China, o dragão disfarçado de panda
Reveja o Fronteiras XXI «A China já governa o mundo?»
Há pouco mais de 40 anos um gigante acordou da sua hibernação, na Ásia Oriental. Chama-se China. Parecia um «panda benigno», segundo Luís Tomé, professor catedrático da Universidade Autónoma de Lisboa (UAL). «Mas agora vemos o dragão», sublinha o Director do Departamento de Relações Internacionais da UAL. Nesta entrevista, o perito em Geopolítica, Defesa e Geoeconomia resume os principais objectivos da China e as suas estratégias para tentar alcançar a hegemonia mundial. E deixa um aviso: «A China é capaz de fazer uma guerra para tomar Taiwan pela força».
A razão principal resulta de um conjunto de reformas iniciadas por Deng Xiaoping, em 1978. Xiaoping assumiu que podia construir o socialismo com os meios do capitalismo e iniciou uma internacionalização progressiva da China.
Outro factor importante de referir é que as lideranças da China que se seguiram deram continuidade às reformas iniciadas por Xiaoping. Esta coerência foi a chave para o sucesso da ressurgência da China.
Depois, temos de ver a dimensão da China, que neste momento é um país com mais de 1400 milhões de pessoas. Claro que o impacto do seu crescimento económico acabou por ser muito maior devido à escala.
Não foi sempre igual. Para a China, o crescimento económico deve tirar partido das oportunidades, sem usar a força – como fizeram a Alemanha Nazi, o Japão Imperialista ou a União Soviética. Exemplo disso é o facto de, inicialmente, o crescimento económico da China ter assentado na atracção de investimento estrangeiro e na deslocalização de indústrias poluentes que estavam na América do Norte e na Europa. Elas foram para a China não só em busca de mão-de-obra barata, mas porque não havia leis laborais nem regras de protecção ambiental. Nas duas últimas décadas, a China conseguiu competir no mercado mundial porque produzia em grande quantidade e barato.
Sim, também é o maior parceiro comercial das principais economias mundiais – Estados Unidos da América (EUA) e União Europeia (UE) –, e há uns anos que ultrapassou os EUA como a maior economia do mundo em termos de Paridade de Poder de Compra e muito em breve vai ultrapassar a economia dos EUA termos de PIB nominal. Em 2019, a China destronou os EUA da posição de país que mais patentes regista. Nesse ano, colocou quatro empresas no top mundial com registo de patentes – um ranking que tem sido consecutivamente liderado pela Huawei.
Já não há só uma superpotência [EUA], a China já é uma superpotência. É o único país capaz de ombrear com os EUA em todos os domínios.
Sim. Actualmente, a China já não olha só para o estrangeiro como motor da sua economia. Começa a tirar muito partido do seu mercado interno, que soma 800 milhões de consumidores com perfil semelhante ao do consumidor médio norte-americano ou europeu. E para além destes ainda tem mais quase 700 milhões de crescimento de mercado – algo que não vai haver nem na Europa nem os EUA.
Em 2015, Xi Jinping [actual presidente da República Popular da China] lançou o programa «Made in China 2025» com objectivos expressos de tornar a China a líder mundial da IV Revolução Industrial, em áreas como a inteligência artificial, robótica, produtos farmacêuticos, etc. A energia, por exemplo, também é um sector que ganhou relevância.
O objectivo é fomentar a área cientifico-tecnológica, o poder militar, a influência político-diplomática. E estes vários domínios devem ser articulados de forma a promoverem aquilo a que chamam o Poder Nacional Abrangente.
Sim. A China mostra que é possível aliar autoritarismo político a liberalismo económico de uma forma bem-sucedida. É óbvio que este modelo é bastante atractivo para dirigentes em vários países, nomeadamente em África, na América Latina, e mesmo na Ásia. Falamos de grupos autocráticos que vêem no modelo chinês uma forma de terem um processo económico (minimizando a instabilidade social) e manterem o poder político nas suas mãos. Isto apresenta um desafio ao sistema e à ordem internacional que temos conhecido.
Sem dúvida. Porque a China não só não é uma democracia liberal como até boicota os esforços de países ocidentais na promoção dos valores da democracia e dos direitos humanos. A China instrumentaliza o princípio de não ingerência em assuntos internos. Por isso, para muitos governos, é bastante confortável o relacionamento com a China. Porque a lógica é a de ganhos mútuos, independentemente das questões internas. Se a China tem interesse em petróleo e eles querem armamento, a China vende-lhes armamento. Ainda por cima, a China tem dinheiro para construir infra-estruturas e dinheiro para emprestar. O que a torna muito atractiva e alternativa a mecanismos ocidentais tradicionais. Quer os EUA quer a Europa, para prestarem auxílio ou colaborarem com alguns países, têm cláusulas de elegibilidade como o respeito pelos direitos humanos, o respeito pelas minorias, reformas democráticas, estado de direito…
É evidente. A China era um colosso energético, mas desde 1993/94 que o consumo de energia disparou no país. Ou seja, em pouco tempo, a China deixou de ser auto-suficiente em recursos energéticos para passar a ter de importar. E tem estado a importar quantidades de petróleo e de gás natural cada vez maiores. Isto é uma condicionante para a China, porque teve de entrar em mercados abastecedores de energia e garantir rotas de abastecimento. Movida pela sede de energia, a China agora aparece na América do Sul (Venezuela e Brasil), África (Norte e Subsariana), Golfo Pérsico (Irão e Arábia Saudita), e também está a cultivar relações de proximidade neste sector com a Rússia. Estamos a assistir a mudanças profundas na geopolítica da energia.
Mas dentro de muito pouco tempo o mundo vai consumir muito menos petróleo. Talvez o gás natural demore mais, porque polui menos, mas vamos passar a ter outras fontes de energia. Isto vai ter implicações e a adaptação a uma nova realidade pode custar caro.
Pelo contrário. A China é um dos países que está na dianteira deste processo, com progressos tecnológicos significativos nesta área. Continua a consumir muitos recursos dos hidrocarbonetos convencionais, mas ao mesmo tempo é dos países que tem feito maiores investimentos e mais rapidamente na transição energética. Porque há muitos custos para a economia chinesa dos danos ambientais, até em termos de saúde pública.
O objectivo é tornar a China numa potência militar de alcance global. No fundo, ser capaz de vir a ser aquilo que os EUA já são.
A China tem estado a desenvolver as capacidades mísseis, navais e aéreas. E não esqueçamos que é uma potência nuclear. Embora o seu número de ogivas nucleares esteja longe do dos EUA, a China não precisa da paridade para conseguir o efeito de dissuasão.
Sob a liderança de Xi Jinping, vemos uma China cada vez mais ambiciosa, reivindicativa, mais assertiva, confrontacional e poderosa. Xi Jinping abandonou uma lógica de relativo low profile, como tiveram os dirigentes chineses até ele; é autoconfiante e usa expressões como «liderança chinesa», «posição dominante», «reforma do sistema internacional».
É de sublinhar que a China está cada vez mais assertiva nas suas reivindicações territoriais. O que significa que colide com os outros países com quem disputa territórios, nomeadamente a Índia. Pela primeira vez em décadas, em 2020, soldados chineses mataram soldados indianos.
Além disso, a China está a desenhar uma espécie de Mare Nostrum nos Mares da China Oriental e do Sul, tentando até impor como suas as ilhas e zonas económicas exclusivas que o Japão, a Coreia do Sul e vários países do Sudeste Asiático ocupam e reivindicam. E, por exemplo, em 2016, o Tribunal Internacional Arbitral decidiu que a China não tem razão nos seus argumentos para reivindicar quase 90% do Mar do Sul da China, mas Pequim não só não acatou essa decisão como intensificou a militarização do Mar do Sul da China.
E, ultimamente, o que a China tem estado a fazer é demonstrar que é capaz de fazer uma guerra para tomar pela força Taiwan, e que consegue impedir aos EUA acesso ao teatro de operações.
Não. O que vimos em Hong Kong, com Xi Jinping, é que acabou o país de dois sistemas. A autonomia de Hong Kong e de Macau é nula. Quando Deng Xiaoping incorpora na China primeiro Hong Kong e depois Macau, esperávamos que o regime capitalista contagiasse mais politicamente o socialista. Mas isso não aconteceu.
Por aí vemos o outro lado do poder chinês. O poder não se mede só pela capacidade de coagir, mas também pela capacidade de fazer com que indivíduos, governos e Estados se autocensurem. A margem de manobra que a China concede naquelas que são as suas reivindicações prioritárias, hoje, é nula. Atiçar o dragão pode provocar uma reacção muito negativa.
Contudo, esta postura tem custos. Sobretudo nos últimos anos, a China tem-se confrontado com reacções adversas, críticas de cada vez mais governos, grupos e indivíduos. O que é uma novidade. Tinha uma imagem de panda benigno, mas agora vemos o dragão. São os custos de ser superpotência, de o mundo ser cada vez mais bipolar.
Já deixou. Mas o perigo é que uma das coisas que quer deixar resolvidas, no seu tempo de vida, é Taiwan. Ele não segue a lógica chinesa, da paciência e planos a longo-prazo. Xi Jinping é um acelerador. Se ele quiser resolver a questão de Taiwan, isso significa que a paciência se está a esgotar. E como não há sinais de poder haver uma unificação pacífica, porque Taiwan não quer, a predisposição para usar a força é cada vez maior. No caso de a China usar a força, como alguns analistas dizem, até 2025, o dilema é saber se os EUA verdadeiramente vão intervir militarmente e arriscar a guerra contra a China.
Sem dúvida. Por um lado, os EUA não podem deixar de intervir militarmente no caso de uma invasão chinesa contra Taiwan. Caso contrário, todo o seu sistema de alianças ruiria. Seria entregar à China a liderança e a hegemonia na região e até no mundo. Isso pode ser razão para arriscar uma guerra.
Por outro lado, os riscos são tremendos. Tanto os EUA como a China têm misseis capazes de se destruírem um ao outro. O início de uma guerra com a China significa uma possível escalada para uma guerra total. Porque é que os EUA não aplicam a mesma lógica que tiveram em relação à Crimeia? Os EUA não desencadearam uma guerra com a Rússia.
Esperemos que, em primeiro lugar, não haja uso da força da China contra Taiwan. Mas a situação é delicada. No meu ponto de vista, há 50% de probabilidade de resultar numa guerra.
Exactamente. A China está a criar um mundo paralelo, sinocêntrico, com as parcerias bilaterais China-África, ou o Fórum de Macau, ou os BRICS (Brasil, Rússia, Índia, e África do Sul), ou a Organização de Cooperação de Shanghai, ou as parcerias entre a China e as Ilhas do Pacífico. São apenas alguns exemplos de um mundo criado sem o Ocidente e com a China no centro.
A China quer a hegemonia, quer que o mundo seja como a China quer que ele seja. E Xi Jinping quer provar que o sistema socialista é melhor do que o modelo capitalista. Não podemos desligar a China do Partido Comunista da China (PCC). O PCC vai buscar a sua legitimidade ao crescimento económico, à unidade da China e à sua afirmação internacional. E o grande objectivo da China é a realização do Comunismo.
A China é uma civilização e é um Estado-Nação. Tem a história mais longa e ininterrupta do mundo, com mais de 5 mil anos. Durante mais de 2 mil anos, a China foi central na Ásia Oriental. Deixou de o ser durante 150 anos. E agora está a voltar a ser central, não só nessa região, mas no mundo.
O acordo ortográfico utilizado neste artigo foi definido pelo autor