Passos Perdidos na Cidade Suspensa
Albert Camus escreveu em A Peste que uma «maneira cómoda de travar conhecimento com uma cidade é descobrir como lá se trabalha, como se ama e como se morre». Hoje sabemos que, numa cidade sitiada pela doença, trabalha-se, ama-se e morre-se de maneira diferente. Só não sabemos como. As regras impostas pelas autoridades de saúde reduzem o espaço público – dividido entre lugares seguros e inseguros, entre lugares frequentáveis e lugares proibidos – e reorganizam o tempo, com alterações e limitações aos horários, definição de períodos máximos para cada atividade.
Todas as tragédias interrompem, desde logo, o fluxo do tempo, rasgam-no, mutilam-no. São linhas que dividem o tempo entre um antes e um depois. As vítimas – seja a tragédia pessoal ou coletiva – não conseguem retomar de imediato a vida normal. Precisam de se recompor, precisam de reparar a costura que as une ao tempo. Nas grandes catástrofes, naturais, como um terramoto ou um tsunami, ou obra de mão humana, como as guerras, além do tempo, também o espaço sofre uma transformação violenta.
A particularidade de um fenómeno como a pandemia – esta pandemia – é que corrói, sobretudo, o tecido do tempo e deixa o espaço aparentemente, estranhamente, intacto. Uma cidade deserta, mas intacta, é uma cidade em ruínas invisíveis, minada por um mal interior. É a mesma e é outra, como uma pessoa que subitamente perdesse a voz ou o controlo dos músculos faciais. Como poderia uma pessoa comunicar em semelhantes condições?
Da mesma forma, o que nos poderá dizer uma cidade paralisada, envolta numa estranha quietude? Mais nítida e aberta do que nunca, é como se estivesse fechada, coberta por uma neblina densa.
Em tempos normais, o ruído e o movimento cobrem os lugares. No meio da multidão, nunca os vemos. Vazias, as ruas têm uma nova e ambígua eloquência, uma nudez e mudez indecifráveis. Cada prédio, árvore, passeio, é um símbolo, um hieróglifo, de uma língua que ainda não conhecemos. Pressentimos em cada imagem um significado oculto porque o vazio nos é intolerável. Percebemos que, arrimados à bengala da presença humana, não demos atenção à cidade, que nunca a observámos. Agora exigimos que fale connosco, que nos entregue o seu mistério. Que história tens para nos contar? Diz-nos, através do teu silêncio árido, como se trabalha, como se ama e como se morre aqui.
Vazia, ou despida, de seres humanos, cujos rastos invisíveis conferem sentido ao espaço, a cidade transforma-se num tabuleiro de xadrez em que todas as casas têm a mesma cor, pretas ou brancas, e em que as peças que sobram, dois ou três peões, podem imaginar-se reis, rainhas, torres, bispos, cavalos. Sem pessoas, somos obrigados a procurar o sentido no esqueleto da cidade, na sua arquitetura, no traçado das ruas, agora labirinto e enigma. O vazio torna tudo mais expressivo, porém incompreensível. Os edifícios, mesmo os mais modestos, adquirem uma outra monumentalidade. As ruas, as praças, os largos, outrora meros lugares de passagem, borbulham de segredos e de mistérios escondidos à vista de toda a gente. Tudo o que julgávamos compreender é agora uma enorme interrogação.
Na vida quotidiana, as pessoas dentro do tempo são o fio de Ariadne, que nos permite circular pela cidade às cegas sem nunca nos perdermos – e sem nunca a vermos. Cortado o fio, abrimos os olhos e somos tentados a atribuir significados para atenuar o sentimento de desorientação. Cortado o fio, a cidade reduz-se, pelo menos durante algumas semanas, a um espaço imenso e sem coordenadas, tão vasto e ameaçador como os mares e os desertos.
Observe-se um homem a caminhar nesta nova cidade, uma cidade que ele, na verdade, não conhece. Cada passo que dá tem um outro peso, uma outra intenção. É como se desbravasse novos territórios, não para os conquistar, mas para ser transformado por eles, como um peregrino é transformado pelo deserto. Uma cidade vazia é um deserto com prédios, e o deserto, espaço branco e terrível, fala de muitas maneiras aos que dele ousam aproximar-se, aos que se atrevem a sondar o seu mistério. Vazia, a cidade, centro irradiador de cultura e coio do vício, farol da civilização e albergue das sombras privadas, pode ser tão misteriosa e enigmática quanto o deserto, lugar da transformação por excelência.
A cidade suspensa é um lugar perigoso cujos perigos não reconhecemos nem podemos avaliar. Em tempos normais, as pessoas dobram as esquinas e prosseguem as suas vidas. Em tempos de pandemia, as esquinas ameaçam devorar quem delas se aproxima. Quem dobra uma esquina, quem atravessa uma rua, quem entra num edifício, arrisca-se a desaparecer para sempre, como um velejador solitário tragado pelas ondas, um peregrino engolido pelas areias, porque é agora um pequeno ponto perdido no espaço, uma criatura frágil à mercê dos elementos.
A cidade suspensa e vazia perturba, pois está povoada dos homens que devorou, dos fantasmas dos desaparecidos. Fantasmas que, na nova cidade revelada pela pandemia, somos todos nós, à procura do nosso espaço, do nosso tempo. Quando os encontrarmos, saberemos outra vez como nela se trabalha, como se ama e como se morre.
O acordo ortográfico utilizado neste artigo foi definido pelo autor.