50 anos para agradecer o fim da guerra
Joaquim Soares esteve na Guiné-Bissau em 1968. Viveu o pior da guerra colonial naquele país. Prometeu a si mesmo: «Se sair daqui com vida, a primeira coisa que vou fazer é ir a Fátima.» A sua história ocupa um capítulo do livro 'Peregrinações'. É esse capítulo que aqui revelamos.
«Guiné-Bissau, 1968. Naquela noite "escura e quente", Joaquim Soares, um rapaz de 18 anos, patrulhava o mato, na zona de Gandembel, no sul do país, com mais 20 soldados da sua companhia. "Fomos apanhados numa emboscada terrível. Não sei como sobrevivi. Os corpos voavam e desfaziam-se nas árvores." [A guerra na Guiné fez 2.069 mortos entre os militares portugueses (1.240 em combate, 207 em acidentes com arma de fogo, 153 em acidentes de viação e 469 por outras causas). Houve ainda 3.830 que voltaram para casa com deficiências.] Desesperado, regressou a correr para as trincheiras – umas valas toscas escavadas quase um metro abaixo do solo onde se refugiara nas últimas semanas. E ali, no "meio do terror" e das "térmitas", lembrou-se de Deus e da Virgem Maria. "Se sair daqui com vida, a primeira coisa que vou fazer é ir a Fátima", decidiu.
Joaquim nunca tinha "ligado muito à religião". Em casa "não se pensava sobre isso". A mãe era doméstica e o pai operário numa fábrica de farinhas, em Vila Nova de Gaia. Levavam os sete filhos à missa, mas não conversavam sobre o tema. Foi na Guerra Colonial, para onde foi enviado, de barco, a 17 de Janeiro de 1968 – a data está tatuada no braço –, que Joaquim aprendeu a rezar o Terço, a oração de devoção a Maria, mãe de Cristo. Foram outros soldados que lha ensinaram. "Podíamos nem saber bem o Pai-Nosso ou a Ave-Maria, mas era a intenção que contava. O mais importante era chegar ao Céu e tenho a certeza que lá em cima me ouviam."
Era em Fátima que pensava quando via outros portugueses mutilados pelas explosões das granadas ou esqueletos humanos decepados por animais selvagens numa noite. "Nunca sabia se acordava no dia seguinte." Quando chegou à Guiné, ainda tentou fugir ao "corredor da morte", a zona de mato no Sul onde esteve um ano e meio. "Primeiro, fiquei dois meses na zona norte. Ali a guerra era uma maravilha: havia tabancas [palavra crioula para designar aldeias] e raparigas." Como estava a gostar, engendrou uma estratégia para não ser transferido. "Achei que se arrancasse uma unha do pé, a sangue-frio, ficaria sentadinho a descansar. Só resultou uma semana. Depois o capitão mandou-me alinhar, mesmo com infecção." Foi mandado para o Sul. "Começou o inferno."
Apesar do horror, escapou ileso. Regressou a Portugal em Dezembro de 1970, quase três anos após a partida, e em Maio do ano seguinte, no aniversário das aparições de Fátima, cumpriu a promessa. Vestiu o fato camuflado que usava na Guiné, calçou as botas da tropa e fez-se à estrada com uma irmã e um irmão. Partiram sem planeamento – dormiam onde calhava, em palheiros e alpendres e comiam nas tascas. "Na zona de Coimbra estava um calor infernal. Não havia sítio para nos abrigarmos e aquela roupa era quente como lume", recorda o ex-combatente, que trabalhou a vida quase toda numa loja de electrodomésticos, no Porto.
Caminhava cerca de 50 quilómetros por dia – sempre com a roupa de guerra. Entrou fardado no santuário a 10 de Maio de 1971, cansado, sujo, mas feliz. "Foi um dia de vitória: estava vivo." A guerra tinha ficado para trás. E a promessa estava paga, mas depois – garante – "há qualquer coisa que nos chama ao caminho." No ano seguinte voltou e nunca mais conseguiu parar – em 2017 completa a 46.ª peregrinação (tem 70 anos). Em 2015, uma amiga da paróquia ofereceu-lhe um prato comemorativo dos 50 anos de caminhada. Joaquim nunca tinha pensado há quantos anos ia a Fátima, mas percebeu rapidamente que a data não batia certo. "Até me senti mal. Fiquei com peso na consciência." Depois de explicar o equívoco à amiga – ela manteve a oferta e Joaquim pendurou-a na parede do hall de sua casa – tomou uma nova resolução: continuaria a ir a pé até completar 50 anos de caminhadas.
Após a estreia, com a promessa paga, passou a iniciar as peregrinações em Santo Ovídio, Vila Nova de Gaia – os irmãos moravam na cidade. "Ia de camioneta até lá." Nos primeiros anos, faziam o percurso até aos Carvalhos, 15 quilómetros a sul do Porto, pela auto-estrada. "Era mais rápido", diz. Depois, a polícia começou a "chateá-los". "O guarda apareceu e mandou-nos saltar o muro. Por duas vezes, continuámos o caminho – ele arrancou com o carro e nós seguimos. À terceira, tivemos mesmo de sair. Não arredou pé, enquanto não nos viu saltar para o outro lado." Joaquim desistia assim da A1. Perceberia, mais tarde, que a diferença daquele troço em relação à estrada nacional era de pouco mais de 500 metros.
Por norma, faz a primeira etapa até São João da Madeira a 25 de Abril, para aproveitar o feriado. Nesse dia, regressa a casa, no Porto, e depois parte definitivamente a 7 de Maio. "Antes fazia Santo Ovídio-Águeda num só dia: 72 quilómetros. Ficava de rastos." Tudo mudou quando duas peregrinas – "uma muito gorda, outra muito magra" – lhe pediram para se juntar ao grupo, habitualmente de oito ou nove pessoas. Como o ex-combatente achou que não iam aguentar, resolveu fazer um teste até São João da Madeira. Ficou surpreendido: ambas chegaram em boas condições, prontas a ir a Fátima. O esquema de fazer o primeiro dia, quase duas semanas antes, manteve-se até hoje.
Há quase 50 anos que Joaquim pisa o santuário a 10 de Maio, 200 quilómetros depois de ter saído de casa. Não esconde que ir a pé é difícil. "O caminho custa, tal como a vida. Às vezes fico com bolhas nos pés, mas rebento-as com linha e agulha, desinfecto e passa." Leva sempre pouca coisa: uma mochila com "umas t-shirtzinhas, uns pares de meias, uns sapatos, um carregador [para o telemóvel] e pouco mais". Fica em Fátima normalmente três dias para as celebrações e aproveita para se confessar e para intensificar a oração. Só houve um ano em que chegou sozinho.
Os irmãos não puderam ir. "A minha mulher disse-me: 'Se eles não vão, não vais'. 'Calminha, Laura, eu é que sei'. Depois, pensei, pensei e quando chegou o dia, fui." Esteve quase três dias em silêncio. "Disse as primeiras frases a uma moça, em Pombal."
Não teve medo de ir sozinho?
Não. Então se vou para Fátima, vou ter medo? Só tem medo quem não anda com Deus.
Reza pelos outros?
Sim, pela família, pelos amigos. Há uns dias disseram-me para pedir a Nossa Senhora por um casamento que não está muito bem – até me custa falar nisto. Também vou pela paz no mundo, para que o Trump [Presidente dos Estados Unidos] tenha juízo e não faça asneiras.
A devoção está espelhada um pouco por toda a casa do peregrino, uma moradia modesta num bairro, no centro do Porto. Todos os dias reza o Terço com a mulher às cinco da tarde, numa espécie de capela caseira. Chama-lhe quarto das orações, um espaço com pouco mais de 5m2 com bíblias, oratórios, imagens de Nossa Senhora de Fátima, de São João Baptista e Padre Pio. Há relógios de madeira e desenhos a carvão, todos feitos por Joaquim. "Sempre gostei de trabalhos manuais. Até fiz um curso", diz o ex-combatente, que distribui a comunhão aos doentes na paróquia do Bonfim e nunca falta à missa. Olha para uma das imagens de Nossa Senhora e explica com simplicidade: "Pertencia à minha mãe. Esta caixa de vidro à volta era de uma garrafa de uísque que aproveitei." Também há terços e calendários de parede, evocando as aparições da Cova da Iria. "Desconfio que sem Fátima a minha vida não existia."
O livro 'Peregrinos', da autoria de Ana Catarina André e Sara Capelo, está disponível na loja online da Fundação (com 10% de desconto, portes de envio gratuitos e possibilidade de pagamento via Multibanco).
A apresentação do livro está marcada para 7 de Abril às 16:45, na sede da Rádio Renascença em Lisboa. Inscreva-se para assistir.
O acordo ortográfico utilizado neste artigo foi definido pelo autor.