A imagem que construímos de nós é um pouco uma manta de retalhos
As identidades pessoais podem ser vistas como as histórias que construímos e contamos acerca de nós e que definem quem somos para nós e para os outros. E são histórias porque têm muito de ilusório, de inventado e de reconstruído. E as ideias que fazemos sobre nós são influenciadas pelos outros.
Pensemos, por exemplo, nas coisas que escrevemos no Facebook ou no Instagram. Ao colocar um post estamos a construir para os outros uma narrativa sobre a nossa vida e o nosso percurso. Ao colocarmos selfies de um concerto de jazz estamos a afirmar a identificação com as pessoas que gostam desse tipo de música. Se colocarmos uma foto da participação num evento desportivo, estamos a mostrar um lado saudável. Fotos de viagens podem mostrar uma faceta cosmopolita. Podemos, por isso, construir uma imagem de nós mais sofisticada, sadia ou feliz do que aquilo que somos normalmente. Há mesmo histórias trágicas de menores que são vítimas de abuso por se terem relacionado com pessoas que criam identidades digitais muito distantes da sua identidade real. E a construção de uma identidade digital que realizamos de forma mais ou menos consciente no Facebook (tornando-a particularmente positiva de modo a valorizar a nossa imagem junto de outros), fazemos no quotidiano de uma maneira menos consciente através da forma como nos apresentamos, como nos vestimos ou do que escolhemos comer. Deste modo, tomamos muitas decisões a pensar na impressão que queremos causar nos que nos rodeiam, na faceta de nós próprios que nos convém salientar num determinado contexto – quer dizer, fazemo-nos em função dos outros. Mas a nossa identidade está dependente dos outros por diversas outras razões.
A primeira é que levamos muito a sério o que os outros dizem sobre nós. Muitas das ideias que temos sobre quem somos e como somos vêm do que as pessoas que nos rodeiam dizem de nós. Crescemos a ouvir os pais e professores dizerem que somos de determinadas maneiras. Que somos preguiçosos, inteligentes, tímidos ou bondosos e a castigarem-nos ou a recompensarem-nos por ações que correspondem a esses adjetivos: deixámos a cama por fazer, tivemos boas notas, não quisemos participar no teatro da escola ou ensinámos uma colega a saltar à corda. Mais tarde, ouvimos descrições nossas pela boca de amigos, colegas, cônjuges, filhos que, em conversas ou discussões, partilham connosco como nos veem. E aquele “és mesmo egoísta, estás sempre a pensar em ti e nunca pensas nos outros” ou o “só mesmo tu para te lembrares: és mesmo uma pessoa espetacular” entram de alguma forma na construção de quem somos. Como se fôssemos o reflexo das imagens dos que nos rodeiam têm de nós. Como se fôssemos o que achamos que os outros pensam que nós somos. Embora a investigação sobre o papel dos fatores relacionais no desenvolvimento das autorrepresentações seja complexa, há trabalhos recentes feitos em Portugal que mostram muito claramente que as imagens que os pais têm dos adolescentes (por exemplo, se são ou não responsáveis, organizados, trabalhadores e arrumados) influenciam as autoimagens destes jovens. De facto, a comunicação na família, a interação entre pais e filhos faz com que os jovens construam uma ideia do que os pais pensam deles. Por exemplo, das críticas ou dos silêncios dos pais podem perceber que os pais pensam que eles são pouco responsáveis e preguiçosos e interiorizam depois essa imagem de si mesmos. O mesmo acontece noutros contextos sociais, como a escola, o grupo de amigos, os namorados ou namoradas, os avós, etc. E deste modo construímos uma imagem de nós que é um pouco uma manta de retalhos porque corresponde a imagens muito diferentes: somos queridos e bondosos para uns, egoístas e preguiçosos para outros, divertidos e sociáveis nuns grupos e trabalhadores incansáveis noutros contextos.
Nem sempre concordamos com essas imagens que nos chegam dos outros. Por vezes ficamos chocados com pessoas em quem confiávamos pelas descrições que fazem de nós. Por exemplo, se soubermos que um colega nos descreveu como uma pessoa instável ou pouco equilibrada, isso perturba a imagem que temos de nós mesmos. Nessas situações, mais uma vez a interação com outros é fundamental, uma vez que a primeira coisa que nos ocorre fazer é partilhar essa descrição negativa com outros em quem confiamos: sou mesmo essa pessoa instável e desequilibrada que o colega descreveu? É assim que me vês? Porque é que ele disse isso de mim? Conversando, pomos em confronto as imagens que temos de nós com as que nos chegam dos outros e damos sentido às diferenças. Dissecando a situação com outros, partilhando outras informações que os nossos amigos possuem sobre nós podemos acordar, por exemplo, que essa visão de instabilidade corresponde à necessidade do colega de se valorizar; ou podemos concluir que se trata de uma interpretação errada de acontecimentos específicos. Deste modo, a interação com outros permite dar sentido a visões ameaçadoras que nos chegam sobre nós próprios. Notemos também que quando percebemos que as ideias que os outros têm de nós são mais positivas do que as nossas autorrepresentações, não necessitamos tanto de validação social para acreditarmos nelas. Quando sabemos que alguém nos descreveu como o colega mais simpático e atento aos outros com que trabalhou não ficamos no mesmo estado de insegurança. Pelo contrário, reconhecemos que, lá no fundo, sempre soubemos que éramos bem mais altruístas que os outros. E a nossa autoestima agradece.
O acordo ortográfico utilizado neste artigo foi definido pelo autor.