«O meu pai morreu, para mim, no dia em que matou a minha mãe»
«Num dia de Novembro de 1993, Filipa perdeu a mãe e o pai num intervalo de segundos. [...] 'O meu pai morreu, para mim, no dia em que matou a minha mãe', diz Filipa, nome fictício para uma história verdadeira que é a sua. Passaram-se 24 anos e é como se tivesse sido ontem. [...]
Eram horas de almoço, a Casa do Povo estava ainda fechada. Havia obras à volta, pó, atalhos, uma certa desordem premonitória no ar. Francisco saiu do carro e cruzou a estrada, armado com uma caçadeira. Os olhos fixaram-se na mulher com quem estava casado há 17 anos. Rosa Maria seguia de braço dado com a filha, como era costume afectuoso entre as duas. Avistou o marido, ao longe, e percebeu imediatamente o que se ia passar. Já o adivinhava há algum tempo. O que permite chegar a esta conclusão é o gesto estudado que se seguiu ao raciocínio. Numa manobra de distracção para proteger a filha, então com 16 anos, empurrou-a para o lado esquerdo e disse: 'Vai ver o que o teu pai quer.'
Não foi preciso. Com a pontaria treinada pela prática da caça, Francisco desferiu dois tiros seguidos em Rosa Maria. [...] Filipa assistiu a tudo, gelada de terror. Só se lembra de ouvir o pai a gritar: 'Entra para o carro! Entra para o carro!' Duas ruas à frente, com um empurrão, saía à porta de casa da avó paterna, enquanto Francisco se entregava no posto mais próximo da GNR, junto com a arma do crime.
'Até nisso ele foi esperto: sabia que levar a arma iria atenuar a pena', conclui Filipa, agora com 39 anos. O pai foi julgado e condenado a 12 anos de prisão por homicídio qualificado, sentença que não cumpriu até ao fim. Ficou por provar o crime de homicídio premeditado, apesar de o plano ter sido anunciado com antecipação e pormenor:
'Ele já dizia como é que ia fazer. [...] E aí já se começou a ouvir falar, no café e na rua, nesses três meses antes do crime. As pessoas não acreditaram. Mesmo quando Francisco mostrava a planta da casa e explicava, passo a passo, a intenção que tinha em vista, as pessoas continuaram a não acreditar.' […]
'Hoje culpo-me'. Porquê? 'Por não ter percebido o que ia acontecer. Podia ter impedido.'
Extinta a raiva, ficou a saudade e uma culpa remota, talvez impossível de apagar por completo. Cada Novembro que passa aviva a memória dessa perda sem explicação racional que Filipa se esforçou por compreender: 'Com o tempo, tentei perceber o porquê de muitas coisas. Hoje, sei que um homicida acerta no que quer destruir. No caso da minha mãe, o cérebro. Porque ela era superior a ele. E ele sabia.' [...]
Aparentemente, Francisco não era homem de bater, salvo quando bebia uns copos e armava zaragata, nas reuniões de família ou nas festas da terra: 'Nas aldeias é normal isso acontecer.' Também se perdia facilmente por qualquer rabo-de-saia. 'Era um homem bonito, não faltavam mulheres atrás dele. Teve vários casos e a minha mãe aturou tudo. [...] Ele dizia o que lhe apetecia e claro que isso a magoava.'
'Muitas mulheres afirmarão o mesmo: as palavras podem doer mais do que um gesto bruto. Humilhar, ofender, rebaixar, criticar, ameaçar, mentir e manipular são verbos que causam danos reais só pelo uso da palavra. [...] Ele tinha muito o hábito de ofender a minha mãe, chamar-lhe nomes e inferiorizá-la. Dizia-lhe 'não vales nada', 'não prestas', 'és isto ou és aquilo', sobretudo se estava com os copos. Disso, eu lembro-me.'
'Não sei bem o que vai na mente de um agressor, mas eles têm picos', afirma Filipa, resumindo o círculo vicioso que a maior parte das vítimas de violência doméstica demora anos a compreender: 'Umas vezes andam extremamente agressivos, outras vezes parece que são as melhores pessoas do mundo. São muito manipuladores. E, fora de casa, são sempre fantásticos.' [...]
A imagem que Francisco passava para o exterior era a de um homem simpático e trabalhador. 'E até era, mas em casa queria ser só ele a mandar', diz Filipa. Quando Rosa quis voltar a trabalhar, para dar uma vida melhor à família, Francisco perdeu o pé. 'Foi aí que tudo se desmoronou. Quando ele deixou de ter uma mulher submissa.' [...]
Cedo a dependência económica se juntou ao controlo obsessivo, desde a roupa até às decisões que afectavam o conforto familiar. 'O dinheiro estava todo nas mãos do meu pai. Dava-lhe um x e ela tinha de se governar, à casa e aos filhos. E conseguia, porque era muito poupada, mas não podia comprar nada para ela, a não ser livros. Se comprasse um vestido, um verniz ou um batom, já era uma puta. Era assim que ele a via.' O mecanismo de projecção é típico do agressor: 'O meu pai queria, por força, que a minha mãe fosse um reflexo das más vidas em que ele andava.'
Só os livros escapavam a esta obsessão, talvez por serem vistos como inofensivos. Uma mulher que seduz pela inteligência e sensibilidade, eis uma coisa que não passa pela cabeça de alguns homens. Inconscientemente, Francisco sabia que a força de Rosa residia num lugar que ele não conseguia perscrutar. A solução foi destruí-lo. [...]
Em criança, sem se aperceber, incorporou os efeitos da misoginia do pai e necessitou de encontrar formas de se proteger do que via. [...] Um deles implicou vestir a pele de maria-rapaz, para evitar a censura que captava à sua volta. Se, aos olhos do pai, uma mulher arranjada era uma vadia, ela demonstraria o contrário: "Eu não ligava à aparência, não precisava de me sentir feminina." [...]
Contra o desejo do marido, Rosa tinha voltado a trabalhar no escritório. Não só essa decisão desafiava a ordem familiar imposta, como avivava a fraca imagem que Francisco tinha de si. "Começou a sentir-se inferiorizado", explica Filipa: "Ele não tinha estudos, a minha mãe tinha. Não falava outra língua, a minha mãe falava…" [...]
Rosa decide pedir ajuda às autoridades policiais quando os planos sinistros do marido se estendem à filha e aos seus próprios pais. [...]
No posto local da GNR, mãe e filha descrevem o terror em que vivem. Falam das intenções explícitas de Francisco e da posse da caçadeira, mas sem resultados. O guarda de serviço não aceita a queixa. Filipa recorda: 'A conversa no posto foi do género: 'Ah, a gente conhece-o, isso é ele com os copos, cão que ladra não morde, vá para casa que ele não vai fazer nada'. E pronto, fomos para casa. Tenho todo o respeito pela GNR e sei que a atitude de uma pessoa não põe em causa a instituição, mas, na altura, fiquei muito revoltada. Muito.' [...]
Rosa Maria morreria pouco depois, aos 41 anos, nas circunstâncias já descritas. A notícia não veio nos jornais.
O tempo passou. Filipa fez o luto e lidou com a perda o melhor que pôde, sem a ajuda de médicos ou psicólogos. [...]
Aos 18 anos, decidiu ingressar como voluntária no Exército. Já não queria ser freira nem partir em missão evangélica para as Filipinas. Queria aprender a disparar. Para poder matar o pai. [...]
Em Julho de 1997, Filipa chegou a Lisboa acompanhada por duas primas, com o firme propósito de se alistar no Exército. E um objectivo secreto em mente: 'O objectivo era matar o meu pai, não tinha outra ideia. No dia em que ele saísse da cadeia, eu ia estar à espera, como ele fez à minha mãe, e limpava-lhe o sebo. Era assim que imaginava, pensando em todos os pormenores com imenso prazer. Nunca tinha conhecido o meu lado negro.' [...]
A partir da cadeia, Francisco empreendeu várias tentativas para se reaproximar dos filhos. As cartas, primeiro em tom mansinho, cedo se transformaram em invectivas cruéis e ofensivas, com novas ameaças de morte extensivas à filha e aos ex-sogros. 'Ele dizia que quando saísse da prisão vinha acabar o que faltava fazer, porque quem mata um, mata mil.' [...]
'Em 1998, estou fardada para a passagem de ano, à espera do expresso para Lisboa, e ele aparece na paragem onde nos tinha visto no dia do crime, a mim e à minha mãe. E diz-me: 'Filha, posso falar contigo?' Respondi-lhe: 'Eu não o conheço, eu não tenho pai, eu sou órfã desde os 16 anos. O meu pai morreu em Novembro de 1993, na hora em que matou a minha mãe. Portanto, o senhor não me dirija a palavra'. Entrei no expresso, sentei-me e chorei a viagem toda. Pedi perdão a Deus, por ter renunciado ao quinto mandamento: honrarás pai e mãe. Mas senti um alívio muito grande. Depois de lhe ter dito aquilo, percebi que já não tinha de fazer mais nada. Já não tinha de o matar.'
Francisco morreu em Maio de 2007, de cancro no pulmão. Sozinho, no hospital. Apesar de o ter pedido, nenhum dos filhos o foi visitar. O perdão é uma resposta de natureza íntima, não há perdões melhores nem piores.»
O acordo ortográfico utilizado neste artigo foi definido pelo autor.