«É mais importante para Portugal que os politécnicos cumpram a missão para que foram criados»
O ensino politécnico foi concebido como Ensino Superior de curta duração, com o objectivo de formação de técnicos especialistas de nível intermédio.
Esta importante missão foi reafirmada, desde há 40 anos, por todos os governos e leis, porque corresponde a necessidades objectivas dos portugueses e do país. Colocada ao lado da missão das universidades, deu origem ao chamado “sistema binário” na organização do Ensino Superior português.
O sistema binário corresponde à existência de duas missões distintas para o Ensino Superior no plano da formação: as formações técnicas curtas, destinadas a profissões existentes para as quais a formação necessária excede a que pode ser proporcionada pelo Ensino Secundário (exemplos: técnicas de engenharia, contabilidade, enfermagem, tecnologias de saúde, técnicas agrícolas, formação de professores do 1.º e 2.º ciclo do Ensino Básico, artes performativas); e as formações longas, sejam as profissionalmente mais direccionadas, com necessidade de estudos extensos (exemplos: medicina, engenharia, direito), sejam as formações culturais, científicas e tecnológicas mais profundas e abrangentes (exemplos: humanidades, ciências exactas e naturais, ciências sociais e económicas). A primeira destas missões cabe ao ensino politécnico, a segunda ao ensino universitário.
Uma tal distinção de missões poderia ter sido operacionalizada de várias maneiras, fosse no plano institucional fosse através de diferentes “catálogos” de formações. A mesma questão põe-se em todos os países. A via da separação institucional é a solução mais frequente e foi também a escolhida entre nós.
O critério de distinção das formações politécnicas relativamente às universitárias – duração curta e carácter técnico dos cursos – não tem sido fácil de levar à prática, havendo alguma sobreposição de cursos e designações entre os dois subsistemas, com culpas de ambas as partes. Mais grave do que isso é que, desde cedo, uma parte dos dirigentes dos institutos politécnicos públicos começou a fazer campanha pela alteração da missão das suas instituições. Os cursos nelas ministrados eram geralmente de três anos, com a designação de bacharelato (nome que também existira nas universidades). Logo em meados dos anos 80 nasceram nos politécnicos os Cursos de Estudos Superiores Especializados, que, justapostos aos bacharelatos, ficavam, para alguns efeitos, equiparados às licenciaturas universitárias. Dez anos depois, os politécnicos passaram legalmente a conferir o grau de licenciado e começaram a reclamar a possibilidade de organizar mestrados. Mais dez anos e a reforma de Bolonha [...] rebaptizou os cursos de três anos como licenciaturas e as antigas licenciaturas como mestrados, começando alguns dirigentes dos institutos politécnicos públicos a afirmar que deveriam também conferir doutoramentos.
O argumento é quase sempre o mesmo: um défice de prestígio ou consideração social em comparação com as universidades. Mais recentemente, alguns dirigentes afirmam que os politécnicos devem poder conferir doutoramentos porque teriam as competências para tal, e chamar-se universidades. O argumento do “prestígio pelo nome” é muito português. No nosso país julga-se ainda que o valor das coisas vem do nome que têm. Mudar o nome das coisas, em Portugal, substitui muitas vezes para efeitos de imagem o mudar das próprias coisas. Quanto à possibilidade de conferir o grau de doutor, diz-se que a actual restrição é uma limitação à actividade dos politécnicos e ao seu desenvolvimento institucional. Fala-se também na necessidade de os politécnicos formarem o seu corpo docente.
Talvez estas reivindicações sejam um último afloramento de uma visão antiquada de um Ensino Superior “formador-de-doutores”, em que as pessoas têm as expectativas dos pais na cabeça, num mundo que já não existe. As mudanças reclamadas por alguns dirigentes seriam, se concretizadas, um grave erro no plano das políticas públicas e uma péssima notícia para o país, com os politécnicos a afastarem-se irremediavelmente da sua missão original.
Em primeiro lugar, o prestígio e o reconhecimento social vêm, devem vir, antes de tudo, de se cumprir bem a missão que nos foi atribuída. Em segundo lugar, o nome não é o mesmo que a coisa: algumas das melhores instituições de Ensino Superior do mundo chamam-se institutos politécnicos, ou escolas politécnicas, ou institutos de tecnologia: não consta que o nome lhes faça mal algum (para já não falar do “prestígio” das várias universidades portuguesas encerradas por indecente e má figura...). Finalmente, Portugal não precisa seguramente de mais universidades, ainda por cima fracas como universidades.
Mas a questão crucial é a da missão dos institutos politécnicos. Em nenhum dos considerandos dos referidos dirigentes há uma única referência à missão dos politécnicos, os quais neste momento – está claro para todos, incluindo os sucessivos governos – têm a enorme responsabilidade de alargar a base de “recrutamento” de jovens (e adultos) para o Ensino Superior, mediante o desenvolvimento consistente de formações curtas, fortemente profissionalizantes, em ligação com as economias dos seus territórios de implantação. O cumprimento da missão dos politécnicos não é opcional e está muito acima de interesses particulares e “estratégias de desenvolvimento”. É mais importante para Portugal que os politécnicos cumpram a missão para que foram criados – e que é mais actual do que nunca – do que andem à procura de um pseudo-status na secretaria. O ponto está aqui: os politécnicos existem para corresponder a missões e necessidades específicas, não existem para satisfazer os interesses, inclinações ou vontades dos seus dirigentes ou de alguns dos seus docentes.
E temos um facto simples: se os politécnicos abandonassem a missão que lhes está cometida pelo país, essa missão e as necessidades que a justificam não desapareceriam. Portugal teria de investir na criação de uma nova rede de instituições para cumprir a crucial missão abandonada: a de aumentar o número de portugueses com formação pós-secundária, mediante a diversificação da oferta e a aposta nos cursos curtos, técnicos, profissionalizantes, tão importantes para a eliminação do tão falado 'skills mismatch' – o desencontro entre os recursos humanos existentes e as necessidades da economia – e portanto para a criação de emprego e o desenvolvimento do país. Ou seja: Portugal teria de criar o ensino politécnico outra vez, porque os actuais politécnicos, em busca de prestígios miríficos, teriam fugido à sua missão.
Quanto ao argumento da necessidade de os politécnicos formarem o seu corpo docente, bastará referir que por todo o lado a tendência é para o afastamento desse modelo e para o abrir de oportunidades aos jovens doutorados.
A única via institucional possível alternativa à actual seria, não a transformação dos politécnicos em universidades, mas a integração dos politécnicos em universidades (o modelo de Aveiro e do Algarve), ou em regiões académicas dirigidas pelas universidades. Isto resolveria vários problemas, desde a maior racionalização e articulação dos cursos a uma gestão dos recursos humanos com mais eficiência. Mas seria uma solução exigente em matéria de energia e “capital político”, já que provavelmente nem as universidades nem os politécnicos, por motivos diferentes, a veriam com bons olhos.
É sempre difícil defender um interesse público relativamente abstracto e não imediato contra pretensões sectoriais agressivas. Que nunca nenhum governo até hoje tenha cedido na questão dos politécnicos mostra bem como é claro e importante o que está em causa.
João Filipe Queiró é autor do ensaio O Ensino Superior em Portugal, publicado pela FFMS.
O acordo ortográfico utilizado neste artigo foi definido pelo autor.