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Porquinho Babe

Comeria um porquinho chamado Babe?

«A masculinidade está muito associada ao abate de animais. Mas a maioria das mulheres não consegue assistir, porque são elas que alimentam os animais e cuidam deles diariamente. Muitas acabam por criar laços, sobretudo com suínos», explica nesta entrevista o investigador Rui Pedro Fonseca. «Isso só mostra que o estatuto dos animais de pecuária pode mudar consoante a nossa percepção e a experiência que temos.»
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Acreditava que era um cão e falava como gente. “Um Porquinho Chamado Babe” distinguia-se dos restantes animais de pecuária porque estava insatisfeito com a função atribuída à sua espécie. Mas foi isso que lhe conquistou o papel de protagonista de um filme que, acredite-se ou não, foi nomeado para sete Óscares da Academia. Fora da ficção, a produção de animais envolve muito menos ar livre, espaço e harmonia entre as espécies. Aliás, frisa o sociólogo Rui Pedro Fonseca “o tipo de produção é maioritariamente intensivo em Portugal”. Nesta entrevista, o autor do livro “A Vaca Que Não Ri”, que fez também um estudo sobre os trabalhadores dos matadouros, fala do impacto que as representações culturais de animais de pecuária têm no aumento do consumo de carne. E defende que uma maior proximidade física com os animais “comestíveis” pode mudar a forma como são tratados e classificados.

Culturalmente, distinguimos entre animais de companhia, de quinta e selvagens?

Sim, nós atribuímos diferentes significados e valores às várias espécies de animais. As classificações variam consoante o contexto cultural e regional, não são homogéneas em todo o planeta. Se formos a alguns países orientais, cães e gatos são comestíveis. Para nós, no Ocidente, não são. Aliás, para muitas pessoas esse cenário é impensável, revoltante. Mas não tem a ver com o sabor. Porque se os ditos animais de companhia são comidos noutras zonas do mundo, é porque conferem prazer durante o seu consumo.

Como é que essa diferenciação ganha raízes?

Ninguém nasce a pensar desta forma. São ideias que nos são inculcadas e constantemente reforçadas por parte da cultura que nos gravita e que nós reproduzimos. As diferenciações entre espécies de animais implicam um processo de socialização bastante intenso, na família e na escola. Mas também vão sendo reforçadas através das representações culturais e dos media. Nós aprendemos desde cedo a cuidar de cães e de gatos e a distanciarmo-nos física, ética e moralmente dos ditos animais de consumo. De tal forma, que não questionamos porque é que comemos o porco e não o cão. Tornam-se percepções inquestionadas.

Terá a Internet influenciado a forma como as novas gerações vêem os animais?

Houve um afastamento progressivo das pessoas dos animais de pecuária depois da década de 80. A maioria dos indivíduos das novas gerações nunca tocou num. Eles conhecem a carne, mas não os animais que deram origem a este tipo de produto. Porque as suas representações, na escola, nos contos infantis e nos media, nunca mostram os processos de maneio e de abate. A parte desagradável é omitida. Já as representações de animais de companhia na Internet reforçam as ligações positivas que temos com eles. Resultado, são cada vez mais valorizados. Sobretudo em contextos urbanos. E a própria legislação está a acompanhar esta tendência.

A legislação caminha no sentido de reconhecer a todos os animais os mesmos direitos?

Creio que não. Particularmente em relação aos animais de produção pecuária. Não há nenhum bem-estar num local de produção e de abate. Mesmo no interior do país, onde ainda há uma relação ancestral com os animais de pecuária, a maioria das pessoas que lida com eles não é capaz de assistir ao abate. Os próprios trabalhadores dos matadouros reconhecem haver animais que choram e outros que fingem estar atordoados para tentarem fugir da linha.

E quem abate os animais, como é que lida com a sua profissão?

As pessoas estão descentradas. Quem lá trabalha tem que se condicionar para não sentir. Porque os animais experienciam terror, pânico, medo. Só entra na linha de abate quem consegue lá estar. Do que pude observar, são sobretudo homens. Pessoas que quando eram crianças observaram ou participaram no processo de abate de animais por iniciativa de outros homens da família.

No abate, o papel do homem é maior?

Sim, a masculinidade está muito associada ao abate de animais. É um factor que influencia os comportamentos que as pessoas têm naquele momento. A maioria das mulheres não consegue assistir, porque são elas que alimentam os animais e cuidam deles diariamente. Muitas acabam por criar laços, sobretudo com suínos. Alguns desses animais passam para um estatuto doméstico e deixam de ser abatíveis. Isso só mostra que o estatuto dos animais de pecuária pode mudar consoante a nossa percepção e a experiência que temos.

Quem produz e abate animais consome carne?

Não encontrei pessoas vegetarianas nem veganas nestes contextos. Mas muitas pessoas conhecem estes animais, reconhecem que tiveram uma relação de proximidade e não os consomem. Sobretudo mulheres, porque associam os fragmentos (bifanas, enchidos, etc.) ao animal no seu todo e não são capazes de o comer.

Diz-se que faz parte da nossa cultura gastronómica comer carne. Mas há meio século a proteína animal não parecia ter o peso que tem hoje.

Por ser tão mais rara, o consumo de carne estava associado ao status socioeconómico. Hoje, as pessoas comem mais carne por privilégio antropocêntrico: porque sentem ter esse direito. Além disso, o seu consumo continua a ser amplamente incentivado, mediaticamente, pelas escolas, pela família, pelos pares. A questão do paladar e do prazer também é incontornável. Mas tudo isto é ajudado pelo facto de estarmos cada vez mais afastados dos animais. Nós não vemos o porco como indivíduo; é carne, chouriço, bifanas, etc.

Que mecanismos são usados para estimular o consumo de carne?

Normalmente, os animais de pecuária são representados em contextos muito diferentes da realidade. O próprio sector de agro-pecuária admite que o tipo de produção é maioritariamente intensivo em Portugal. Se estes animais estão confinados, como é que, por exemplo, as marcas de lacticínios podem representar os animais em contextos completamente irreais?

A passear livremente em prados verdejantes?

Exactamente. Há pouco fez uso de uma expressão interessante: “animais de quinta”. É incrível que esta imagem subsista, porque o sistema de produção está completamente modificado. Mas as representações mantêm-se iguais às da época pré-industrial. Ou seja, a vaca tem um nome, pasta no alto das montanhas em prados verdejantes com a sua cria que também tem nome e mantém uma relação harmoniosa com o produtor. Quando, por definição, não o é.

Por vezes, os animais são representados com características humanas.

Sim, “A Vaca que Ri” é um bom exemplo. Apresenta-se como um animal bípede, que sorri e oferece-se para consumo aos consumidores. Há uma inversão total daquilo que acontece na realidade.

Sempre olhámos para os animais de uma forma utilitária. Porque é que agora beneficiamos uns em detrimento de outros?

É uma postura antropocêntrica. Acreditamos profundamente que já que possuímos uma capacidade cognitiva superior à das demais espécies, temos o privilégio e o direito de usufruirmos delas. Hoje em dia estas classificações são ainda mais notórias em contextos urbanos. No meio rural, um animal de pecuária pode transpor a barreira e passar a ser animal de companhia. Isso não acontece em contexto urbano. As barreiras tendem a ser cada vez mais fixas. A única forma de reverter isso seria mostrar a verdade. Era preciso que os jornalistas se interessassem pelos contextos de abate dos animais usados para fins alimentares.

A indústria agro-pecuária tem interesse em abrir as portas e revelar essa realidade?

Não tem interesse. Há uma agenda manifestamente económica. É muito difícil conseguir fazê-lo. Mas é possível ser feito.

 

O acordo ortográfico utilizado neste artigo foi definido pelo autor

 

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