tinham tido uma trajetória precária. Por último, refira-se que este é o perfil mais heterogéneo, dado que se situa entre o perfil dos desempregados e o dos trabalhadores partilhado características dos dois, algo que leva a uma maior diversidade interna nas situações encontradas.

O perfil 3, o dos desempregados, em contraste com o anterior, é constituído por indivíduos um pouco mais velhos, menos escolarizados e que, na sua maioria, experienciaram situações de desemprego prolongadas ou muito prolongadas, sendo mais dependentes dos apoios sociais do Estado e de outras instituições do que os do perfil do precários. Este tipo de transferências sociais está presente nos diferentes perfis, mas é especialmente marcado no caso dos desempregados. O perfil 3 é, justamente, em conjunto com o perfil 1, o dos reformados, aquele onde as questões da doença, e do obstáculo que esta constitui para o emprego, mais se salientam. Muitos estavam, à data das entrevistas, desempregados desde a crise de 2009-2014. Portanto, a ligação complexa com a atividade laboral presente no perfil 2 é aqui muito mais ténue: são menos os biscates e as atividades informais e mais as situações de desemprego, puro e simples.

Já o perfil 4 (trabalhadores) contrasta com os restantes pela ligação forte com o mundo do trabalho. Esta relação é construída de várias maneiras. Desde logo, é aqui que a doença se manifesta menos. Quando aparece, é para sublinhar a ética do trabalho – trabalha-se em sacrifício, dada a penosidade imposta pela doença, mas trabalha-se. A maior parte dos membros do perfil 4 tem uma situação estável no mercado de trabalho, algo que contrasta com os três perfis anteriores, e as suas famílias têm o trabalho como principal fonte de rendimento. Contudo, isso não impede que existam outras situações de grande fragilidade em relação ao trabalho no seio do seu agregado familiar, ou seja, pessoas que podem ser definidas como trabalhadores precários (perfil 2, como se disse acima). Além disso, uma parte minoritária, mas significativa, dos indivíduos deste perfil encontra-se em situação de emprego frágil, no contexto de uma trajetória de emprego em carrossel, indiciando que um qualquer evento disruptivo pode facilmente colocá-los na mesma situação dos indivíduos do perfil dos desempregados.

Existem, também, diversas questões que acabam por serem transversais aos diversos perfis, afinal todos os entrevistados estão em situação de pobreza. Um exemplo significativo, a grande maioria acedeu ao mercado de trabalho de forma precoce depois de um percurso escolar curto e em condições que hoje consideraríamos como trabalho infantil. Mas a realidade está a mudar e podemos encontrar, concentrados no perfil 2, dos precários, alguns indivíduos mais novos, com maiores escolaridades. Alguns de entre eles sendo até licenciados.

* O autor escreve com o Acordo Ortográfico.

 

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