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A pobreza e a desigualdade estão a aumentar?
A pobreza e a desigualdade voltaram a diminuir depois da subida registada em 2022, revelam os mais recentes dados do INE. Mas a existência de 1,8 milhões de pessoas em pobreza monetária merece preocupação. Uma análise à situação social do país, onde cerca de um quinto da população vive em pobreza ou exclusão social.

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Portugal Desigual
A EVOLUÇÃO RECENTE DOS INDICADORES DE POBREZA, DESIGUALDADE E EXCLUSÃO SOCIAL

A evolução dos principais indicadores de desigualdade, pobreza e exclusão social divulgados pelo Instituto Nacional de Estatística (INE), a partir do Inquérito às Condições de Vida e Rendimento (ICOR), realizado em 2024, evidencia alguns sinais contraditórios, que devem ser lidos com um cuidado adicional.

Uma parte desses sinais contraditórios resulta dos diferentes períodos de observação das suas principais variáveis. Enquanto os indicadores de nível de rendimento, de desigualdade e de pobreza refletem a realidade de 2023, os indicadores de privação material e social e de exclusão social traduzem a realidade existente na data do inquérito, isto é, de março a junho de 2024.

Se em períodos de relativa estabilidade socioeconómica a coexistência destes dois períodos de observação da realidade pelo ICOR não coloca grandes problemas na análise, em alturas mais conturbadas do ponto de vista social a leitura torna-se mais complexa. Foi o que aconteceu com o ICOR 2024. Os dados do rendimento, da pobreza e da desigualdade refletem uma ligeira recuperação após a subida registada em 2022. No que respeita à incidência da pobreza a recuperação registada foi, no entanto, insuficiente para compensar a subida registada no ano anterior, mantendo-se a taxa de pobreza (16,6%) acima da ocorrida em 2022 (16,4%).


 

Em 2023, viviam em Portugal 1,8 milhões de pessoas com menos de 632 euros por mês.

A evolução dos indicadores de pobreza por grupos etários em 2023 apresenta sinais contraditórios, com a incidência de pobreza das crianças e dos adultos ativos a registar uma diminuição dos seus níveis de pobreza e a taxa de pobreza dos idosos a evidenciar um forte agravamento de quatro pontos percentuais.

Os indicadores de privação material e social mostram igualmente uma evolução ligeiramente positiva. Contudo, alguns dos indicadores mais sensíveis como, por exemplo, a existência de «Atrasos, motivados por dificuldades económicas, em algum dos pagamentos regulares» subiram, um facto a que não será alheio o agravamento dos preços, em particular os da habitação.

 

A redução das principais dimensões da pobreza

Em 2023, cerca de 1,8 milhões de residentes no país encontravam-se em situação de pobreza monetária, isto é, dispunham de um rendimento equivalente mensal inferior a 632 euros.

A intensidade da pobreza (que avalia quão pobres são os pobres) manteve-se praticamente inalterada (25,7%) também aqui claramente acima da verificada em 2021 (21,7%).

O desagravamento da pobreza refletiu-se de forma diferenciada nos vários grupos etários.

O aspeto mais saliente dos resultados do ICOR 2024 é a redução expressiva da incidência da pobreza nas crianças e jovens, cuja taxa de pobreza se reduziu de 20,7% para 17,8%. Este último valor é o mais baixo registado desde o início da publicação dos dados do ICOR, em 2003.

Em sentido oposto, o aumento de quatro pontos percentuais na taxa de pobreza dos idosos (de 17,1 em 2022 para 21,1 em 2023) acrescenta motivos de apreensão e exige uma análise mais detalhada.

Uma primeira explicação prende-se com alterações metodológicas no cálculo das pensões de velhice introduzidas no ICOR 2024, para melhorar a fiabilidade dos dados declarados, já que pela primeira vez foram integrados dados fiscais no apuramento das pensões de velhice

Uma segunda explicação radica na própria distribuição dos rendimentos dos idosos (predominantemente pensões). Utilizando os microdados do ICOR 2023 é possível verificar que no intervalo compreendido entre o limiar de pobreza de 2023 (591 euros mensais) e o limiar de pobreza de 2024 (632€) se situavam em 2022 cerca de cem mil idosos, a maior parte pensionistas. Como o limiar de pobreza subiu 6,9% entre 2022 e 2023, um valor superior ao acréscimo do rendimento equivalente, que foi de 4,1%, é plausível assumir que a subida de rendimento de uma parte desses idosos não foi suficiente para compensar a subida do limiar de pobreza. 

A análise da incidência da pobreza por tipo de família permite identificar os núcleos familiares mais vulneráveis.

Consequência do duplo efeito da diminuição da taxa de pobreza das crianças e do acréscimo da incidência da pobreza dos idosos verificou-se, pela primeira vez desde 2007, que a taxa de pobreza das famílias com crianças dependentes é menor do que a das famílias sem crianças dependentes (16,4% e 16,7%, respetivamente).

Os grupos familiares em que existe uma predominância relativa dos idosos são aqueles que registam maior aumento da sua taxa de pobreza. No caso das famílias unipessoais a taxa de pobreza subiu de 24.9% em 2022 para 28.6% em 2023. As famílias compostas por dois adultos em que pelo menos um é idoso viram a sua taxa de pobreza aumentar 3,7 pontos percentuais passando de 15,0% para 18,3%.

As famílias monoparentais e as famílias com três ou mais crianças dependentes apresentavam as taxas de pobreza mais elevadas (31,0% e 28,2%, respetivamente), tendo este último grupo registado um acréscimo muito significativo desta taxa (mais 4,7 pontos percentuais). Os dados do ICOR 2024 confirmam assim que estes dois tipos de família permanecem como as mais vulneráveis às situações de pobreza.

 

Já uma análise dos adultos  em situação de pobreza de acordo com a sua condição perante o trabalho, mostra que o desemprego permanece um dos principais fatores de pobreza.

A incidência da pobreza neste grupo social, apesar de ter diminuído 2,1 pp face a 2022, é das mais elevadas entre a população portuguesa (44,3%).

Também a proporção da população empregada que vive em situação de pobreza diminuiu ligeiramente de 10,0% para 9,2%. A existência de uma percentagem tão expressiva de indivíduos que apesar de terem emprego não conseguem evitar a pobreza não pode deixar de constituir um dos fatores mais preocupantes da situação social do país.

Como consequência do aumento da pobreza entre os idosos, a incidência da pobreza na população reformada foi aquela que mais aumentou, passando de 15,4% em 2022 para 19,6% em 2023, um valor superior ao da totalidade da população residente no país (16,6%).

A análise da incidência da pobreza na população com 18 e mais anos segundo o nível de escolaridade completado ilustra claramente o papel da educação no risco de pobreza. Quanto maior é o nível de escolaridade, menor é a taxa de pobreza.

Em 2023, em média, um indivíduo com o ensino superior tinha uma taxa de pobreza (6,5%) 3,6 vezes inferior à de uma pessoa que somente completou o ensino básico (23.,5%). Estes números revelam claramente como a escola, e de uma forma mais genérica dos níveis de qualificação, é o mais importante elemento do «elevador social» e o instrumento mais eficaz para reduzir a pobreza.

No entanto, não pode deixar de ser encarado como preocupante o facto de 6,5% das pessoas com ensino superior estarem hoje abaixo do limiar de pobreza.

Este número tem crescido de forma regular ao longo dos últimos anos: na primeira década deste século, o valor médio da taxa de pobreza deste grupo era de 3%.

Nesse sentido, deve merecer uma particular atenção das políticas públicas o problema da transição dos jovens do sistema de ensino para o mercado de trabalho e a capacidade de este último reconhecer e valorizar devidamente os níveis de qualificação dos seus empregados.

A inclusão da nova versão da Nomenclatura das Unidades Territoriais para fins Estatísticos (NUTS-2024) pelo ICOR 2024 trouxe algumas dificuldades na comparação da evolução das regiões do Continente, mas possibilitou igualmente uma análise mais fina das diferenças regionais.

As regiões autónomas dos Açores e da Madeira permanecem como as mais pobres do país, apresentando taxas de pobreza de 24,2% e 19,1% respetivamente. Salienta-se, porém, que em ambas as regiões se registou uma diminuição dos níveis de pobreza comparativamente a 2022, que foi particularmente expressiva na Região Autónoma da Madeira (menos 5,7 pontos percentuais).

No Continente destaca-se a Península de Setúbal como a região que apresenta a maior incidência da pobreza (18,7%) tendo entre 2022 e 2023 registado um agravamento de 1,8 pp. A região da Grande Lisboa é aquela que revela a menor taxa de pobreza (12,9%), que diminuiu 0.9 pp face ao ano anterior.

 

Subida dos rendimentos das famílias mais pobres e ligeira diminuição da desigualdade

Em 2023, o rendimento médio por adulto equivalente registou um acréscimo nominal de 4,1%, passando de 1197 euros mês para 1246 euros. Tendo em conta a taxa de inflação registada (4,3%) o rendimento médio das famílias, em termos reais, manteve-se praticamente inalterado.

O perfil de evolução do rendimento equivalente das famílias não foi, porém, homogéneo. De acordo com os dados publicados pelo INE, o valor do percentil 20 (a fronteira que separa os rendimentos dos 20% mais pobres das restantes famílias) aumentou em termos reais cerca de 3,5%, o que certamente contribuiu para alguma melhoria da situação económica das famílias mais vulneráveis.

O rendimento mediano registou um acréscimo real de 2,6%. Simultaneamente verificou-se uma contração dos rendimentos mais elevados. O valor do percentil 90 (que separa os rendimentos dos 10% mais ricos do rendimento das restantes famílias) diminuiu em termos reais 3,5%.

Esta correção das assimetrias na distribuição dos rendimentos, assente num aumento mais expressivo dos recursos das famílias mais pobres quando comparado com o conjunto da população e, em particular, com os rendimentos mais elevados, desempenhou um papel importante na diminuição dos principais indicadores de desigualdadeO coeficiente de Gini sofreu um desagravamento de 1,8 pontos percentuais, fixando-se no valor de 31,9%.

 

Apesar da evolução, Portugal permanece como um dos países mais desiguais da União Europeia

Uma outra forma de olhar para a evolução da desigualdade é confrontar a distância que separa o rendimento médio das pessoas na base da escala de rendimento com o daquelas que se situam no topo dessa escala.

Os índices S80/S20 e S90/S10 permitem-nos medir a desigualdade entre os extremos da distribuição do rendimento por adulto equivalente. A evolução destes indicadores é semelhante à observada para o coeficiente de Gini. Em 2023, o rendimento médio por adulto equivalente dos 10% mais ricos era cerca de 8,9 vezes superior ao dos 10% de menores rendimentos.

Tal como verificado com o coeficiente de Gini, a evolução destes indicadores reflete um alívio da desigualdade ocorrido em 2023 que, contudo, não foi ainda suficientemente amplo para repor os valores de 2019, anteriores à crise provocada pela pandemia.

Apesar da evolução positiva ocorrida em 2023, Portugal permanece como um dos países mais desiguais da União Europeia. De acordo com os dados do Eurostat, e tomando como referência os rendimentos de 2022, o nosso país era o quarto país mais desigual de toda a UE, com um coeficiente de Gini 4,1 pontos percentuais superior ao da média comunitária.

O nível de desigualdade, medido pelo coeficiente de Gini, varia entre as várias regiões do país. O arquipélago dos Açores, com um valor de 33,8% era a região com maior assimetria na distribuição dos rendimentos, cerca de 1,9 pontos percentuais acima da média nacional. No Continente, a região mais desigual é a Grande Lisboa com um coeficiente de Gini de 32,9%.

 

Privação material e social diminuiu, mas acesso à habitação e a uma alimentação adequada antecipa preocupações

Os indicadores de privação material e social revelam, ainda que de forma parcial, as situações em que é mais fortemente sentida a privação das famílias. São, assim, uma informação sobre as condições de vida da população que é complementar à obtida através dos indicadores de pobreza monetária. Estes indicadores integram o sistema de monitorização social da estratégia Europa 2030.

Em 2024, os indicadores síntese de privação registam um ligeiro decréscimo. A taxa de privação material e social fixou-se nos 11% e a taxa de privação material e social severa nos 4,3%. Estes valores constituem os valores mais baixos da série iniciada em 2016.

A comparação dos valores dos 13 indicadores de privação material e social, revela quais as situações em que a privação das famílias é mais intensamente percecionada.

Entre os indicadores que traduzem uma situação de vulnerabilidade material e social mais elevada em 2024 destacam-se: 29,9% dos inquiridos dizem que não têm capacidade para assegurar o pagamento imediato de uma despesa inesperada próxima do valor da linha de pobreza de 2022 (591 euros por mês); 15,7% declaram não terem capacidade financeira para manter a casa adequadamente aquecida; 35,4% não têm capacidade para pagar uma semana de férias, por ano fora de casa e 36,2% dos indivíduos declara a impossibilidade de substituição do mobiliário usado.

Estes indicadores refletem de uma forma muito parcial as dificuldades com que muitas famílias se confrontam no acesso a bens e serviços essenciais como a habitação, acesso à saúde e aquisição de medicamentos, etc.

Não deixa, porém, de ser significativo que um dos poucos indicadores que registam um ligeiro aumento em 2024 seja precisamente o da existência de atrasos por dificuldades económicas, em algum dos pagamentos regulares relativos a rendas, prestações de crédito ou despesas correntes da residência principal, traduzindo as dificuldades crescentes no acesso à habitação quer por via da subida das rendas ou das prestações da casa.

 

Um quinto da população mantém-se em situação de pobreza ou exclusão social em 2024

As alterações ocorridas nos indicadores de privação e de pobreza refletem-se igualmente na taxa de pobreza ou de exclusão social que é o indicador síntese utilizado pelo sistema estatístico da União Europeia no âmbito da estratégia Europa 2030 para caracterizar as famílias e as pessoas que se encontram em pelo menos uma das três situações seguintes: em situação de pobreza monetária; em situação de privação material e social severa; em situação de afastamento do mercado de trabalho, traduzida no facto de, num dado agregado, os indivíduos adultos entre os 18 e os 59 anos trabalharam em média menos de 20% do tempo de trabalho possível (baixa Intensidade laboral). 

Em 2024, 2,1 milhões de pessoas (19,7% da população) encontravam-se em situação de pobreza ou de exclusão social em Portugal.

Também no que concerne a este indicador se verificam fortes assimetrias regionais. O valor mais baixo da taxa de pobreza ou de exclusão social verifica-se na região da Grande Lisboa (16,5%). A região do Continente com maior valor é a região da Península de Setúbal com uma taxa de pobreza e exclusão social de 21.8%. Os arquipélagos dos Açores e da Madeira, apesar das descidas verificadas em 2024, apresentam os valores mais elevados neste indicador.

 

Na ausência de qualquer tipo de transferência social, a pobreza em Portugal seria de 40,3%.

Impacto das prestações sociais na redução da pobreza e das desigualdades ainda é limitado

A importância das prestações sociais na redução da incidência da pobreza pode ser observada através da comparação das «taxas de pobreza» antes e após transferências sociais. 

Tomando como referência o ano de 2023, é possível verificar que a incidência da pobreza no conjunto da população foi de 16,6%, mas que, mantendo inalterado o montante em euros que define a linha de pobreza e subtraindo ao rendimento disponível das famílias, as transferências sociais relacionadas com a doença e incapacidade, família, desemprego e inclusão social, a incidência passaria para 21,4%. 

As transferências sociais (excluindo pensões) possibilitam, assim, uma redução da incidência da pobreza em 4,8 pontos percentuais. Este efeito redutor da pobreza das transferências sociais aumentou face ao verificado em 2022 (4,2 pp) mas mantém-se ainda abaixo do ocorrido antes da crise do Covid em 2019 (5,7 pp). 

De igual forma, é possível verificar o impacto das pensões de velhice e de sobrevivência na redução da incidência da pobreza. Essa redução é de 18,9 pontos percentuais, sendo notória a importância desta fonte de rendimento nos recursos das famílias.

O que estes dados mostram é que na ausência de qualquer tipo de transferência social, e mantendo o valor do limiar de pobreza, a taxa de pobreza seria de 40,3%. Ou seja, o seu efeito atenuador da pobreza é de 23,7 pontos percentuais.

 

Distribuição de todas as prestações sociais muito desigual

Para esclarecer melhor os efeitos redistributivos das prestações sociais iremos utilizar os microdados do ICOR 2023, com dados do rendimento referentes ao ano anterior.

Em 2022, o total das prestações sociais representavam 28,1% do rendimento equivalente das famílias. Destes 23,7% correspondiam a pensões de velhice e de sobrevivência (a maioria das quais de natureza contributiva) enquanto 4,5% representava outros tipos de prestações sociais.

Analisando como o total das prestações sociais se distribui ao longo da escala de rendimentos (ver gráfico) é possível verificar que 41,9% dessas prestações se dirigia para o último quintil da distribuição (os 20% de maiores rendimentos) enquanto o primeiro quintil da população (os 20% de menores rendimentos onde se inclui a população em situação de pobreza) somente auferia 10,7% do total das prestações sociais.

 

A explicação desta distribuição profundamente assimétrica das prestações sociais reside em dois motivos: por um lado a importância que as pensões de velhice e de sobrevivência têm no total das prestações, por outro, no facto de as pensões contributivas mais elevadas geralmente estarem associadas à parte superior da distribuição dos rendimentos.

Se observarmos outras prestações predominantemente destinadas às famílias mais desfavorecidas a sua distribuição altera-se profundamente. Por exemplo, no caso das prestações sociais referentes aos apoios às famílias e à exclusão social mais de um terço (36%) são dirigidas aos 20% mais pobres.

Utilizando os dados publicados pelo Eurostat é possível verificar que, em 2022, o efeito redistributivo de todas as prestações sociais era na UE de 26,7 pontos percentuais enquanto em Portugal esse valor era de 24,8.

Se excluirmos as pensões de velhice e de sobrevivência a distância entre o nosso país e a média europeia era mais expressiva. Na UE o impacto atenuador das transferências sociais (excluindo pensões) sobre a taxa de pobreza era de 8,6 pontos percentuais enquanto em Portugal era menos de metade (4,2 pp).

 

Outros apoios com fraco impacto na redução da pobreza

Este fraco desempenho das prestações sociais, excluindo pensões, na redução da incidência da pobreza radica na conjugação de dois fatores: abrangência e eficácia. O peso das prestações sociais baseadas em condição de recursos – isto é em que a elegibilidade para receber um subsídio depende dos rendimentos serem inferiores a um determinado limiar – é claramente inferior no nosso país ao valor médio da UE. E a sua eficácia na redução da pobreza aparenta igualmente ser menor.

Mas os dados do Eurostat permitem-nos igualmente avaliar o efeito equalizador das transferências sociais na redução da desigualdade medida pelo coeficiente de Gini. Os resultados são semelhantes aos obtidos em relação à pobreza.

O efeito redistributivo de todas as prestações sociais sobre o nível de desigualdade era na UE de 18,8 pontos percentuais, enquanto em Portugal esse valor era 16.

Se excluirmos as pensões de velhice e de sobrevivência, o impacto atenuador das transferências sociais (excluindo pensões) sobre o coeficiente de Gini era de 5,1 pontos percentuais, enquanto em Portugal se ficava nos 2,6 pp. A eventual explicação desta menor capacidade igualizadora das transferências sociais é semelhante à avançada anteriormente no caso da pobreza.

Ainda que globalmente positivos quando comparados com o ano anterior, os dados do ICOR de 2024 permitem tirar ilações sobre a evolução recente das condições de vida, da desigualdade, da pobreza e da exclusão social em Portugal. E trazem igualmente novas preocupações sobre o futuro da situação social no país.

Um primeiro resultado é o de que os efeitos extremamente adversos nos níveis de pobreza e desigualdade provocados pela pandemia (em 2020) e pelo aumento dos preços (em 2022) foram, pelo menos parcialmente, revertidos, e o seu ciclo descendente retomado em 2023.

A redução da incidência da pobreza, o recuo das taxas de pobreza dos grupos mais vulneráveis (em particular das crianças e jovens), a ligeira diminuição da desigualdade e dos indicadores de privação material e social são indicadores claros de uma melhoria das condições de vida da população. 

Em Portugal, 9% dos trabalhadores vivem em pobreza, o que revela disfunções no funcionamento do mercado de trabalho.

Mas persistem fatores de extrema preocupação. Por um lado, as elevadas taxas de pobreza das famílias monoparentais e das famílias com três e mais crianças. Por outro, a persistência de 9% de trabalhadores em situação de pobreza que revela disfunções no funcionamento do mercado de trabalho quer estas resultem de baixos salários, de contratos precários ou da não valorização das qualificações dos trabalhadores.

Igualmente preocupantes são os elevados níveis de desigualdade e as fortes assimetrias regionais dos níveis de pobreza e da desigualdade.

Importa compreender o aumento da pobreza entre os idosos de forma a percebermos se é resultado apenas de alterações metodológicas no cálculo das pensões de velhice ou se tem razões mais profundas.

 

Novas realidades exigem novas políticas públicas

No entanto, grande parte destes indicadores do ICOR é baseada na distribuição dos recursos monetários das famílias que vivem em alojamentos clássicos.

Nos anos mais recentes assistiu-se no país a um acréscimo da população sem-abrigo, a uma crescente dificuldade de as famílias com maior precariedade satisfazerem um conjunto de necessidades básicas, como o pagamento das despesas com a habitação, a possibilidade de ter uma alimentação adequada ou de usufruir de uma vida social minimamente satisfatória.

O acesso a serviços essenciais como a saúde deteriorou-se fortemente. A informação recolhida pelo ICOR somente de uma forma muito mitigada permite analisar este tipo de constrangimentos sociais.

Esta nova realidade implica igualmente que, no futuro, se deveria analisar os diferentes indicadores sobre as condições de vida das famílias de uma forma mais integrada, complementando a análise da distribuição dos rendimentos com a efetiva capacidade de acesso das famílias a bens e serviços essenciais.

Nesse contexto, é importante salientar que alguns dos efeitos mais negativos e persistentes da pandemia e do aumento dos preços não tiveram a ver com a distribuição do rendimento monetário, mas sim com o forte agravamento das desigualdades no acesso a serviços básicos, nomeadamente à habitação e à saúde.

Por último, a emergência desta nova realidade também coloca novas exigências às políticas públicas que terão de conjugar medidas visando a garantia de recursos mínimos, com a necessidade de assegurar o acesso aos bens e serviços essenciais.

É esta a linha orientadora da Estratégia Nacional de Combate à Pobreza aprovada em 2021. Mas a sua aprovação é um ponto de partida e não chegada. É preciso implementá-la de forma a assegurar uma efetiva recuperação económica que assegure um crescimento e um desenvolvimento inclusivo com menos desigualdade e menos pobreza.

 

Carlos Farinha Rodrigues

Professor do ISEG, Universidade de Lisboa

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