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A minha história

A minha história

Artigo do músico Slow J com uma perspectiva pessoal sobre mobilidade social e liberdade.
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«A capacidade de mobilidade social está sempre totalmente dentro de cada pessoa. Na sua capacidade de sonhar e na confiança para correr atrás dos seus sonhos. Como diz Tony Robins, “the key factor is never resources, it’s resourcefulness”. Os limites estão dentro das nossas cabeças.»

 

Vou começar este texto com uma situação recente da minha vida, porque esta em especifico é uma daquelas de que provavelmente nunca mais me vou esquecer.

É domingo, estou em Cascais na casa dos meus pais a jantar (num condomínio daqueles bonitinhos que parecem sítios para onde só se vai de férias, com piscina, palmeiras, etc.). O meu pai abriu um tinto daqueles que só se abrem nas ocasiões especias. Estamos a celebrar.

Acabei de dar um dos maiores concertos da minha vida no Super Bock Super Rock: a pala do Siza estava cheia de um lado ao outro com as pessoas a cantarem o meu álbum de estreia. E só para pôr a cereja no topo do bolo, acabei de vir de casa do Rui Veloso, uma das minhas maiores referências como músico e como pessoa que eu quero ser quando for grande (foi incrível). “De abuso”, ainda tenho um concerto marcado para tocar pela primeira vez em Londres. Voamos amanhã de manhã (thank you, Vhils).

Neste momento, a minha vida não está nada longe das coisas mais inatingiveis que eu arrisquei sonhar.

Voltando ao jantar,

Sentamos-nos na varanda, para eu fumar um cigarro, e o meu pai diz-me que está realmente orgulhoso. Confessou-me que há coisa de cinco ouseis anos, quando eu lhe disse que queria mesmo seguir uma carreira na música, ele, por mais que acreditasse em mim, teve um certo medo de que não corresse bem. Hoje sentia que devia ter acreditado mais nos seus próprios sonhos. (e se estiveres a ler isto, não é só devias, é deves!)

Este senhor que me criou juntamente com a minha mãe vem de uma família muito pobre, tal como ela. O penúltimo de seis irmãos de uma família angolana que veio para Portugal para fugir à guerra, ficou com um traço de personalidade - extremamente demarcado - de querer facilitar a vida às pessoas à sua volta. Constantemente focado em ajudar, simplificar, aliviar, etc. É um daqueles que querem tomar conta de toda a gente, esquecendo-se frequentemente de si próprios. (Se está a ler isto provavelmente também conhece um ou dois desses malucos).

Rapidamente se destacou na escola, tornando-se um dos melhores alunos, pagou a universidade trabalhando na tropa e estudando em pós-laboral, sobrando ainda qualquer coisa para ajudar lá em casa. Do curso de economia seguiu para a banca, onde foi subindo para cargos de gestão mais altos cá e em Angola o que nos trouxe ao tal condomínio em Cascais, à possibilidade de eu estudar engenharia de som em Londres e de eu, o meu irmão e a minha mãe termos acesso a tudo o que precisávamos. Nunca procurámos grandes luxos - aliás, a humildade e a moderação foram-nos incutidas desde que me lembro.

Quando me falam em mobilidade social é a primeira história que me vem à cabeça, por motivos óbvios.

A parte que não fica aqui contada, salvaguardando juízos de valor em relação ao homem que deu a sua vida para que eu tivesse a minha, é o preço de nos esquecermos dos nossos sonhos. Porque para falarmos realmente em mobilidade social ou na possíbilidade de alguém “subir” na vida, acho que temos de começar por definir esse sítio para onde se quer subir. Sucesso, dinheiro, felicidade, liberdade? De que é feito, afinal de contas, aquilo que faz dos ricos, ricos e dos pobres, pobres? Quanto é que ganhas? Quanto é que gastas? Quanto tempo gastas para o ganhar? Quão feliz és a fazer o que fazes? Quando alguém trabalha apenas como um meio para atingir um fim, e não como um fim em si próprio, será que podemos considerar essa pessoa igualmente rica, como uma que faz por gosto e ganha o mesmo? 

 
Quando alguém trabalha apenas como um meio para atingir um fim, e não como um fim em si próprio, será que podemos considerar essa pessoa igualmente rica, como uma que faz por gosto e ganha o mesmo?

Uma definição de riqueza com a qual eu só me deparei mais recentemente veio de Robert Kiyosaki, conhecido por ter escrito o livro “Rich Dad, Poor Dad”. Para ele, a riqueza de um homem é definida pelo tempo que os seus recursos durariam se essa pessoa, por algum motivo, parasse de trabalhar. Ou seja, para ele, o meu pai e muitos dos seus vizinhos da banca, ou de consultoras, hospitais, do topo da gestão de tantas outras indústrias, vivendo vidas de classe média alta não passam de empregados de alto nível, a correr atrás do prejuízo, dos empréstimos da casa, do carro, das férias, etc.

Para compreender como eu cheguei a onde estou hoje é preciso compreender que enquanto criança toda a segurança financeira que eu experienciei era-me completamente natural, eu não a questionava. Aquilo que eu via era que o meu pai chegava a casa cansado, sem aquele entusiasmo de nos contar o seu dia. Dias esses que se acumularam em anos. Desgaste que, na minha opinião, ninguém merece e se isso é ser rico eu prefiro não o ser.

Produto dessa observação, a minha única certeza em relação ao meu caminho era e é que eu quero ser livre de fazer o que quiser, quando quiser, e de que, seja o que for que eu faça, seja feito com gosto. Foi esta vontade que me fez apostar numa carreira como músico.

Na minha ideia, sendo música uma das coisas que mais tenho prazer em fazer desde que me lembro, eu não iria precisar de mais nada. Até foi um bom começo. Lembro-me de passar 12 horas por dia, dias a fio, a trabalhar e de a minha atenção estar tão focada que me conseguia esquecer de comer, dormir, ir à universidade, etc.

Acontece que a vida nunca é preto ou branco, e no processo de finalizar o meu primeiro álbum tive uma surpresa que me veio acordar para toda uma camada da realidade que até ali me estava vedada. A de dentro.

Ao fim de dois anos de trabalho intensivo, o álbum estava atrasado e eu bastante desequilibrado pelo modo de vida tão unidimensional que estava a levar. Cheguei a um ponto em que sentia que cada vez que eu tocava no álbum ele ficava pior. E ainda havia muito trabalho pela frente.

Forçado a parar, viajei para Bristol para visitar a minha namorada. Cheguei e fiquei imediatamente doente. Senti o meu corpo a limpar. Ela foi a primeira pessoa que me mostrou a meditação. Meditar naquele momento da minha vida mudou tudo. 

(Gostaria de frisar que o importante aqui não é esta prática específica mas sim o ir para dentro, o descobrir de toda uma camada de pensamentos frenéticos que me toldavam a visão a ponto de não conseguir gostar de estar a fazer aquilo que eu mais gosto de fazer.)

Ao fim de uma semana voltei a olhar para o álbum e todas as respostas que antes me pareciam impossíveis de encontrar estavam claras e “escarrapachadas” à minha frente. Senti que antes desse momento era eu próprio que, inconscientemente, não as queria encontrar.

O meu pai chegava a casa cansado, sem aquele entusiasmo de nos contar o seu dia. Dias esses que se acumularam em anos. Desgaste que, na minha opinião, ninguém merece e se isso é ser rico eu prefiro não o ser.

Hoje em dia acredito veemente que a realidade à minha volta reflecte aquilo que está dentro de mim e que não há limites para o que pode ser desbloqueado fora, desde que seja primeiro desbloqueado dentro.

Foi inacreditável meses depois apresentar esse mesmo álbum ao público, esgotando uma sala que tanta gente me disse que não íamos conseguir encher, pagar a renda de casa com a profissão que tanta gente dizia que não ia dar dinheiro e fazer tantas salas de norte a sul do país, com tanta gente a cantar esse álbum como se fosse deles. Até ao Super Bock, ao Rui Veloso, a Londres e a esse jantar. O resto da história hei-de a contar depois de a viver.

Hoje em dia procuro antes de mais estar em paz, ser feliz, fazer coisas que me fazem bem. Daí garanto que consigo aproveitar realmente quando faço aquilo que gosto (e quando surgem umas coisinhas mais chatas também). Daí enriqueço, em todos os sentidos. À medida que vou crescendo e me vou conhecendo por dentro, as ideias aumentam, as oportunidades aparecem, às vezes até já lá estavam mas o turbilhão das ideias não me permitia vê-las como tal. E é curioso como sinto que ao início, mesmo "fazendo o que gosto”, estava a criar para mim exactamente a realidade que eu associava ao trabalho do meu pai e que lutava tanto por evitar. Neste momento estou eu a escrever um artigo para a Fundação Francisco Manuel Dos Santos e a adorar o processo. A vida é engraçada, mesmo.

Concluindo,
Na minha opinião, a capacidade de mobilidade social está sempre totalmente dentro de cada pessoa. Na sua capacidade de sonhar e na confiança para correr atrás dos seus sonhos. Como diz Tony Robins, “the key factor is never resources, it’s resourcefulness”. Os limites estão dentro das nossas cabeças.

Slow J é um músico português, autor dos álbuns «The free food tape» (2015) e «The art of slowing down» (2017). Visite o site oficial de Slow J e a sua página no YouTube.

O tema da mobilidade social vai estar em debate no próximo programa Fronteiras XXI, no dia 6 de Setembro, na RTP3. Será também abordado no Encontro da Fundação, a 30 de Setembro. E é tratado na mais recente edição da revista XXI, Ter Opinião

O acordo ortográfico utilizado neste artigo foi definido pelo autor.

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Portuguese, Portugal