Opinião GPS #8 - A propósito das masculinidades no século XXI
Desde que a hashtag #MeToo ganhou dimensões globais no seguimento das acusações de abuso sexual dirigidas ao produtor cinematográfico Norte-Americano Harvey Weinstein em 2017, os debates públicos sobre a natureza da masculinidade adquiriram um novo ímpeto, que foi também alimentado pela circulação de discursos mais amplos sobre a “masculinidade tóxica,” tanto nos meios sociais como nos meios de comunicação mais institucionalizados. A momentos de entramos na terceira década do século XXI, é-nos dado a crer que a masculinidade está em crise.
Muita evidência existe de ser esse o caso — o aparecimento de novos movimentos etno-nacionalistas e neo-reaccionários um pouco por toda a Europa e Américas; a popularização em forums online de jovens que se identificam como “incels” ou “involuntary celibates” (homens que, de forma misógina, culpabilizam as mulheres pela dificuldade que sentem em desenvolver relações românticas e/ou sexuais); continuada discriminação de homosexuais, homens negros, e daqueles provenientes de classes baixas; debates e conflitos sobre a existência inegável de indivíduos trans, etc. Todavia, parece-me que tanto os apologistas como os detractores das crises da masculinidade contemporânea partem de uma premissa que é, a meu ver, errónea. Nomeadamente, que terá existido num tempo mítico do passado histórico um momento em que existiu algo chamado “masculinidade” e que essa terá sempre sido coerente e imutável… até agora.
Nas últimas décadas, a área académica dos Estudos das Masculinidades tem vindo a questionar essa mesma premissa, oferecendo-nos perspectivas históricas e críticas que deitam completamente por terra todas e quaisquer ideologias da masculinidade pura.
Enquanto categorias de género, tanto a masculinidade como a feminilidade são ultimamente sistemas de relações sociais que têm menos que ver com quaisquer características anatómicas, hormonais ou genéticas tão idealizadas quanto difíceis de definir, do que com tentativas históricas de dividir o trabalho, assegurar a reprodução social, e garantir hegemonias capitalistas e heteropatriarcais. Nesse sentido, nunca a masculinidade foi coisa exacta, coisa certa. O que ela sempre foi—o que ela ainda é—é um território identitário onde forças económicas, sociais, culturais e políticas se intersectam no corpo, dando juntos origem tanto ao género como ao sexo masculinos.
Mas se formações hegemónicas da masculinidade foram historicamente favorecidas enquanto ideal em sociedades patriarcais, homens diferentes sempre beneficiaram dos dividendos do patriarcado de forma também ela desigual. Tal como Raewyn Connell demonstrou, embora continuem a ser privilegiados pelo patriarcado, homens pertencentes a minorias raciais ou étnicas, a classes sociais baixas, homossexuais, ou homens trans, sempre foram alvo de suspeita, avaliados como sendo menos homens, e regularmente objetos de discriminação, racismo, homofobia, transfobia, etc.
Dessa forma, a masculinidade é tanto um dom como uma maldição; o seu papel social e político é tão grande que tem de ser continuadamente regulada, monitorada, e policiada ao ponto de gerar tanto benefícios como ansiedades para os homens, eles mesmos. No contexto do capitalismo pós-industrial contemporâneo, o caso das masculinidades dos homens das classes trabalhadoras é um exemplo paradigmático. Se as suas masculinidades se basearam nos seus papéis enquanto “chefes de família,” membros da tríade familiar edipiana que saíam de casa para “ganhar o pão” enquanto as mulheres ficavam em casa responsáveis pela reprodução biológica e, por conseguinte, social, bem como pelo trabalho emocional e afetivo nunca eles remunerados, na transição do capitalismo industrial para o capitalismo financeiro e de serviços vivida nas sociedades Europeias e Norte-Americanas, muitos desses homens viram o trabalho que sustentava as suas masculinidades desaparecer. Por esse motivo, o número de casos de doenças do foro psiquiátrico, mortes por suicídio e alcoolismo entre homens de classes trabalhadoras aumentou exponencialmente nas últimas décadas nas sociedades pós-industriais. E a razão prende-se não somente com as circunstâncias individuais de cada um desses homens, mas principalmente com a forma como a masculinidade é por nós idealizada de forma tão dominante enquanto guião de vida que, confrontados com o desaparecimento das práticas e instituições que sustentavam as suas masculinidades, muitos homens acabaram também por ser confrontados com o desaparecimento das práticas e instituições que sustentavam o âmago das suas identidades e vidas.
É nesse sentido que não é possível percebermos o crescimento recente de movimentos masculinistas, etno-nacionalistas e neo-reaccionários sem termos em consideração as estruturas e institituições sociais, culturais, económias e políticas por detrás tanto das masculinidades históricas como da nostalgia contemporânea por uma imaginada masculinidade edénica e perdida. Mas é também por essa razão que conversarmos sem medo e de forma aberta sobre o que significa para nós ser-se homem só poderá ajudar os homens—independentemente da sua raça, etnia, classe social, sexualidade, ou sexo registado aquando do seu nascimento—a viver as suas masculinidades de forma livre, mais ética e mais sustentável, sem sofrerem pressões de visões idealiazadas do que significa ser-se homem que, por serem ideais, serão também sempre inatingíveis.
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