«Sempre houve momentos na História em que o debate se tornou mais extremado»
Reveja o Fronteiras XXI “Radicalismo: deixámos de saber dialogar?”
O passado não se repete, frisa a historiadora Irene Flunser Pimentel nesta conversa, «mas deixa influências e pode ter parecenças». Em muitos países ocidentais, temos assistido a um ressurgimento dos populismos, à esquerda, à direita e agora também à extrema-direita. Todos eles têm procurado polarizar o debate público através de novos instrumentos: a Internet, as redes sociais e os dispositivos portáteis. Aparelhos e meios de comunicação cuja utilização vinha aumentando há anos, mas dos quais ficámos praticamente reféns no último ano – para trabalhar, estudar e socializar. Irene Flunser Pimentel alerta que, hoje, «a informação está a deixar de ser mediada» e que «a polarização está muito ligada a uma ausência de ética e de empatia pelo outro».
Sim, sempre houve momentos na História em que o debate se tornou mais extremado. Normalmente, por factores políticos internos ou por questões de políticas externas – conflitos, guerras, etc. No início do século XX houve polarização, mas era baseada na Primeira Guerra Mundial e em questões ideológicas: o comunismo, o fascismo, o liberalismo capitalista. Só que, a partir de 1989, essa rivalidade entre ideologias globais foi acabando – porque o liberalismo e o capitalismo tinham revelado a sua superioridade. Neste momento, o que é novo é que não há ideologias globais.
Acho, de facto, que está a haver uma imposição política de uma via populista. Mas hoje o populismo é diferente daquele que existia no século XIX. Agora, o populismo é usado pelo neoliberalismo económico. E esta nova forma de populismo começou a surgir em países muito importantes, como nos Estados Unidos da América, depois no Brasil, depois na Europa (Hungria, República Checa…). Estes regimes têm sido chamados de democracias iliberais, o que é uma contradição; eles não são democracias.
Com Trump, nos Estados Unidos – um neoliberalista económico que foi eleito democraticamente e tinha um governo populista –, voltou a ouvir-se falar em inimigos outra vez. Porque o populismo necessita de inimigos. No século XIX, o populismo dizia que “nós somos o povo” e depois “há umas elites” – normalmente, consideradas negativas –, que “mandam nisto tudo e que vivem à custa do povo”. As elites são as pessoas consideradas especialistas, por exemplo, em Ciências.
O populismo pode ser de esquerda ou de direita, mas usa sempre uma linguagem muito breve, muito simples, muito primária: “nós é que somos bons, nós é que vivemos mal, eles vivem bem”. Agora, há um populismo de extrema-direita que vai encontrar inimigos não só nas elites, mas também no outro: nos imigrantes, nos refugiados, nas minorias étnicas, nas religiões minoritárias.
Sim. Agora o que acontece é que, de repente, há uma equivalência entre os Historiadores e as pessoas que têm uma opinião sobre a História sem nunca a terem investigado.
Acho que sim. É como se houvesse dentro da radicalização política uma democratização – entre muitas aspas. Todos nós estamos envolvidos na democracia, sem estarmos realmente envolvidos. Estamos, isso sim, a ser cada vez mais envolvidos numa noção populista de encontrar inimigos. E realmente isso sempre aconteceu. A dada altura, na Alemanha, o discurso dos bons e dos maus passou para as ruas e ganhou o poder. E hoje sabemos o resultado.
É um efeito perverso da informação não mediada. Houve, de facto, uma democratização da educação, em Portugal. Mas a informação está a deixar de ser mediada – pelo menos, como está a ser mediada aqui nesta conversa, e como era mediada pelos jornais e pelas revistas. As televisões passaram a funcionar pelo mais baixo em vez de pelo mais alto. Quando vemos televisão portuguesa, na sua maioria, os programas não contribuem muito para a educação.
Eu adorava ver televisão, e ainda gosto do meio de comunicação em si. Mas neste momento já praticamente não assisto a telejornais nem a debates, porque são sempre as mesmas pessoas e eu sei como é que cada um pensa. Repare num aspecto que é pouco falado: onde estão as mulheres, no debate público?
Exactamente. No entanto, os estudos mostram que há mais mulheres doutoradas do que homens. Sabemos que a produtividade escolar é superior nas raparigas do que nos rapazes. Até já há quem fale em cláusulas que favoreçam os rapazes, porque elas amadurecem mais cedo e acabam por estudar melhor e ter melhores notas.
Então porque é que as mulheres não estão no poder político, no poder das empresas, no poder das universidades, no poder da administração pública? Fora de casa, elas trabalham o mesmo número de horas que os homens.
Mas a questão é que, em casa, são elas que se ocupam dos pais e dos filhos.
É; mas não é nada radical. Ser feminista é lutar contra as desigualdades salariais e contra a falta de tempo. Neste momento, as mulheres têm de lutar pelo direito a terem tempo: de não nos ocuparmos exclusivamente com o trabalho doméstico e com a família.
As mulheres fazem parte da sociedade. São marcadas pelo todo. Eu não nego que, embora o Trumpismo tenha desfavorecido muito as mulheres, algumas apoiaram o Trump.
Neste momento, nos EUA, uma percentagem significativa da população quer uma ditadura. E mesmo em Portugal, onde o populismo de extrema-direita acaba de chegar ao Parlamento, não tenho dúvidas que o objectivo será criar um novo tipo de autoritarismo – se conseguirem uma coligação com outros partidos à direita.
A actual democracia tem muitos problemas, mas ainda assim acredito que é um regime muito melhor do que qualquer autoritarismo.
A História nunca se repete. O passado já cá não está. Está morto. Mas deixa influências e pode ter parecenças. Só que com base no que se aprende com o passado não é possível prever o futuro. Ninguém pode dizer se vamos voltar a ter uma ditadura. Não sabemos que mulher poderá ter aspirações a ser ditadora. Sabemos de alguns homens que têm essa pretensão, mas isso não significa que venham a concretizá-la.
As redes sociais – que eu também utilizo – são agora o espaço onde tudo se passa e tudo é discutido. E tudo tem de ser rapidamente discutido. Mas muitos temas não se compadecem com discussões breves e superficiais sobre os temas.
Com estas novas tecnologias, ainda não sabemos muito bem aonde é que isto poderá ir. Pensava-se que iriam melhorar a qualidade de vida das pessoas, que iriam democratizar a informação. Mas alguns efeitos perversos não foram previstos.
O que eu não percebo é porque é que, apesar de haver redes sociais, as pessoas já não lêem. Há uma tendência mundial para a ausência de leitura. As redes sociais vieram substituir qualquer leitura. Pelos estudos de opinião, percebemos que há menos pessoas a comprarem livros. E quando compram, a lerem.
É como se a linguagem rápida das redes sociais tivesse substituído a leitura. E isso era um efeito que não poderíamos ter previsto nem no final do século XX.
Tem de haver uma intervenção ética. Não sei como, porque acho que a polarização está muito ligada a uma ausência de ética, de empatia pelo outro. A ética tem de estar baseada na empatia e não na concorrência frenética de uns contra os outros.
Não é com políticas que se chega lá. Mas com uma regra-chave: alargamento e manutenção da democracia. Porque é o regime que permite haver troca de ideias e também aquele que transmite uma ética empática.
Eu chego sempre aí! Enquanto se está a destruir a disciplina de História e de Filosofia, no sentido de desvalorizá-las e substituí-las em termos temporais por outras coisas, em última análise, está-se a provocar polarização. Porque a Filosofia ensina-nos a pensar, a raciocinar, e a História dá-nos o contexto, explica o que aconteceu.
Eu tive de aprender latim e na altura não valorizei. Mas a universalidade de podermos estar em contacto através da língua, ensina-nos a socializar com os outros.
Isso é um aspecto muito positivo hoje: as pessoas estão muito menos isoladas nos seus países e são muito mais cosmopolitas. E têm é de alimentar esse espírito, que é anti-polarizador. Respeitar outras culturas, diferentes religiões…
Claramente. Isso preocupa-me muito. Especialmente ao nível da juventude. Porque as pessoas da minha idade já não vão mudar muito: o que têm de mau e o que têm de bom.
As redes sociais foram importantes durante a pandemia e os confinamentos. Eu utilizei imenso, para falar com as pessoas e para debater questões. Isso é muito bom.
Agora, quando ainda se está na adolescência, deve ser muito mau estar só – isolado.
É muito difícil de responder. Porque, no fundo, o que tem acontecido é censura. Mas não escondo que fiquei muito contente quando o Trump ficou proibido de frequentar o Facebook e o Twitter – porque ele instrumentalizou estas redes ao serviço da mentira. Por outro lado, reconheço que é difícil escolher quem toma essas decisões.
Acho que sim, que há coisas que deviam ser proibidas no discurso nas redes sociais e nos media: o racismo, o sexismo, a homofobia, ameaças de morte. Porque são precisamente temas e questões que polarizam as pessoas e infringem a ética.
A polarização divide homens de mulheres, velhos e novos, pobres e ricos, opções políticas mais à esquerda ou mais à direita, vacinados e não vacinados.
É importante perceber que podemos recuar em qualquer altura.
O acordo ortográfico utilizado neste artigo foi definido pelo autor
Reveja o Fronteiras XXI “Radicalismo: deixámos de saber dialogar?”